Os óculos que usamos pra ler o mundo
[Experiências de leituras #10]
Reconhecer as coisas que sabemos é, acima de tudo, um processo. Nem sempre nossos aprendizados são evidentes, às vezes são construções que demandam percursos muito longos e silenciosos. Pra enxergá-los, muitas vezes é preciso experimentar colocar óculos.
Recentemente, ofereci uma oficina de bordado livre e subversivo durante um evento cultural em que celebramos 1 ano do clube de leitura #LeiaMulheres na minha cidade. Lá, conversei sobre como os bordados ficaram confinados a uma atividade doméstica e, por isso, muito desvalorizados como expressão artística, especialmente nos últimos 200 anos, mas que isso não precisa continuar a ser assim. Bordar também pode ser transformador, terapêutico, artístico, pode ter uma intenção voltada para dentro ou para fora, para falar de si e do mundo. Propus que produzíssemos nossos próprios desenhos livremente, sem nos apegarmos ao que costuma aparecer tematizado nos bordados. Entreguei papel, lápis e borracha a cada uma, e fomos trabalhar.
Apesar de fazer bordados livres, que pressupõem que eu produza as imagens que irei gravar com linhas, costumo dizer que não sei desenhar. Trocando em miúdos, o que tento dizer com essa frase é que não reconheço em mim nenhum traço particularmente interessante, nem acho que eu tenha alguma destreza especial para representar as coisas com desenhos. Mas se me pedirem um desenho, eu faço, do jeito que consigo, e parte da minha subversão é aceitar que meus bordados não são sobre habilidades e perfeição, mas sobre expressão. E era disso que eu queria conversar com aquelas mulheres.
Porém, as mulheres que estavam diante de mim não eram eu. Vinham de outro contexto sócio-cultural muito diferente do meu. Não tiveram os mesmos privilégios que eu, nem o mesmo tempo de educação formal. O traço delas era inseguro, fazer letras e traços era custoso. Havia algo bem diferente ali do meu não-saber-desenhar. Era como se elas nunca tivessem tido a oportunidade de sentar para fazer desenhos. Como se essa fosse uma das primeiras vezes em que elas estavam diante de papel e caneta. E talvez tenha sido assim mesmo.
Sentar para desenhar naquele dia talvez tenha sido subversivo pra elas. Não era nem sobre habilidades ou perfeição, mas sobre fazer, sobre experimentar.
Voltei pensando em como eu havia sido enganada por uma naturalização: mesmo não desenhando frequentemente, eu ignorei que minha destreza com papel e lápis fosse fruto de 30 anos de treino escrevendo, estudando, riscando, anotando, fazendo cadernos ou rabiscando o que quer que seja. Naquele momento, percebi como tinha me tornado cega para uma educação que havia recebido, uma habilidade para qual havia sido treinada e avaliado que meu desenho, ainda que "ruim", fosse uma habilidade natural. Fiquei muito envergonhada e pensativa com o meu julgamento equivocado, envergonhada sobre o que eu propunha na oficina como subversão. Fiquei muito pensativa sobre quanta coisa deixamos de perceber porque naturalizamos construções que são feitas.
Por maior que seja nossa sensibilidade e tentativa de nos colocarmos no calcanhar do outro, é simplesmente impossível que algumas dessas naturalizações não aconteçam. Não é que eu seja insensível ou nunca tenha parado para reconhecer e perceber minhas construções e privilégios. É que nem sempre eles estão visíveis pra nós. Nossas habilidades parecem espontâneas, ordinárias, porque estamos diante delas cotidianamente. Mas elas nunca são realmente naturais e sim construções silenciosas e muito complexas.
Essas naturalizações, no entanto, são muito perigosas, pois nos fazem não enxergar o outro e nem o mundo em que vivemos. Se queremos estar aqui, usando todos os nossos sentidos, é muito importante passar a enxergar o que acreditamos ser natural. Com o olhar calibrado, enxergamos de fato nossas ações e somos capazes de repensá-las. É, inclusive, usando esse tipo de óculos que surge o feminismo.
O ato de caminhar é um pouco como o uso do papel pareceu ser pra mim na oficina: uma atividade muito corriqueira, que faço e não penso muito a respeito, e que pressuponho que seja assim também para qualquer pessoa. Como naquele caso, não é. Se colocamos isso dentro de uma perspectiva histórica, fica ainda mais evidente a quantidade de significado que a gente consegue extrair dessa ação. A habilidade mais importante para entender o caminhar é percebê-lo. E é esta a tarefa proposta pela historiadora Rebecca Solnit, no livro A História do Caminhar (editora Martins Fontes - Selo Martins, 2016, 512p.)
Solnit vai compondo uma espécie de colcha de retalhos, enxergando significados diferentes para o caminhar em tempos e espaços distintos. Nas peregrinações, o caminhar não tem o mesmo valor que no turismo contemporâneo. Na literatura, aparece como um indicativo sócio-cultural importante, mas bastante diferente do que pode ser lido no paisagismo e na pintura; há espaço ainda pra descobrir a relação entre a emancipação feminina e essa ação, já que num contexto em que não somos livres, temos negado o direito de andar por determinados espaços. É assim, também, que se aproxima o caminhar feminino com as marchas de protesto, qualquer que seja a reclamação.
Essa composição de retalhos que a autora faz no livro também é disruptiva. Ela propõe uma desnaturalização sobre o que significa construir uma historiografia. Na história também não há uma clareza dos caminhos, muito menos linearidade em direção a um (suposto) progresso: o que existe são narrativas concorrentes, cruzadas, possibilidades de discutir qualquer tema assim que os enxergamos em um determinado contexto.
Por isso, vários dos ensaios desse livro às vezes parecem avulsos, soltos, com temas bem distantes entre si e sem um propósito muito definido. E isso não é uma coisa ruim. Num mundo que valoriza a produzir sem parar, que se preocupa muito mais com resultados do que com o caminho que se pega para chegar a algum lugar, não ter um ponto de chegada claro no livro produz uma quebra incrível. É como se Solnit nos lembrasse de que a viagem começa quando saímos de casa e não quando se chega ao destino. É um convite a parar de procurar apenas os atalhos e atentar para o que vamos encontrar pelo caminho, acima de tudo. Tanto nas viagens quanto nessa leitura, o objetivo final parece ser muito menos importante do que a atividade em si. E para entender isso, é preciso descondicionar o olhar.
Um exemplo interessante que Solnit traz para mostrar como naturalizamos situações é o do uso da palavra paisagem/cenário/quadro para descrever os espaços. Essa construção textual tem muito a ver com o surgimento dos jardins. A existência do jardim como um espaço modelado, cultivado e domado pelos seres humanos, é fruto de uma crença bem marcada de que somos opostos à natureza e não parte dela. O espaço organizado do jardim, com plantas que se cultivam e plantas que se arrancam, com espaços e formas delimitados, podas e crescimento controlado, tem uma relação muito interessante também com a pintura: durante muito tempo pintar foi uma forma de representar e dar ordem ao mundo visto. Caminhar por jardins e admirar quadros de natureza funcionavam ambos como um treino do olhar para reconhecer como o indomesticado podia ser controlado. Daí, mesmo em espaços que enxergamos como selvagens, como uma mata nativa ou um pedaço de floresta, acabamos levando nosso olhar treinado pra dizer que "se parece com um quadro", ou exclamar "que cenário!". Naturalizamos que o mundo tenha ordem. E isso se reflete na forma que usamos para falar do espaço.
É uma escolha muito feliz que Solnit tenha se debruçado sobre o caminhar para nos lembrar de colocar outros óculos pra ler o mundo. A imagem do andarilho, daquele que caminha ativamente e solitário, soa muito apropriada para se contrapor às cristalizações de comportamento que saímos fazendo pelo mundo. O andarilho passa pelas coisas em vez de se instalar e é uma visão que diz tanto da nossa existência que temos inúmeras metáforas para nos referir a isso: seguir em frente, ir a passos largos, perder o rumo na vida, encontrar seu caminho, andar em círculos, chegar a lugar nenhum, seguir os passos. A caminhada aparece em tantos lugares porque nós reconhecemos na vida uma jornada. O mundo só pode ser entendido mesmo a cada passo que damos, a cada experiência que vivemos e, para os gostam de ler, a que leitura que saboreamos.
Dois textos pra colocar outros óculos e ver o mundo
O nosso olhar é condicionado, por mais que estejamos dispostos a nos imaginar em outro tempo ou no lugar do outro. Essa constatação, no entanto, não é desculpa para que não sigamos fazendo esforços de usar outras lentes pra ver o mundo. Experiências vividas com atenção nos ajudam a descondicionar o olhar. Entrar em contato com as experiências dos outros através da leitura é uma excelente maneira de mudar nossos óculos. Essas são algumas sugestões de óculos pra você experimentar:
Papéis de carta feministas (Bianca Gonçalves, para a Mulheres que escrevem) — O que a Bianca Gonçalves faz nesse ensaio é colocar uns óculos muito interessante pra enxergar a poesia contemporânea dos #instapoets, como Rupi Kaur, Nayyirah Waaheed e Ryane Leão. Ela percebe a conexão rica que existe nessa expressão poética com o tempo dos papéis de carta, mas também com o poema-minuto, o concretismo, a poesia marginal, a música popular e outras manifestações que tentaram romper com a Tradição.
Pequeno tratado sobre a felicidade (Anna Vitória Rocha, No Recreio #58) — Você acha difícil expor sua dor pro mundo? E que tal expor sua felicidade? Nessa newsletter, a Anna Vitória chama nossa atenção sobre o sentimento da felicidade e como pode ser constrangedor exprimir alegria. Embora lidar com a tristeza não seja nada fácil, ela frequentemente se vê revestida por um certo fetiche; já a felicidade se confunde com a busca por satisfação imediata ou a negação da dor, mas isso se parece mais com aquilo que o capitalismo quer que achemos que seja felicidade. Olhando bem, falar da própria felicidade é um imenso exercício de vulnerabilidade: Eu queria gritar e agradecer pela graça alcançada, me sentia transbordando de uma felicidade que a gente não sente todo dia, daquele tipo que coloca tudo em perspectiva e muda o sentido das coisas, mas não me parecia apropriado falar sobre ela. Foi muito fácil escrever aqueles primeiros parágrafos sobre minha ansiedade (e eles estavam muito maiores no primeiro rascunho desse texto), mas estou há dias tentando colocar em palavras a alegria dos últimos dias.
What Quilting and Embroidery can teach us about narratives (Sarah Minor, no Literary Hub) — Escrever e falar da escrita é se ver constantemente fazendo metáforas e alusões à construção civil. O que Sarah Minor faz nesse texto é chamar a nossa atenção para essa naturalização, que tem muito a ver com as nossas tentativas de tornar concreto o trabalho intelectual. Sabidamente, no entanto, ela nos mostra que não é preciso que assim seja. A sua proposta é de contrapor esse modelo construtivista de narrativas por uma modelo mais próximo das artes téxteis. E ela tem ótimas justificativas pra isso. (em inglês)
Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!
Este ensaio faz parte da série Experiências de leitura, publicada mensalmente na iniciativa Mulheres que Escrevem. Leia também:
#1: O que falamos dos livros que lemos
#2: O embaraço em aceitar livros como ajuda
#3: Falar de si mesmo: a experiência narrada também é literatura?
#4: A leitora e sua síndrome de impostora
#5: Ler não é uma competição
#6: Uma janela pra si: a experiência dos ensaios
#7: O acaso que mora nos livros
#8: Leituras para o fim do mundo
#9: Que escritas e leituras estamos inviabilizando com a nossa pressa?