Autismo em Mulheres: Minha História de Diagnóstico Tardio

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
Published in
11 min readApr 8, 2020

No último texto, falei dos motivos para o diagnóstico de autismo demorar mais em mulheres. Hoje, vou falar de como isso se dá na prática com uma história: a minha.

Quando pequena, me descreviam frequentemente como “engraçada”, ou mesmo como “uma gracinha”. Eu não entendia com exatidão o motivo disso, mas os adultos achavam curiosos meu interesses: eu sabia muitos nomes de carros — adorava recitá-los para quem se dispusesse a ouvir — , falava apaixonadamente sobre Leonardo Da Vinci, e sempre aparecia de vez em quando uma obsessão nova. Mas estava tudo bem, afinal. Esse era só meu jeitinho peculiar. Eu não era, verdade, a menina mais querida por seus colegas de pré-escola, porém não era solitária. Tinha amigos, era uma criança feliz. A pré-escola era um mundinho fechado: sempre os mesmos coleguinhas, os seis primeiros anos de vida cercada pelas mesmas pessoas, eventualmente surgia o companheirismo. Eu não era segregada pelas crianças, e conquistava a admiração dos adultos. Uma boa infância, de verdade.

Então veio a escola, o ensino fundamental. Eu não tinha mudado nada, mas agora estava cercada de gente nova, e minha personalidade idiossincrática, subitamente, parecia ser uma gracinha apenas para os adultos: para as crianças, eu era irritante e cheia de mim. As crianças ao redor das quais eu havia passado meus primeiros anos ainda estavam por lá, mas estavam afastadas, uma minoria no meio daquele mundo novo, cheio de gente nova. De repente, eu estava perdida. Como não sabia a maneira certa de me comportar, continuei me comportando como sempre havia feito. Falava muito sobre as mesmas coisas, e minha referência de normalidade era copiar os comportamentos de personagens ficcionais — mesmo que esses personagens fossem caricaturas das highschools americanas. Respeitava as regras mais do que devia, e rapidamente me tornei a dedo-duro oficial da turma. Se as outras crianças fizessem algo minimamente errado, eu certamente contaria aos professores, porque gostava das regras: elas, ao contrário do comportamento das outras pessoas, faziam sentido. Anos depois, eu reconheceria não ser a amiga mais divertida que alguém poderia ter, mas nunca havia maltratado ninguém em minha infância. Isso não impediu que eu fosse sempre referida por apelidos maldosos, ou que jogassem cola em meu cabelo — sem que eu percebesse, estava muito absorta em meu dever de casa —, ou ainda que inventassem rumores sobre mim. E embora estivesse claro que não gostavam de mim, eu passava horas tentando entender o porquê — e sempre falhava em fazê-lo. E, por mais que fosse prazeroso passar a hora do recreio na biblioteca — às vezes relendo exaustivamente meus livros prediletos —, e que a bibliotecária tivesse até mesmo memorizado meu número de matrícula, de tantos livros que eu pegava emprestados, um amigo ou outro não faria mal. Era sempre uma questão de tempo até que eles se afastassem de mim, e nunca, nem mesmo anos depois, ficaria inteiramente claro o motivo disso.

Nos anos iniciais da minha adolescência, o padrão continuou o mesmo, só que os rumores pareciam criar uma barreira invisível entre mim e meus potenciais novos amigos. A conversa ocorria normalmente, até que eu me apresentasse: o interlocutor, na maioria dos casos, já havia ouvido seu nome, e se afastava. As fofocas estavam por aí, e eu nunca soube o que falavam de tão terrível pelas minhas costas. Tudo o que eu sabia é que falavam. Quando cheguei a conseguir fazer amigos, não foram poucos os que me contaram que, no início da amizade, havia aparecido algum colega tentando dissuadí-los de andar comigo. Mas eu decidi que não seria mais assim: a solidão machucava. Segui, então, uma sugestão que recebera de parentes: por que não tentar fazer amigos mais afastados dos boatos? Resolvi se aproximar de duas conhecidas do coral da escola. Elas eram um pouco mais velhas, então dificilmente teriam ouvido falar de mim — bem ou mal.

Foi dessa decisão que surgiu a minha nova versão: a versão esquisita. Solidão machuca, mas depois de um bom tempo sem criar laços duradouros, como criá-los? Como se comportar diante dos outros adolescentes? Eu comecei, sem ser convidada, a me sentar ao lado de minhas novas amigas nos intervalos. Socialmente, era bem desastrosa: gostava de falar de meus hobbies sem parar, de enviar mensagens sem contexto algum, de fazer comentários nos quais somente eu via graça, e os constrangimentos que causava não paravam por aí. Algumas vezes, cheguei a interromper flertes alheios, sem perceber que aquelas duas pessoas tinham se afastado sorridentes do grupo por um motivo. Se eu sabia que estava sendo inconveniente? Não. Entretanto, a história foi diferente dessa vez: as novas amigas me aceitaram. As amizades continuaram por anos depois, apesar de todas as esquisitices, de todos os constrangimentos, de todas as inadequações. Pela primeira vez, eu soube o que era pertencer a um grupo, o que era ser verdadeiramente acolhida, e senti profunda gratidão.

Mas, é claro, essa estratégia não funcionava com todos. Na realidade, para a maior parte das pessoas, as esquisitices ainda eram inaceitáveis. Embora não estivesse mais sozinha na “batalha”, o bullying continuou por alguns anos, e a rejeição nunca parou de doer. Foi aí que minha ansiedade, até então restrita a um traço de personalidade, começou a dar sinais de patologia. Suas experiências estavam, também, tomando uma forma estranha: às vezes eu me isolava, às vezes mesmo quando estava com meus amigos eu me sentia alienada, às vezes eu percebia que era mesmo estranha. Talvez as pessoas tivessem razão em me excluir, afinal de contas. Talvez tivesse algo errado comigo, talvez aqueles amigos me detestassem secretamente, talvez eu não merecesse mesmo ter amigos. Talvez eu merecesse ser solitária ou infeliz.

Foi nesse período que veio o momento que me fez perceber que seus erros também não deviam estar restritos à parte social. Vez ou outra, já haviam dito que eu era irritante sua insistência em falar sempre dos mesmos temas, ou que eu me empolgava em demasia com meus interesses. Como finalmente estava percebendo que era, de fato, estranha, veio junto a consciência de que era possível que eu me obcecasse mesmo com as coisas. Nessa época, meu hobby predileto havia se tornado uma espécie de grupo de RPG do qual eu participava online. No mundo real, por certo tempo eu só falava de minhas aventuras no mundo da fantasia — e graças ao céus que alguns amigos de carne e osso estavam participando disso! Os que estavam alheios devem, em algum momento, terem mentalmente implorado que eu calasse a boca —, mas acabei brigando com os colegas virtuais. Quando perdi esse grupo, porém, veio uma sensação até então desconhecida: uma espécie de vazio. Perder um hobby era como perder um amor. Manter distância de todo aquele escapismo foi ótimo para fortalecer meus laços, nem mesmo os amigos mais próximos tolerariam para sempre aquelas obsessões todas, porém a sensação era de privação. Fato é que, pouco depois, a privação se tornou anedonia, e a anedonia se tornou depressão. Talvez tenha sido culpa da perda, talvez tenha sido culpa da consciência de que as pessoas que reclamavam dos monotemas estavam certas, mas, muito provavelmente, era uma soma de tudo levando àquela conclusão que todos haviam martelado em minha cabeça desde o primário: eu era mesmo chata, esquisita, e merecedora de todos aqueles sentimentos de solidão.

E, logo nesse período, começou a última parte da minha adolescência, e duas perdas fecharam, definitivamente, o ciclo dos anos de esquisitices e amigos acolhedores: duas amigas, as duas mais próximas, se afastaram. Uma delas teve seus próprios problemas psiquiátricos e acabou se distanciando, enquanto a outra mudou-se da cidade. Parecia o fim, a solidão definitiva, a volta àqueles tempos sombrios em que até meu nome carregava um peso. Eu tinha ao meu lado uma família carinhosa e vários amigos amáveis, mas a ausência de duas pessoas e de um hobby pareciam o fim do mundo. Era como se tivesse, como dizem, colocado todos os ovos numa mesma cesta. E eu percebi. Eu soube, no instante em que minha melhor amiga disse que voltaria para a cidade de sua família, que minha vida tinha circundado um conjunto muito restrito de interesses nos últimos meses. Aliás, não nos últimos meses: na minha vida inteira. Calhou que, como meu estado mental já vinha se fragilizando fazia alguns anos, um retorno à terapia foi inevitável. Era preciso recolocar a vida em ordem, compreender o que tinha acontecido. Afinal de contas, a menininha engraçada havia se tornado a menina irritante, depois a adolescente esquisita, e, nesse momento, nascia uma nova adolescente: a adolescente ansiosa, apavorada com a possibilidade de destruir as relações que lhe restavam.

A luta inicial contra a ansiedade durou anos, e, na realidade, por mais que a adolescente ansiosa não exista mais, é meramente porque foi substituída pela jovem adulta ansiosa. Em compensação, o episódio depressivo que começara a se desenvolver foi, ao que tudo indica, controlado com a clássica combinação de psicoterapia e medicação. Tudo pareceu correr como esperado para o quadro: no fim das contas, a depressão e a ansiedade formam um arranjo extremamente comum nos dias de hoje, e o tratamento não costuma fugir muito da união entre psicólogo e psiquiatra. Nessa história, porém, houve um ponto em que se fez necessário um período de troca de médicos, pois a psiquiatra que vinha me acompanhando teve uma filha, e passou um tempo afastada de seu trabalho. Esse intervalo foi suficiente para que viesse um insight.

Em uma das consultas que tive com a nova médica, foi feita a pergunta crucial: e suas amizades? Como vão? Iam como sempre. O problema era que muitas das pessoas com quem eu vinha convivendo nos últimos meses eram minhas amigas havia pouco tempo, de modo que ainda não tinha se passado tempo suficiente para que eu aprendesse a lógica dessa novas pessoas. Que lógica? Uai, a lógica que se emprega ao conversar com as pessoas: se falarem A, você responde B. Se fizerem o gesto C, você corresponde com o gesto D. Nas situações E, F, e G, você dá uma risada. É assim que funciona: uma coleta cuidadosa de dados, memorização das situações possíveis, melhorar a base de dados para conseguir ser socialmente apropriada. É assim que todos fazem… Certo?

Errado. Errado a ponto de a psiquiatra interromper brevemente o assunto para fazer algumas perguntas. Você tem algum problema com ruídos, texturas, sabores? Quando criança, você tinha interesses muito focados? E quando interrompem suas rotinas, como você lida? Você demorou para aprender a falar? As perguntas eram feitas e, pouco a pouco, a adolescente foi percebendo um padrão: eu nunca havia funcionado da mesma maneira que seus colegas, mas nunca notara isso. Como não notara? Aquela era minha forma de interagir com o mundo… Eu não conhecia outra. Não pensava que minha forma era diferente da dos demais. E era, era muito. Minha psiquiatra regular concordou que era diferente. A especialista que me foi recomendada posteriormente também concordou. Disse, na realidade, que o meu era o caso clássico, que é descrito na literatura: Transtorno do Espectro Autista de Alto Funcionamento.

E aquele nome tirou um peso das minhas costas. Todas as dificuldades, todos os olhares estranhos que eu não compreendia, todas as reclamações sobre suas fixações, todas as peculiaridades na hora de montar minhas rotinas… Nada daquilo era típico, mas nada daquilo era anormal. Na realidade, eu estava em boa companhia: algumas estimativas dizem que ao menos 1% da população está no espectro autista. Na mais absoluta realidade, estava tudo bem. Aqueles desafios todos não eram um defeito fatal, como muitos pareceram querer que eu acreditasse. Aqueles desafios eram diferenças relativamente comuns. Aquele peso não teria de ser carregado sozinho: 1% da população compartilha dessas dificuldades… E 1% da população mundial compartilha dessas forças. Sou é criativa, concentrada, detalhista, organizada, e honesta. Também inflexível, ocasionalmente inconveniente, e socialmente atrapalhada? Decerto. Nada que não tenha sido estudado, nada que não possa ser mitigado. E nada que seja sobremaneira disfuncional. Neurotípicos, afinal, também têm seus problemas para atuar na sociedade. Todos temos nossas batalhas, e a batalha do autista por se encaixar é só mais uma das várias formas que essas lutas — tão inerentemente humanas! — podem tomar.

É comum ouvir de grupos de defesa dos direitos da pessoa autista o ditado: “Se você conheceu um autista, você conheceu um autista”. Essa não poderia ser uma descrição mais perfeita: cada autista é um indivíduo único, lidando com problemas únicos. A minha história, todavia, não é incomum. Alguns demonstram traços de atipicidade na infância e já recebem seu diagnóstico, outros precisam passar por anos de abuso antes que alguém perceba que há algo diferente em sua neuropsicologia. Eu teve sorte, ficou no meio do caminho: como muitas mulheres, descobriu que suas dificuldades tinham nome tardiamente — aos 17, quase 18 anos —, mas não precisei de uma história de vida traumática para que o nome viesse. E estou muito bem, obrigada. Talvez o bullying tenha deixado cicatrizes, mas o diagnóstico permitiu que eu procurasse profissionais que soubessem lidar com as particularidades do meu caso.

E, no fim das contas, os adultos que me consideravam uma gracinha estavam certos: não tinha nada de errado com aquela menininha, aquele era o jeitinho dela. Talvez a vida tivesse sido mais fácil se alguém tivesse notado suas idiossincrasias e dado orientação: copiar o comportamento de personagens de TV não é a melhor estratégia para fazer amigos, e não é preciso ser a criança que conta religiosamente aos professores todas as vezes que vê alguma criança subindo pela escada que tinha uma placa com a placa escrito “Descida”. Talvez pudessem tê-la dito que hobbies são divertidos, mas que fazer deles o centro de sua vida abre espaço para corações partidos quando algo como um grupo de RPG se dissolve. E talvez ela tivesse tido suporte de mais pessoas nos momentos de confusão, em que os comportamentos alheios pareciam um mistério. Mas se a adulta vê todas essas possibilidades com rancor? De modo algum. O passado está lá atrás, e o futuro parece brilhante. E pode ser mais brilhante ainda, e para mais pessoas, caso trabalhemos em identificar mais cedo as dificuldades de cada criança — autista ou não. Afinal de contas, nem todas terão família e amigos protegendo-as quando o mundo condenar suas peculiaridades.

Ter descoberto que sou autista me fez perceber que eu não preciso ser consertada, e que as minhas dificuldades não são exclusivas de mim. Eu tenho aceitado melhor a mim mesma desde que soube do diagnóstico, e agora eu me sinto mais confortável em pedir o auxílio de amigos e família para me guiar pelo mundo. É um lugar assustador, e nem sempre eu consigo navegar facilmente por ele, mas está tudo bem. Eu estou feliz em ser quem eu sou, e saber quem sou é o que permite que eu trabalhe em me tornar a melhor versão de mim mesma.

Então o meu apelo é para que as crianças “esquisitas” saibam que não são tão raras, e que não são realmente esquisitas. É para encorajar os adultos que se sentem diferentes a procurarem profissionais da saúde mental para investigar se a origem dessa sensação está no TEA. Mesmo se não estiver, ninguém merece sofrer na dúvida. Eu quero que mais pessoas possam sentir o alívio que eu senti, e se alguém — mesmo uma só pessoa — se sentir inspirada pela minha história, eu já vou ficar muito feliz.

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