Mas, afinal de contas, o que é autismo?

No fim, a nossa sociedade conhece muito bem os estereótipos, mas qual a realidade?

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
7 min readApr 19, 2020

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É provável que este texto tivesse funcionado melhor caso fosse o primeiro da série que estou fazendo neste mês de Abril — o Mês Internacional da Conscientização sobre Autismo —, mas acabei incorrendo em um erro muito comum: resolvi começar falando sobre os estereótipos, e sobre o porquê de eles estarem errados, porém não trouxe a alternativa apropriada a eles, que seria, er, bem… A realidade. Faço, então, a pergunta: você, leitor, que acabou de descobrir que autismo não é sinônimo de genialidade, pode ser diagnosticado tardiamente, não se manifesta da mesma maneira em meninos e meninas, e que as mulheres adultas têm certas coisas “entaladas” para dizer sobre o tema… Você mesmo, que aprendeu tudo que autismo não é, sabe o que autismo é?

Tentarei explicar tudo de uma maneira bem sucinta, e deixarei aqui a recomendação para quem quiser ler mais a fundo sobre o tema: o livro O Cérebro Autista, da pesquisadora — que também é autista! — Temple Grandin é um resumo maravilhoso das bases biológicas da condição, e o primeiro capítulo faz um apanhado de como as definições de “o que é autismo” mudaram ao longo dos anos. Na Amazon, você consegue ler uma amostra gratuita do livro, e terá, assim, acesso ao menos a esse início. Se houver interesse, é claro que posso, no futuro, contar sobre a história do diagnóstico de autismo, desde quando o transtorno foi observado pela primeira vez até chegarmos na descrição atual. Todas as informações que incluirei aqui se baseiam na 5ª edição (a mais recente) do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), que é, digamos, a Bíblia dos Psiquiatras, apesar de acumular uma reputação, er, digamos… Controversa.

Nesta edição mais recente do DSM, foi agrupado um conjunto de condições psíquicas sob o nome de transtorno do espectro autista: o autismo “clássico”, a síndrome de Asperger, e o transtorno global do desenvolvimento. Desta maneira, reconhece-se que essas condições fazem parte de um mesmo continuum de alterações em certos aspectos neuropsiquátricos, isto é: prejuízos na comunicação social e padrões restritos de comportamento. Isso quer dizer que esses aspectos vão variar em intensidade entre indivíduos distintos, mas que todos aqueles que estão no espectro vão manifestá-los. A saber, o espectro inclui três níveis de gravidade, sendo que um indivíduo pode transitar entre eles ao longo de sua vida. Também é possível que os prejuízos sociais estejam num nível e os comportamentais em outro. São eles:

  • Nível 1 (exige apoio): esses são os indivíduos de alto funcionamento, que anteriormente receberiam um diagnóstico de Síndrome de Asperger. No âmbito social, são bem capazes de se comunicar, mas podem ter dificuldade para iniciar interações, e apresentam respostas atípicas nas interações (em bom português: é aquela pessoa que não se encaixa muito bem). Já em seu comportamento, demonstram inflexibilidade capaz de interferir significativamente em seu dia-a-dia.
  • Nível 2 (exige apoio substancial): neste nível, os prejuízos sociais são mais visíveis, e o indivíduo pode ter dificuldade em se comunicar mesmo que esteja sendo apoiado por alguém. A pessoa pode, por exemplo, ter interação limitada a alguns poucos interesses especiais, ou se comunicar somente por frases simples. A inflexibilidade do comportamento também está presente, ou seja: resistência às mudanças, mas um autista de nível 2 pode apresentar sofrimento (não apenas dificuldade) em se adaptar às mudanças de foco ou de rotina. Além disso, certas peculiaridades no comportamento podem ser visíveis mesmo a observadores casuais.
  • Nível 3 (exige apoio muito substancial): no nível mais intenso do espectro, a comunicação é extremamente restrita, em que mesmo interações iniciadas por outras pessoas podem ter resposta mínima. Alguns nem chegam a falar. Já o comportamento chega ao ápice da inflexibilidade presente no espectro, de modo que alterar o foco ou a rotina causa sofrimento intenso.

Algo que vale a pena ser ressaltado quanto a esses diferentes níveis é que em qualquer um deles pode haver presença ou ausência de deficiência intelectual ou na linguagem— quer dizer, ser autista não significa que uma pessoa necessariamente terá sua inteligência ou linguagem comprometidas (e, por favor, não vamos também dizer que autistas têm QI sobre-humano ou qualquer coisa do tipo). Então de onde surge a união entre prejuízo na comunicação e inflexibilidade comportamental? E o que são esses termos? Vamos por partes.

Para entender o autismo, é preciso, antes, esclarecer que tipo de condição ele é. O DSM o classifica como um transtorno do neurodesenvolvimento. Esses transtornos são marcados por alterações que se manifestam na criança antes mesmo do primeiro ano de vida (embora o diagnóstico possa demorar). Essas alterações podem ser bem específicas ou englobar toda a neurologia da pessoa (como ocorre no autismo), fato é que o desenvolvimento de aspectos como função executiva (termo que engloba, digamos, a organização do pensamento e das ações), comportamento, interação social, inteligência, aprendizagem, coordenação motora… Em suma: aquele progresso clássico da primeira palavra, dos primeiros passos, de aprender coisas novas na escolinha fica alterado. Algumas das alterações podem ser benéficas, outras prejudiciais, outras dependentes do contexto em que o paciente está inserido, entretanto um paciente com um transtorno do neurodesenvolvimento será atípico, e essa atipicidade pode ser ou não percebida cedo, e pode ou não requerer acompanhamento médico para permitir ao paciente máxima qualidade de vida.

Assim, podemos classificar o autismo como um transtorno global do neurodesenvolvimento, pois várias áreas da vida serão afetadas. Há vários sintomas e sinais que caracterizam a experiência do autista, que se encaixam nos dois âmbitos que foram mencionados no início: interação social e inflexibilidade comportamental.

No campo social, o DSM-V descreve que o autista terá déficits múltiplos e persistentes em contextos de interação. São três os maiores comprometimentos: reciprocidade socioemocional, comunicação não-verbal, e manutenção de relacionamentos. Isso significa que um autista poderá ter dificuldades para estabelecer interações típicas: pode ser que ele não entenda bem como iniciar a interação, ou pode não responder às tentativas alheias de aproximação, e, uma vez estabelecido o diálogo, pode não saber como compartilhar interesses ou expressar suas emoções. No que se refere à linguagem não verbal, os gestos podem ser incoerentes, as expressões faciais reduzidas, e o contato visual também tende a não ser estabelecido. Por fim, talvez a maior dificuldade que o autista enfrenta em suas relações é a dificuldade de interpretar o comportamento alheio, e que dirá de se adaptar a ele em contextos distintos, o que é a provável causa dos problemas em manter relacionamentos.

Já na área da inflexibilidade comportamental, há maior quantidade de manifestações possíveis. Uma possibilidade está no movimento e na fala, que podem ser repetitivos ao ponto da esterotipia, que é a realização repetitiva de movimentos e rituais (como, por exemplo, apertar as mãos, ou balançar o corpo). Outras demonstrações frequentes são a insistência em rotinas e em interesses fixos, que poderiam ser vistos como obsessivos. Como falei no último texto, daí surge, em parte, o mito de que autismo está relacionado a alguma forma de genialidade, pois indivíduos autistas desenvolvem interesses em intensidade muito acima do normal em certos temas. Por fim, é muito comum que esteja presente hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais (sejam de visão, audição, paladar, etc), o que pode fazer com que o paciente seja, por exemplo, insensível a certos tipos de toque, ou excessivamente sensível a certos ruídos.

Concluímos, assim, que o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento marcado por comprometimento da interação social e inflexibilidade comportamental. Como boa parte das definições técnicas da psiquiatria, ela é bem ampla e abstrata. Com as definições que expus neste texto, pode ficar mais fácil visualizar qual a manifestação concreta do autismo, mas ainda assim…

Não falta algo nessa definição? Autismo é isso? Mas eu tenho um primo que tem uns gestos estranhos, um vizinho que coleciona selos, e um professor que não aguenta a sala de aula muito iluminada! Então tudo é autismo agora? E se tudo é autismo, nada é autismo! Certo?

Errado. Aí chegamos àquela que talvez seja a parte mais crucial desse texto: entender que o autismo, por ser uma condição de natureza psiquiátrica (ainda que estejamos entendendo cada vez melhor as bases neurológicas e genéticas dela, e de novo recomendo o livro da Temple Grandin a quem quiser entender melhor), é definida por prejuízo significativo à qualidade de vida do paciente. Sim, é um pouco subjetivo, porque desenhar a linha divisória entre significativo ou não significativo é uma decisão que cabe ao médico ou psicólogo, as orientações não são tão claras nesse âmbito (o que é uma crítica frequente não só ao DSM como também à psiquiatria de modo geral), porém a experiência clínica costuma ser suficiente para garantir aos profissionais uma distinção entre o que pode ou não interferir no dia-a-dia do paciente e de sua família. Em linhas gerais, podemos colocar como regra que sim, muito do que se enquadra na definição do transtorno do espectro autista é visível em neurotípicos. Mas tudo ao mesmo tempo? Seu primo que gesticula estranho, seu vizinho que coleciona selos, e seu professor vampiro manifestam sinais e sintomas de autismo em todos os aspectos de suas vidas? Ou eles são só meio peculiares em uma área ou outra?

Para encerrar, vou deixar uma máxima importantíssima: se você conhece um autista, você conhece um autista. Se todos os neurotípicos são únicos, tanto em seus defeitos quanto em suas qualidades, por que com autistas seria diferente? Autistas são indivíduos únicos, cada um com suas peculiaridades, cada um com um conjunto específico de sintomas (lembrando que a definição, por ser ampla, não fornece uma listagem exaustiva dos traços que pessoas autistas manifestarão ao longo de seu desenvolvimento), cada um com uma personalidade. Se tem algo que eu quero que você leve deste texto, é isto: o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento e blá blá blá, o autista é uma pessoa.

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