O Mito do Gênio Autista

A ideia de que as formas mais brandas de autismo conferem genialidade é danosa inclusive aos seus portadores¹

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
6 min readApr 12, 2020

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Como já expliquei em textos prévios, resolvi usar o mês de abril, o mês internacional da conscientização sobre autismo, para escrever textos sobre esse tema. Muitas pessoas no espectro não gostam do termo conscientização ao falar de um mês “dedicado” aos autistas, optando por declarar abril como o mês da aceitação do autista, afinal, não basta que as pessoas entendam como funciona a mente de alguém com Transtorno do Espectro Autista (TEA), é preciso que haja tolerância e acessibilidade. Se, então, resolvi fazer da aceitação um tema em meus textos, talvez fosse esperado que eu trouxesse aqui a visão do autismo como um superpoder, e falasse incessantemente de como autistas são, na realidade, gênios incompreendidos. Contudo, o que falarei hoje quebra um pouco essa expectativa: vou argumentar sobre como a exaltação das características do TEA não é o caminho ideal para combater o preconceito e a desinformação.

Muita gente famosa e competente tem um diagnóstico formal de autismo. Sir Anthony Hopkins, Daryl Hannah, Susan Boyle, Temple Grandin, Vernon Smith, Satoshi Tajiri, Courtney Love, Dan Aykroyd, e isso se estamos falando apenas daqueles que possuem diagnósticos confirmados. Todavia, uma das pessoas que, apesar de jamais ter recebido em vida um diagnóstico oficial, mais suspeita-se de estar no espectro é o físico Albert Einstein. Relata-se que, em sua vida pessoal, ele era inflexível e insistente em suas rotinas, e que tinha dificuldades de socialização. Além disso, ele não aprendeu a falar até seus 3 anos de idade, e, quando aprendeu, não foi de maneira gradual: ele rapidamente começou a falar em sentenças completas. Evidentemente, não é possível realizar um diagnóstico póstumo, mas alguns traços autísticos são visíveis em Einstein.

Desta premissa, é fácil montar uma linha de raciocínio que comece em “Einstein, um gênio, possivelmente era autista” e termine em “Einstein era um gênio por ser autista”. E, de fato, não seria algo tão fora da realidade no caso do físico. Afinal de contas, autistas têm uma mente aguçada para detalhes, um raciocínio bastante lógico, e facilidade em concentrar-se em seus temas de interesse. Uma pessoa detalhista, lógica, e concentrada poderia ter grande sucesso na física caso escolhesse essa área. Talvez Einstein fosse mesmo autista, e talvez a teoria da relatividade seja mesmo um fruto do autismo.

Não creio que seja problemático fazer análises como a do parágrafo acima. Ora, se é possível que o sucesso de determinado indivíduo seja oriundo do TEA, é interessante mostrar a correlação entre ambos, que contribui para mostrar à sociedade como um todo que nem tudo num quadro de autismo é negativo — muito pelo contrário: é um quadro que traz consigo pontos positivos, como trouxe para tantas pessoas. O problema começa quando a história de um único indivíduo é usada para fazer generalizações sobre todo um grupo de pessoas.

É preciso que se entenda que o autismo — como qualquer deficiência — não é um superpoder: é um quadro complexo que altera profundamente a maneira como um indivíduo interage com o mundo. E percebam: eu disse que altera, não que prejudica. Na hora de realizar tarefas repetitivas que exijam concentração, um autista terá grandes vantagens sobre seu colega neurotípico. Em compensação, na hora de se apresentar para uma nova pessoa, o neurotípico é quem terá maiores chances de se sair bem. Há, também, certas características do TEA que podem ser tratadas como neutras: apreço à rotina é algo bom ou ruim? E comunicação direta, sem muitas metáforas? Que tal tendência à sistematização? São características que podem ser vistas como deficiência ou como superpoder: depende apenas do contexto.

E então voltamos a Einstein: decerto, um gênio, que alterou a trajetória da humanidade. Entretanto, seu primeiro casamento foi um fracasso, e ele nunca chegou a se tornar um homem cheio de amizades. Foi feliz? Tinha superpoderes? Ou será que ele era, como eu e você, um indivíduo? Será tão ousado dizer que ele era… Único? Que vivia suas próprias batalhas, tinha áreas em que se destacava para o bem, e áreas em que se destacava para o mal? Que tal se, ao pensar na possibilidade de Einstein ter sido autista, identificarmos isso como uma das várias características que permitiram que ele se tornasse o homem que se tornou, mas não como a causa — única e isolada — de sabermos, hoje, que E=mc²?

Infelizmente, o cérebro humano parece ser programado para encontrar respostas simplistas. Nós gostamos de poder ter uma visão binária do mundo: autismo é um grande mal que deve ser extirpado do mundo ou é um superpoder que nos garantiu grandes gênios. Porém, se a natureza humana nos faz procurar extremos, por que não aceitar que as pessoas pensem no autismo como uma forma de genialidade? Por que o esforço em incentivar o meio-termo? Não é muito melhor que o estereótipo de um jovem autista seja o estereótipo de um jovem fixado em matemática que, um dia, vai brilhar na engenharia?

Porque esse estereótipo não é real, e, ao reforçá-lo, estamos causando dano justamente às pessoas autistas que pensamos estar exaltando ao chamar sua condição de superpoder. Porque isso fará com que elas precisem não apenas se esforçar para ter qualidade de vida — o que já pode ser desafiador, tanto por suas limitações inatas quanto pelas limitações oriundas de preconceitos sociais —, elas precisarão se esforçar para corresponder a expectativas irreais. Se esperarmos genialidade de todos os autistas, estaremos colocando em suas costas o peso de um rótulo de insuficiência, passaremos a esperar dos neurotípicos uma inteligência média e aceitar dos autistas apenas as habilidades extraordinárias.

Ao enxergar essa condição neuropsiquiátrica como superpoder, estaremos também impondo outro peso sobre aqueles que a carregam: o peso da ausência de tratamento. Se, afinal, seu filho autista está destinado a ser o próximo Mozart, por que você tentaria alterar qualquer uma de suas características? E por que você tentaria dar a ele suporte em suas dificuldades? Na realidade, o acompanhamento de médicos, psicólogos, e outros terapeutas pode ser incrivelmente útil para pessoas no espectro. O autismo não é uma doença, o objetivo de terapias não é buscar uma cura, mas é oferecer recursos para que as pessoas que estão no espectro consigam se orientar num mundo desenhado por e para neurotípicos. Como ajudar aquela criança a lidar com perdas de rotina — porque, afinal, as situações nem sempre saem como planejamos? E como ajudar aquele adolescente a interpretar as expressões faciais de sua namorada? Se, porém, essas dificuldades são vistas como alguma espécie de preço a ser pago por uma genialidade que obrigatoriamente deverá ser manifestada, estaremos desamparando a essas pessoas.

As nomenclaturas de alto e baixo funcionamento para descrever os diferentes extremos do espectro autista têm sido progressivamente substituídas por baixa e alta necessidade de suporte. Não é uma mera questão de ser “políticamente correto”, para não ofender àqueles que seriam classificados como pouco funcionais: é uma questão de não anular os desafios daqueles que seriam classificados como altamente funcionais. Ao pensar em alto funcionamento, dificilmente pensaremos em alguém que precisa de ajuda: pensaremos em um gênio esquisito, que está sentado no canto da sala não porque não sabe como iniciar uma conversa, mas porque deve estar planejando a pintura da próxima Capela Sistina. Quando transformamos o autista em um gênio além de nossa compreensão, estamos tirando dele a individualidade e a oportunidade de melhora de sua qualidade de vida. Estamos transformando alto funcionamento em alto sofrimento.

Obrigada por ler esse texto! Eu adoraria saber o que você achou nos comentários, e, se gostou, por favor, dê seu “aplauso” (de 1 a 50) aqui embaixo, e clique aqui para me encontrar nas redes sociais e não perder os próximos posts.

¹ A nomenclatura de formas brandas de autismo, bem como a de portadores de autismo, não é utilizada por médicos ou pelas próprias pessoas autistas, de maneira geral. Porém, como a ideia do subtítulo de um texto é ser clara e rapidamente compreensível, tomei a liberdade de usar esses termos.

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