Autismo em Mulheres: Por Que o Diagnóstico Demora?

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
Published in
9 min readApr 5, 2020

Como abril é o mês internacional da conscientização sobre autismo, eu pedi no meu Instagram que vocês fizessem perguntas sobre o tema. Este texto será para responder a uma delas, que considero particularmente interessante: por que mulheres autistas demoram mais para receber um diagnóstico?

Para responder a essa pergunta, eu gostaria de, primeiramente, explicar por alto o que é autismo. Chamamos de autismo um conjunto de condições que se encaixam no transtorno do espectro autista. Por ser um transtorno definido em espectro, há grande variação dos sintomas encontrados, a depender do nível de comprometimento em que o paciente se encontra. Na extremidade “leve” do espectro, encontraremos indivíduos com baixa necessidade de suporte, que podem passar a vida inteira sem diagnóstico. Querem um exemplo? O ator Sir Anthony Hopkins descobriu, aos 79 anos de idade, ter a Síndrome de Asperger — nomenclatura ainda muito empregada para descrever essa parte do espectro. Na outra ponta, encontramos indivíduos com altas necessidades de suporte, que podem nem sequer aprenderem a falar. O que, então, é o denominador comum que permite classificar quadros tão diferentes como um mesmo transtorno? Dois eixos: prejuízo na interação social e padrões restritos de interesse e comportamento.

Aos interessados, essa é uma Ted Talk sensacional sobre o tema de autismo em garotas, cuja palestrante é uma adolescente com Síndrome de Asperger (nomenclatura antiga, mas ainda muito usada, para denominar uma forma “leve” de autismo). E sim, tem legendas em português

Com esse básico introduzido, vamos ao fato que inspirou este texto: mulheres, em média, recebem diagnósticos de transtorno do espectro autista (TEAs) mais tardiamente que homens. Num estudo que avaliou dados do Interactive Autism Network, a idade média obtida para diagnóstico de autismo em garotos foi de 3,8 anos, e em garotas essa idade foi 4 anos. Não é uma diferença por si só tão grande, mas eu faria as seguintes ressalvas:

  • O Interactive Autism Network é uma plataforma alimentada por dados inseridos pelas próprias famílias. Pode ser que as famílias de crianças autistas com menor necessidade de suporte reportem menos (por que, afinal, você gastaria seu tempo pesquisando sobre o transtorno do seu filho se esse transtorno nem é severo o suficiente para prejudicar seu dia-a-dia?), e essa é apenas a imprecisão mais relevante que consigo pensar. Embora o grande volume de dados analisado seja relevante, dados autorreportados tendem a ser menos confiáveis.
  • Só foram avaliados no estudo os registros de menores de 18 anos. Os adultos, então, estão excluídos dessa estatística, e é possível que houvesse um impacto marginal na idade de diagnóstico das meninas caso fossem avaliadas as que descobrem seu autismo apenas na vida adulta.
  • Como esse número é uma média, e como autismo tende a ser identificado logo na infância, independentemente do gênero, o volume comparativamente grande de crianças diagnosticadas fará com que a idade média de diagnóstico seja baixa. Todavia, ao analisar a porcentagem de meninos e meninas diagnosticados por faixa etária, os autores notaram que a proporção de diagnósticos femininos vai aumentando conforme a idade analisada aumenta.
  • Vamos para o mundo mágico da evidência anedótica? É bastante comum encontrar moças diagnosticadas com autismo no fim de sua adolescência ou início da vida adulta. Relatos não faltam. Mas, como eu disse, a evidência anedótica é um mundo mágico. Não é ela que temos de levar em consideração para desenhar nossa visão de mundo. O que quero ao assinalar aqui a existência desses casos — cuja única fonte é Calibri 12 (eu acho, vou acabar procrastinando se procurar no Google qual a fonte usada pelo Medium)— não é que você acredite em mim, é mais dizer que sim, você consegue achar por aí vários casos que parecem comprovar minha tese de que olhar só para a média faz com que a situação do subdiagnóstico em meninas pareça irrelevante quando, na realidade, ela afeta a muitas mulheres que estão por aí pensando que tem algo errado com elas quando, na verdade, elas são apenas pessoas diferentes da maioria, e há muito que os estudos indicam que possa ser feito para melhorar sua qualidade de vida.

Certo, agora nós sabemos que mulheres podem ter diagnósticos tardios de TEA, vamos à pergunta central do texto: por quê? A resposta é decepcionante, mas esperada (convenhamos: nós, seres humanos, ainda entendemos muito mal nossas próprias mentes): é complicado.

Uma hipótese muito cogitada é a de que nós simplesmente não analisamos bem os sintomas femininos do autismo. Não entrando aqui em discussão de isso ser fruto da biologia ou da socialização, creio que todos podemos concordar que homens e mulheres têm, em média, comportamentos muito diferentes. Se, então, mulheres neurotípicas são diferentes de homens neurotípicos, por que esperaríamos que mulheres autistas fossem iguais a homens autistas? Ainda que isso não seja evidência forte, creio ser, ao menos, sugestiva a grande discordância da comunidade científica quanto à proporção de homens e mulheres no espectro autista. Há estimativas de que haja 2 homens para cada 1 mulher autista, e há estimativas de que a razão seja, na verdade, 16:1. O consenso atual é de 4:1, porém essa grande divergência sugere que haja, ao menos, uma certa oscilação nos critérios diagnósticos (descrita maravilhosamente no 1º capítulo de O Cérebro Autista), que pode levar a um reconhecimento de mais ou menos meninas no espectro.

Independentemente dos motivos de maior prevalência de TEA entre garotos, a pergunta central continua sem ser respondida. E, sinceramente, ela tem grandes chances de continuar assim por anos. Agora, se tem um artigo que acho que analisou muito bem as hipóteses que temos até hoje, é este aqui. Nos próximos parágrafos, resumirei suas ideias principais. Em suma, é baseado nele que trarei minha resposta. Outro artigo sensacional, que deixarei de recomendação para quem quiser ler mais a fundo, é este aqui. Sem mais delongas: a primeira pessoa a descrever o autismo foi o psiquiatra Leo Kanner, que acompanhou 11 crianças, das quais 3 eram meninas. Desde esse primeiro relato, Kanner notou, ao observar como seus pacientes haviam se desenvolvido na vida adulta, que os meninos cresceram e se tornaram mais focados em seus próprios interesses, enquanto as meninas se desenvolveram em adultas mais sociáveis. Paralelamente a Kanner, Hans Asperger desenvolveu seus estudos observando um grupo de crianças que ele descrevia como “pequenos professores”. A descrição de Asperger seria posteriormente enquadrada na Síndrome de Asperger, enquanto os pacientes de Kanner receberam o diagnóstico de autismo infantil. Entretanto, Asperger não chegou a analisar nenhuma garota.

É interessante notar que as crianças observadas por Asperger seriam descritas hoje como autistas de baixa necessidade de suporte, enquanto as de Kanner tinham maiores necessidades. Asperger posteriormente enunciou que acreditava ser acaso a razão de ausência de meninas em sua amostra, embora ele tenha também dito que nunca conhecera nenhuma garota que se encaixasse completamente nos critérios diagnósticos do autismo até viajar para a América. Antes disso, porém, ele havia notado que as mães de alguns dos meninos que ele observara tinham “traços autistas”.

Em estudos epidemiológicos posteriores, foi observado que meninas com sintomas de autismo tinham, de fato, menor chance de diagnóstico, e que meninos tinham maiores chances de mostrar traços severos de autismo, mesmo aqueles que não tinham diagnóstico formal do transtorno. Todavia, mesmo as meninas que apresentavam sintomas intensos tinham menos chances de receberem diagnósticos que meninos com esses mesmos sintomas. Atualmente, o diagnóstico do TEA é baseado nas áreas de compreensão social, comunicação social, imaginação social, interesses restritos e rotinas, e respostas incomuns a estímulos sensoriais. E como o comprometimento nessas áreas manifesta-se em meninas?

  • Compreensão social: embora meninas autistas entendam dinâmicas sociais pior que pessoas neurotípicas, elas têm menos déficit que meninos autistas. O que ocorre é que autistas tendem a ser observadores, só que as meninas têm maior tendência a observar ações sociais que os meninos, de modo que elas acabam conseguindo copiar o comportamento alheio, e, assim, seus sintomas ficam mascarados. Elas costumam apreciar a companhia de colegas, mas normalmente acabam apenas seguindo seus colegas, e aguardando que eles iniciem a interação em vez de iniciá-la elas próprias. A vontade de criar laços está lá, porém está também a dificuldade. Como, afinal, formar amizades recíprocas sem conseguir entender quais são as regras que regem o jogo social? Assim, é fácil confundir uma garota no espectro com uma garota simplesmente tímida.
  • Comunicação social: muitas das garotas no espectro conseguem responder adequadamente a situações sociais, mas suas respostas não vêm naturalmente, precisam ser pensadas, e esse “atraso” pode fazer com que algumas delas se percam nas interações com outras pessoas. Novamente, elas estão em desvantagem quando comparadas a neurotípicos, mas têm menor comprometimento que garotos autistas, que sequer conseguiriam responder a algumas das situações em que as mulheres acabam “se virando”. Além disso, elas têm capacidades linguísticas superiores às de meninos com igual necessidade de suporte, e seu maior comprometimento nessa área é a dificuldade em usar a linguagem adquirida para “jogar conversa fora”.
  • Imaginação social: há evidência que as garotas com TEA sejam mais imaginativas que os garotos. Muitas têm amigos imaginários, ou mundos fantásticos imaginários, porém elas não compartilham-nos com seus colegas. Pelo contrário: quando brincam de faz-de-conta, a tendência é que sejam controladoras, e que isso dificulte a reciprocidade na hora de incluir colegas na brincadeira. Para além disso, a imaginação social descreve a capacidade de se imaginar em interações com outras pessoas e de prever suas reações, e tal capacidade está consistentemente ausente em pessoas do espectro — independentemente de seu gênero.
  • Interesses restritos e rotinas: algo crucial no diagnóstico do autismo é o comportamento repetitivo e ritualístico, somado a interesses intensos. Quando se pensa em autismo, muitas vezes o estereótipo que vem à mente é o do garotinho que ordena cuidadosamente seus carrinhos de brinquedo, e que sabe o nome de cada um dos modelos. Ele gosta de matemática e de quebra-cabeças e, na vida adulta, provavelmente trabalhará no Vale do Silício. Ocorre que garotas autistas também têm seus interesses especiais, que beiram a obsessão, mas é mais frequente entre elas que esses interesses sejam pessoas em vez de objetos. Uma menina autista poderá ter os mesmos hobbies que suas colegas neurotípicas: séries, animais, celebridades, cuidados de cabelo… A diferença está na intensidade: a garota no espectro terá fixação com esses hobbies. Como, porém, eles fogem do estereótipo, eles podem passar despercebidos até mesmo por clínicos experiente.
  • Respostas incomuns a estímulos sensoriais: nesse âmbito, independentemente de gênero, as pessoas que estão no espectro têm características muito parecidas, isto é: hipersensibilidade ou hipossensibilidade a estímulos sensoriais como ruídos, texturas, cheiros, ou sabores.

Com essas descrições, é possível perceber que as manifestações do TEA são distintas entre homens e mulheres e, tendo a maior parte da pesquisa sobre essa condição sido realizada observando indivíduos do gênero masculino, é de se esperar que os critérios diagnósticos sejam mais baseados nas experiências de homens. É comum que a menina autista apresente habilidades sociais aparentemente inalteradas, o que, sem avaliação clínica cuidadosa, pode facilmente ser percebido como neurotipicidade. O maior problema nisso é que o hábito das garotas no espectro de mascararem seus traços autistas (o que é apenas intuitivo para elas, afinal, é evidente que apresentar comportamento desviante da norma lhes traria prejuízos, de modo que elas farão esforço para se encaixar no padrão) é exaustivo, e é uma possível explicação para a alta incidência de transtornos psíquicos entre elas, como depressão, ansiedade, TOC, transtornos alimentares, e transtornos de personalidade.

Em suma: por que mulheres demoram a receber um diagnóstico? Muito provavelmente, porque os critérios diagnósticos foram baseados na observação dos hábitos e comportamentos de homens. Isso, é claro, traz implicações negativas para elas: várias são listadas no artigo que citei, mas, em linhas gerais, o diagnóstico tardio faz com que meninas no espectro passem suas vidas se sentindo estranhas no ninho, ao mesmo tempo em que se esforçam imensamente para parecerem normais — às vezes, com sucesso suficiente para “enganar” até mesmo aos clínicos. Com vista em tudo isso, os critérios diagnósticos vêm sendo adaptados para refletir melhor a realidade da parte feminina do espectro. E, como disseram as cinco autistas do vídeo que traduzi para o último post: está melhorando.

Obrigada por ler esse texto! Eu adoraria saber o que você achou nos comentários, e, se gostou, por favor, dê seu “aplauso” (de 1 a 50) aqui embaixo, e clique aqui para me encontrar nas redes sociais e não perder os próximos posts.

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