O COACH E A PÓS-POLÍTICA: DEU MATCH

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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9 min readAug 13, 2024

(A história a seguir é real. Os nomes das pessoas e demais referências foram suprimidos para proteger os inocentes.)

Na primeira década do corrente século, eu trabalhava em uma empresa jornalística que não existe mais. Certo dia, a redação foi alertada a respeito de um caso de polícia ocorrido no entorno da sede do jornal: um assalto à mão armada a uma farmácia. A editoria de Cidade mandou dois profissionais para o local.

Chegando lá, aquela confusão, policiais interrogando testemunhas, um entra-e-sai danado. Eis que um dos enviados para a apuração percebe, sobre o balcão da farmácia, um telefone celular abandonado. O cara dá uma disfarçada, olha prum lado, olha pro outro, e na primeira oportunidade — zap! — mete o celular no bolso e fica por ali, fazendo cara de paisagem. Acabado o trabalho, retorna para a redação tranquilão com o aparelho subtraído.

O sujeito só não contava com as câmeras de segurança da farmácia, que captaram com clareza inequívoca seu ato criminoso, com crachá e tudo. Pior: o celular era do dono do estabelecimento. Deu-se uma merda generalizada, o jornal fez o que pode para abafar o caso e o cleptomaníaco amador tomou uma justa causa justíssima. Diante do mico, o cara (simpático, popular, gente fina) submergiu completamente. Cortou todos os laços com os colegas de trabalho, abandonou a carreira, sumiu. A história virou uma daquelas lendas de redação implausíveis para quem não é do metiê.

Os anos se passaram e esqueci do bizarro caso e de seu protagonista. Até o dia em que recebi uma notificação via Facebook. O sujeito pego no flagra anunciava, orgulhoso, sua nova profissão. Acabara de ser diplomado como coach.

Os antigos diziam que “o papel aceita tudo”, referindo-se à disparidade entre o planejamento e a ação; entre uma previsão e um resultado concreto; entre uma ambição anunciada e a realidade dos fatos. No papel, qualquer cenário parece plausível. Quando se tira o cenário do papel, não raro vê-se que a teoria, na prática, é outra.

Se o papel aceita tudo, a internet aceita tudo e muito mais. O smartphone é a varinha de condão e o conteúdo que postamos nas mídias sociais, os feitiços que nos permitem recriar a realidade. Com essas ferramentas mágicas, podemos mudar nosso nome, aparência, currículo e histórico. Podemos recriar o passado, desafiar o presente e prever avanços ilimitados para o futuro. Na era da influência digital, somos o que publicamos.

Nesse cenário, é natural que os coaches floresçam e se multipliquem. As mídias sociais instigam o individualismo, o egocentrismo e a crença no excepcionalismo pessoal. Todo mundo quer aparecer, ser ouvido, admirado, reconhecido. Com cada tuíte, story e reel, vendemos a nós mesmos a nossos seguidores virtuais. E o negócio do coach é justamente ensinar as pessoas a se venderem de forma mais eficaz. Num mundo onde todos buscam ser influencers, o coach é o ur-influencer: o influencer que ensina os influencers a influenciar.

Mas o processo começa de dentro para fora. Antes de nos ofertarmos ao “mercado” das redes sociais, precisamos comprar uma versão aprimorada de nós mesmos para revendê-la. Essa versão “Eu 2.0” é o produto prometido pelo coach.

O coach afirma que qualquer um pode ser um vencedor. Vejam bem: qualquer um, não todo mundo. É uma diferença sutil mas crítica. Cada um de nós tem o potencial para vencer. Entretanto, não dá para todos sermos vencedores: se todo mundo vence, não há com quem tirar onda, certo? Como podemos nos diferenciar da turba e vencer de verdade? Ora, adquirindo a atitude de vencedor ensinada pelo coach. O coach garante a seus pupilos que eles deixarão de ser todo mundo, para se tornarem qualquer um. E qualquer um pode vencer! (Desde que pague o plano premium com os conteúdos secretos turbinados, em 12 vezes no Pix programado.)

Voltando ao “processo de dentro pra fora”, o coach busca atuar na mente dos aprendizes, introjetando (epa) características como tenacidade, autoconfiança, otimismo, capacidade de adaptação, persistência e coragem. Os termos “propósito”, “atitude”, “missão”, “determinação”, “superação”, “força”, “mindset”, “insight” e “resiliência” povoam as arengas desses profissionais. Todo o necessário para vencer na vida já está na sua cabeça, só falta a iluminação trazida pelo coach para liberar essa potência interior. Detalhes como experiência, treinamentos e demais qualificações formais não passam disso mesmo, de detalhes. Afinal, Deus não escolhe os capacitados, e sim capacita os escolhidos. Ou algo do gênero.

*Declaração reproduzida na Folha de S.Paulo, 04/04/2024.

Na era da pós-política, importa mais a atuação do político nas mídias sociais do que sua presença no parlamento ou no Executivo. Em lugar de um programa com propostas concretas, os pós-políticos preferem causar nas redes. E em vez de contabilizar projetos aprovados e emendas votadas, eles vivem de olho nos likes, RTs e views. Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos arquetípicos, que atuam teleguiados pelas reações dos usuários do Twitter, Facebook, Instagram et.al.

Desse modo, todo pós-político precisa ser, antes de tudo, um influencer. E a relação entre político e eleitor passa a espelhar a relação entre influencer e seguidor. Celebridades digitais atraem seguidores não pelo conteúdo que postam, e sim pela identificação pessoal e pela empatia que o público sente por eles. Com o pós-político, o mecanismo é igual: o eleitor os escolhe por se enxergar pessoalmente no candidato, não por qualquer coisa concreta que o candidato possa fazer, uma vez eleito. Nesta realidade, pouco importa o “conteúdo” (i.e., benefícios tangíveis para a sociedade) gerado pelo político. É por isso que, para os bolsonaristas, o “mito” segue como o melhor presidente da história da República, mesmo com muito pouco, pouquíssimo a citar como realizações relevantes. (Realizações positivas para a sociedade, bem posto.)

Entretanto, fora do ambiente digital, há uma contradição insuperável entre as atividades do influencer e a do político.

O influencer trabalha apenas para si mesmo. Toda ação que ele executa visa divulgar sua marca pessoal e gerar oportunidades de lucro para si. A geração de pós-políticos influencers não foge à regra. O fato de ser depositário da confiança de milhares (ou milhões) de eleitores não desvia seu foco exclusivo no benefício próprio. A mais encarniçada discussão ideológica é só mais um conteúdo para ser viralizado e monetizado.

Ai jaz a contradição, já que — segundo o senso comum, ao menos — o político é eleito para defender os interesses de seus eleitores. Ele precisa pensar no coletivo e no social, e não em seus ganhos pessoais. Mas os eleitores não se incomodam. Na verdade, estão plenamente confortáveis com a nova realidade. Eles preferem que seus escolhidos os representem online 24/7, batendo boca e lacrando, em vez de bater ponto no Congresso.

Sendo o coach uma espécie de superinfluencer, é natural que a classe também enxergue possibilidades de atuação na política. Levada a seu extremo lógico, essa perspectiva inspirou a candidatura de um dos mais renomados coaches do país à prefeitura da maior cidade do país, obviamente chancelada por um partido de direita.

(O modus operandi do coach sempre dá match com a direita, mesmo que o profissional evite falar abertamente de ideologia. A ênfase na ascensão individual, na falácia da meritocracia, na ostentação material e na autossuficiência complementa o discurso bolsonarista que prega a lei da selva e a ~liberdade~ para os “mais fortes” se postarem acima da lei e do resto da sociedade. A reprogramação mental do coach confirma, para os aprendizes, a justiça da ideologia de extrema direita. Economicamente, há a demonização constante do estado, que só “atrapalha o empreendedor” com impostos e regulações e fomenta a “acomodação” do povo por meio de programas sociais.)

Também é natural que as contradições entre os papeis de político e de influencer se exacerbem na figura do coach. Como vimos, ele atua primordialmente no nível do indivíduo. Mais do que qualquer outro tipo de influencer, o coach prega o individualismo e abomina a coletividade. “Bem comum” não é uma expressão que consta de sua lista de jargões e clichês. Um profissional dedicado ao desenvolvimento da mais privada das iniciativas privadas — a trajetória pessoal de um indivíduo — estaria apto a pensar em uma coletividade composta de milhões de indivíduos?

A promessa de transformação do coach é no plano psíquico de cada um dos aprendizes, e não num contexto social mais amplo. Aperfeiçoados após o processo de evangelização, os coachees (é isso?) estariam aptos a deixar sua marca pessoal no mundo. Mas não se tornam (necessariamente) cidadãos melhores ou indivíduos mais bem preparados para viver em sociedade.

Isso se reflete nas propostas do coach-candidato no páreo pela prefeitura de São Paulo. Entrevistas e sabatinas com a figura revelam frases como:

  • “(Os pobres) têm que criar suas oportunidades!”
  • “A gente precisa de um câmbio de energia.”
  • “E eu só ando de helicóptero, é um sonho, eu tenho um sonho novo agora. É não andar mais de helicóptero em São Paulo.”
  • “Imagina a gente encher o estádio do Itaquerão e falar, ‘vocês estão desempregados, então aqui, vocês vão fazer isso e isso. Conta comigo (sic).’”
  • “A partir de 2025 todas as empresas vão ter braço de ensino e nós vamos fazer com que as empresas ensinem adultos com inteligência emocional, com finanças, com empreendedorismo.”

Ou seja, como candidato, ele segue discursando e se comportando como um coach. Oferece soluções (sic) genéricas, platitudes e palavreados retirados de palestras motivacionais. Garante ser capaz de transformar vidas, mas sempre de uma perspectiva estritamente material e de crescimento individual. Nas entrelinhas, o anúncio: “Como prefeito, darei ao povo o mindset para virar a chave e entrar no modo de prosperidade. Em resumo, se fodam aí e não contem com a prefeitura para coisa alguma.”

Para além das platitudes, o ponto chave da entrevista linkada acima é o momento em que o coach admite, de modo cândido, as reais intenções por trás de sua aventura política.

  • “Até agradeço o espaço de vocês para a gente mostrar o que eu estou fazendo. Existe uma desconfiança, muita gente acha que eu estou dando um golpe de marketing, que eu estou de brincadeira (…) Tem gente que acha que eu vou parar meus negócios, que tem um valor de mercado de bilhões, para ficar fazendo gracinha.”

Não, ele não parou seus negócios. Sua candidatura é apenas mais um de seus negócios. É mais uma pauta para vídeos, um assunto para uma live, um canal a ser monetizado. Rende exposição, aumenta o alcance, amplia o público potencial. A campanha eleitoral é só um novo produto, enfim.

No dia seguinte ao primeiro debate televisivo, o coach gabava-se das visualizações (na casa das dezenas de milhões) acumuladas com os vídeos editados de sua participação no programa. Quem viu, garante que não passou de um festival de sandices, incoerências e agressões gratuitas. É coerente com o que se espera de um candidato a prefeito de São Paulo? Há alguns anos, não seria. Hoje… é mais conteúdo, perfeitamente formatado para viralizar.

Chegamos então a um estágio mais avançado da pós-política. A fase inicial trouxe políticos desinteressados em trabalhar efetivamente em favor de seu eleitorado (em suma, desinteressados em fazer política). Mas que precisavam ser eleitos para manterem-se em evidência e ampliar seus ganhos pessoais. Nesse sentido, não são tão diferentes dos políticos tradicionais.

O coach-político prescinde do poder político institucional. A campanha — o momento em que o político está mais em evidência, falando diretamente aos correligionários — já lhe basta. Se o pós-politico 1.0 queria ser eleito para realizar nada, a versão 2.0 nem precisa chegar lá. O lucro, os seguidores, as métricas se multiplicam em tempo real, sem esperar o resultado das urnas.

Tudo isso é tão cristalinamente óbvio, que nem deveria haver a necessidade de escrever este calhamaço a respeito.

A deterioração da política tradicional e a quebra de confiança do público nas instituições são irreversíveis. O ruído informacional e a polarização incessante nas mídias sociais inviabilizam a formação dos consensos mínimos necessários para que a dita “democracia liberal” funcione. Em meio a essa fragmentação e desconfiança generalizadas, as pessoas sentem que só podem confiar em si mesmas. Ou naquele cara que diz que elas só podem confiar em si mesmas. Para quem enxerga “o sistema” como um inimigo e está cansado das falhas das instituições, votar no coach é como votar em si mesmo. Esse eleitor está cansado de políticos que prometem governar para todo mundo (a coletividade); quer um político que governe para qualquer um (ele mesmo).

É mesmo um tremendo câmbio de energia.

O papel aceita tudo, a internet aceita muito mais. Aceita que o coach, uma categoria que não produz coisa alguma de concreto além de papo furado, ascenda ao topo da cadeia alimentar das mídias sociais. Aceita que um elemento dessa categoria resolva se lançar na política, sem esconder por um momento suas reais intenções. Os eleitores, de sua parte, também aceitam essa aventura e vão além: se entusiasmam e embarcam junto.

A internet aceita até que um coleguinha caído em desgraça se reinvente como coach. A filiação a um partido político pode ser o próximo passo? Não faltam resiliência, mudança de mindset e determinação.

Não foi tempo perdido!

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)