O BRASIL DEPOIS DO BRASIL (ou: Não, Tim, nada vai ficar OK)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
19 min readJan 20, 2021
Tirinha do Verissimo de 1991, incluída na coletânea “As Cobras — Antologia Definitiva” (Ed. Objetiva, 2010)

Dos jornalistas independentes que escrevem em inglês, Tim Urban é o que mais admiro. Na verdade, nem sei se é exato ou apropriado chama-lo de “jornalista”. Ele escreve reportagens, mas com uma apuração tão densa e exaustiva (no bom sentido) que cada texto se torna um verdadeiro tratado. O cara cisma com um tema, se enfronha no lance, enfrenta pilhas de livros, filmes, trabalhos científicos, entrevista dezenas de pessoas, e meses depois publica (on-line, de graça) um calhamaço tão enorme quanto divertido de ler. Fascinantes em especial são os posts sobre criogenia, a história do Iraque e os avanços em inteligência artificial.

Em 9 de novembro de 2016, logo depois da vitória de Donald Trump na eleição presidencial nos EUA, Urban escreveu um post singelamente intitulado “It’s Going to Be Okay”. No texto, ele (homem, branco, intelectual, progressista, morador de uma grande cidade) tentava racionalizar, tanto quanto possível, a derrota de Hillary Clinton e afirmava: por piores que as coisas parecessem, “a América é maior que eu e você, e é muito, maior que Donald Trump.”

Exatos três dias depois, o blogueiro publicou outro post. Este, baixando bem a bola. Soterrado por replies negativos ao primeiro texto, Urban reconheceu que os EUA haviam mesmo se tornado um país mais intolerante e reacionário, e que a vitória de Trump só iria piorar o panorama. “São tempos assustadores para muitas pessoas que vivem na América. (…Eu foquei) na visão de longo prazo e, de modo descuidado, não considerei o atual estado de coisas. Peço desculpas.”

Ambos os posts de Urban estavam em minha mente quando escrevi essa thread no Twitter, em 11 de outubro de 2018. Quatro dias antes, 117.364.560 brasileiros compareceram às urnas no primeiro turno das eleições de 2018. Desse total, 49.276.990 digitaram o “17”, conferindo à coligação Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos o primeiro lugar na apuração. Obteve quase o suficiente para a vitória imediata, ao somar 46,07% dos votos válidos.

Como visto no tuíte original, eu estava em São Paulo em 11/10/2018. Cheguei à cidade no domingo da eleição, para uma estadia de oito dias (uma merecida folguinha do day job). Acordei cedão, fui um dos primeiros votantes em minha seção e de lá mesmo parti para a Rodoviária Novo Rio. Passei a viagem desconectado; cheguei ao Tietê no meio da tarde, deixei a mala no hotelzinho barato na região da Bela Vista, desci pra comprar uma garrafa de vinho igualmente barato, liguei a tevê do quarto e o futuro presidente da República fazia seu discurso como vencedor do primeiro turno. Aquele, da famosa frase “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos.”

Veio-me à cabeça a reação de Tim Urban à vitória de Trump, e a vontade imediata de sintetizar em texto o que eu sentia diante do cenário à frente. Eu tinha muita coisa a expressar (um tanto disso tudo foi parar no meu primeiro livro, Velha Nova Era). Mas não consegui escrever mais que a tal thread, quatro dias depois: uma reação visceral depois de quase morrer de raiva ao ler a entrevista de um general, do qual nem lembro o nome hoje, que estava cotado para o ministério dos Transportes.

Quatro anos, dois meses e 27 dias depois de “It’s Gonna Be Okay”, dois anos e três meses depois do 1º turno de 2018, eu afinal sentei para botar no papel (na tela) minhas percepções sobre o abismo em que o Brasil se atirou, por vontade própria. Essas percepções podem ter sido (provavelmente foram) alteradas por alguns acontecimentos no plano pessoal que, nos últimos dois anos, ajudaram a tornar o abismo ainda mais sombrio.

Faço questão de sublinhar a data porque em 6 de janeiro de 2021, o dia em que enfim comecei a escrever a presente montanha de caracteres, os quatro anos do governo Trump chegavam a uma conclusão ao mesmo tempo absurdamente chocante e 100% previsível. Achei bem apropriado.

What about now, Tim? Do you think it’s gonna be okay?

1. Raiva

A tristeza que senti diante da entrevista do presidente eleito e a raiva que senti com a entrevista do tal general vêm se fundindo em minha mente, desde 2018. São os efeitos colaterais de se viver na “nova era” anunciada pelo governo vitorioso, um influxo constante de tristeza e raiva alimentado pela torrente de informações nas redes sociais, que nos engole com a força de um vício: faz mal e sabemos disso, mas voltamos para mais.

Comecemos pela raiva. Ela é o motor da ideologia da nova era. É tudo que o regime atual tem a oferecer a seus seguidores, e o único sentimento que espera despertar em seus opositores. O presidente da República é o avatar vivo do ressentimento, da trollagem e do sadismo, os verdadeiros traços de união nacional. É fácil entender a raiz dessa ruindade toda. Trata-se de um povo que há 520 anos vive jogado à própria sorte. A sociedade brasileira, desde Cabral, é constituída para que a imensa maioria sirva a uma pequeníssima casta dos iluminados. O que uns chamam de instituições, outros de sistema, e uns terceiros de ixtabrishmen, não passa de um conjunto de convenções plantadas para dar à imensa maioria a esperança de que, se você for trabalhador, heterossexual, temente a Deus e conformista, terá um dia seu esforço recompensado.

A “nova era” então surge lá atrás, bem antes do atual presidente pensar em nascer — ela surge quando o povo começou a perceber que o ixtabrishmen nunca teve a menor intenção de cumprir o que prometeu. Não é surpreendente que o brasileiro sinta raiva de tudo e todos. Ele vive enganado desde 1500. A inovação da “nova era” foi estabelecer a raiva como arma política. O sentimento estava fermentando por aí há gerações, mas precisava de um avatar para deslanchar todo seu potencial.

O presidente eleito pelo PSL em 2018 sempre foi a figura ideal. A epítome do brasileiro folgado que se acha superior aos outros, mesmo sem motivo algum para tanto. Uma caricatura ambulante dos piores clichês machistas, misóginos e reacionários imagináveis. Histórico medíocre em tudo o que se propôs a fazer. Vida pública desprovida de realizações concretas, à parte o lobismo pró-militares. Associado, com orgulho, à ascensão das milícias no estado do Rio de Janeiro. E, como vem se tornando cada vez mais evidente, enrolado (junto à família) em casos de corrupção no Legislativo. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, o capitão reformado do Exército sintetiza há mais de 30 anos a raiva basal do brasileiro “contra tudo isso que está aí”.

O nós-contra-eles reduzido ao eu-contra-tudo, assumido como filosofia de vida. A lei de Gerson se transmutando num individualismo sociopático. A desconfiança de qualquer iniciativa voltada à coletividade. A falta de respeito pelo espaço público e pelo espaço privado alheio. O desprezo pelos direitos humanos básicos. A certeza de que o estado só serve para roubar o povo, e a paradoxal propensão a viver encostado nesse mesmo estado. Enfim, a vida reduzida a uma mal disfarçada luta pela sobrevivência, na qual não há espaço para a tolerância e a convivência com pensamentos diferentes. O pai do 01, do 02, do 03 e do 04 captou essa raiva difusa, tomou-a para si, acertou seu foco e a transformou em ideologia. Amarrando (mal) a coisa toda, arengas sobre patriotismo, religião e valores conservadores. E, para que não houvesse dúvidas sobre o objetivo terminal do projeto, a glorificação diuturna das armas de fogo, da tortura e da violência.

(É possível alegar, como muitos isentões insistem, que a retórica do nós-contra-eles foi uma criação do PT. Sim, Lula ascendeu cavalgando a narrativa elites X povo, base de sua retórica populista. Mas — como veremos adiante — há uma diferença entre uma visão progressista e propositiva sobre esse embate e uma ideologia reacionária que não propõe coisa alguma.)

Discursos de 2018 e 2019 resumem isso. Além do “ponto final em todos os ativismos”, o vencedor daquela eleição também prometeu “fazer o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás” e afirmou que “o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa.” Os alvos da “desconstrução” anunciados durante a campanha eram claros: a oposição em geral e o PT em particular, a imprensa, o tal ~pensamento politicamente correto~. Na economia, no meio ambiente, na educação e no plano social, nada além de mais promessas de “desconstrução”. Desesperado com a ameaça de outro governo do PT, o ixtabrishmen abraçou o improvável líder nas pesquisas. Não abraçou com muita convicção, nem muito apertado, nem fez questão de tirar fotinho abraçadinho, mas abraçou. E o líder nas pesquisas ganhou.

Há um problema das ideologias baseadas na raiva: elas são ótimas para se usar em campanha ou quando se está na oposição. Quando se precisa governar a partir delas, a coisa tende a não funcionar. Como Tim Urban em 9/11/2016, eu acreditava que um governo do capitão reformado seria muito ruim, mas não poderia ser tão ruim, certo? Meu medo maior antes da posse era a sombra de um autogolpe, hipótese ventilada tantas vezes por tantas pessoas ligadas ao presidente (e, afinal, pelo próprio). Ainda há esse risco, aliás. Mas eu achava que, dada a experiência do mandatário na cloaca do baixo clero parlamentar, seu governo seria uma versão populista do velho toma-lá-dá-cá. Deixariam o homem com a Bic na mão, ruminando suas obsessões particulares, enquanto a fisiologia nossa de cada dia tocaria o barco.

Entretanto, viu-se logo nas primeiras semanas de gestão (?) que o papo de “desconstrução” não era apenas verdadeiro, mas também não tinha qualquer limite. Por ação ou por inação, deliberada ou randomicamente, o governo se pôs a destruir o Brasil construído desde o fim da ditadura militar. A sanha ~desconstrutora~ contribuiu para a devastação do meio ambiente, para criar crises inéditas com os principais parceiros no comércio exterior, para a carbonização da imagem do país no plano diplomático, para o desmantelamento da política federal de direitos humanos, para a politização/o desmonte na educação pública.

Amigo, “engano terrível” é pegar um ônibus errado. Isso aí tem outro nome.

Na economia, o processo foi inverso: a incompetência do “gênio” que queria “privatizar tudo” melou com a bonança ultraliberal prometida ao 1% na campanha. A cultura foi entregue, sucessivamente, a um nazista, a uma ex-atriz de novelas e a um ex-astro de Malhação. Até mesmo um negro racista foi encontrado, sei lá em qual profundeza, e instalado na Fundação Palmares.

O apetite por destruição foi tamanho, que no plano político se converteu em autodestruição. Paranoia, autoritarismo e grosseria colocaram o chefe do Executivo contra tudo e todos: o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público, a cúpula das forças armadas, seus próprios ministros e até o partido pelo qual se elegeu. O isolamento voluntário de um presidente que “tinha tudo para dar certo” acabou, de certa maneira, sendo benéfico para a democracia. Afinal, para dar passar a perna na constituição como rolou na Hungria (um dos modelos para o regime atual), o mandatário precisaria ao menos de uma base forte no Congresso. Levou quase dois anos para o governo se render e apelar ao centrão, caindo mais uma vez em contradição.

A cada nova ~polêmica~, a cada demonstração embaraçosa de incompetência ou decisão que contrariava o bom senso, surgia a grita nas redes sociais: “Cortina de fumaça!” Mas uma cortina de fumaça pressupõe que há algo a ser camuflado. A possibilidade de não haver coisa alguma a esconder parece ser aberrante demais para que as pessoas (incluindo eleitores declarados do 17 em 2018) admitam. Para mim, nunca houve dúvida. Não há o que esconder; o governo é isso aí e acabou. Pode ser mais reconfortante pensar que existe uma lógica maquiavélica por trás das cabeçadas do Planalto. Mas não existe. O que existe é apenas caos, burrice e loucura. Isso é suficiente para o presidente cumprir sua única proposta concreta, a de destruir o Brasil. Ninguém pode dizer que ele não está tentando.

Aí emerge um outro problema da ideologia fundamentada na raiva. Ela se preocupa com a destruição do atual sistema — mas não apresenta uma proposta alternativa. Os primeiros meses se passaram, se transformaram em um ano, em dois, e tornava-se óbvio que a beligerância do presidente e de sua família não era um meio para concretizar um projeto político. A beligerância era o projeto político. O clã que manda no Brasil não enxerga a esquerda como oposição; seus inimigos (inimigos, não adversários) são as instituições que ainda garantem, de modo cada vez mais claudicante, o funcionamento da democracia representativa no país.

Começaram a pipocar artigos que, afinal, punham os pingos nos “is”. Apesar de falar muito em “valores conservadores”, o chefe do Executivo se comporta como um revolucionário. E um catatau de gente que o apoiou na campanha (agronegócio, lava-jatistas, empresários, artistas) ficou sem alternativa a não ser renegá-lo. Ora, amigos. Quando ele falou que precisava “desfazer muita coisa”, qual parte vocês não entenderam?

Como tem coisas que só acontecem com o Botafogo e com os brasileiros, pouco depois do primeiro aniversário do governo empossado em 2019, a pandemia de Covid-19 chegou aqui. Mesmo que tivéssemos um governo eficiente e empenhado em enfrentar a doença, ainda seria um período para lá de difícil. Muita gente simplesmente não tem condições de ficar em isolamento; é preciso trabalhar, e menos de 23% dos trabalhadores do país têm a opção de adotar o home office. Outros tantos não se isolam porque cagam para os riscos da pandemia. Desnecessário detalhar as carências crônicas do SUS e a falta de condições para lidar com uma emergência de saúde pública global.

O caso é que, em cima disso tudo, o governo também é ineficiente e nem um pouco empenhado. A maneira como o presidente vem lidando com o coronavírus deixou o mundo inteiro atônito. Apenas um outro líder nacional — o adorado Trump — demonstrou comparáveis descaso e irresponsabilidade. A pandemia ofereceu a nosso mandatário uma oportunidade atrás da outra de superar seu ídolo. Negar a ciência? Check. Politizar uma crise de saúde pública? Check. Incitar a discórdia no próprio gabinete, num momento em que mais se precisava de união? Check. Deixar o país sem ministro da Saúde e afinal nomear um militar desprovido de experiência em medicina? Check. Minimizar o luto coletivo de um país inteiro? Check. Toda uma visão de mundo traduzida em atitudes e em uma expressão de duas palavras curtinhas.

O ano de 2020 foi o mais próximo que nós, brasileiros do século 21, chegaremos da experiência de passar por uma guerra. Exagero? Sei que a pandemia arrasou o que sobrava da economia, aumentou a miséria do povo, extinguiu milhares de empregos e causou danos psicológicos ainda a serem estimados em sua totalidade. Ah, claro, eu já ia esquecendo: 200 mil mortos, em 07/01/2021. E daí?

No penúltimo parágrafo, eu escrevi uma meia verdade. Afirmei que “o mundo inteiro” ficou atônito com a postura do presidente. Todo mundo?

Nem todo mundo.

A ideologia da raiva e as redes sociais nasceram uma para as outras. O populismo de direita do terceiro milênio tem uma relação simbiótica com plataformas como o YouTube, o Facebook e o Twitter — nas quais pode propagar desinformação, atacar a democracia e disseminar ódio. Mais do que um meio de divulgação, as redes fornecem ao criptofascistas de nossos dias a oportunidade de recriar a realidade. Ao consumir (apenas) conteúdos que reforçam suas convicções prévias e reverberá-los nas redes, os seguidores do regime acreditam que suas postagens podem negar fatos consumados e transformar vontades em verdades.

“Acreditar”, aliás, é o verbo chave para definir a relação entre os liderados e o líder, usado no sentido espiritual da coisa. O crente crê sem precisar de provas; considera estar sempre certo em sua crença, mesmo diante de qualquer evidência em contrário. É um aspecto fundamental da dita era da pós-política. Não há mais correligionários, e sim fiéis. O fiel não crê na divindade pelo que ela pode fazer no plano físico, mas sim pela promessa de uma recompensa espiritual, metafísica. A divindade não precisa fazer milagres que para que os VERDADEIROS fiéis continuem o seguindo, sem questionamentos.

Traduzida para o léxico do neopopulismo de direita, a premissa cria a figura do governante que não precisa governar. Basta que esteja lá, representando seus escolhidos e acima de tudo impedindo que qualquer outra ideologia herética chegue perto do poder. Antes de sua posse, eu acreditava que ele iria governar apenas para seus devotos, ignorando ou antagonizando o resto da população. O que se vê é ainda mais sinistro; o capitão reformado governa (sic) para ninguém além de sua família. Parece mesmo odiar a imensa massa de pobres que votou nele em busca de uma mudança.

Não importam os 200 mil mortos, os 14 milhões de desempregados, a devastação ambiental, o isolamento diplomático, a inflação em disparada: para os fiéis, o mito é o “melhor presidente da história do Brasil”, uma crença retroalimentada pelas postagens criadas e compartilhadas por eles mesmos, que confirmam a grandeza do líder e a pequenez dos hereges.

2. Tristeza

Se você chegou a esta altura do texto, já deve ter entendido o porquê da minha tristeza. No Brasil de 2021, é preciso seguir em frente usando antolhos. Quem para e olha o entorno sucumbe. O resultado da eleição de 2018 rachou de vez o país e conseguiu uma proeza: irmanou vencidos e vencedores na desesperança. Sobre os vencidos, nem preciso explicar. Os vencedores já não acreditavam no conceito de esperança antes.

Nas recentes discussões sobre a vacinação contra o Covid-19, um dado me chamou a atenção. Pesquisa do Datafolha de dezembro constatou que 22% da população afirmaram que não pretendem tomar qualquer vacina. Se o número parece familiar, é porque corresponde exatamente ao percentual de pessoas que declararam ao mesmo Datafolha a intenção de votar no atual presidente, na última pesquisa antes do atentado à sua vida, ocorrido em 6 de setembro de 2018.

Esses 22% da população brasileira maior de 18 anos dão a dimensão exata do núcleo duro de seguidores do capitão reformado — os irredutíveis, os que se identificam pessoalmente com a filosofia pregada pelo presidente. “Ah, mas ele teve mais que o dobro disso aí só no primeiro turno”, dirão uns. Certo, mas foi uma massa que chegou depois da facada, quando a atenção sobre sua campanha se multiplicou. Junte a isso os antipetistas de diversos espectros, e temos a votação vencedora.

Vinte e dois por cento da população adulta. (Mais de) uma em cada cinco pessoas concordam, espontaneamente, com as ideias do mito e com suas propostas para o país. Gente pra caralho. Como dizem os ingleses, deixe isso afundar.

Não é motivo para ficar triste?

Desculpem pela imagem forte.

Contemplando a vitória de Donald Trump, Tim Urban escreveu em “It’s Going to Be Okay”: “Se quisermos olhar de um modo positivo, precisamos responder a uma pergunta: por que essas 50 milhões de pessoas votaram em Trump?” Tenho feito a mim mesmo a versão brasileira dessa pergunta desde 2018. Consigo entender as razões dos outros 24%. Discordo, mas entendo. Além do mais, com esses 24% existe diálogo. Já os motivos dos 22% TRVE são insondáveis. Quer dizer, não são. Conforme descrevi lá em cima, não faltam motivos pra se ter raiva do Brasil e apoiar alguém que promete passar a borracha em tudo. Mas é preciso ser desse jeito? Com tanta raiva, tanto recalque? É preciso olhar para trás, e não para frente? Como passamos de “50 anos em cinco” para “Vamos resgatar o Brasil de 50 anos atrás”?

Daí, a tristeza.

Na tarde do dia 21 de outubro de 2018, duas semanas depois do primeiro turno das eleições, eu recebi um telefonema. Era um domingo à tarde, eu estava em casa, assistindo ao Grande Prêmio de Fórmula 1 dos Estados Unidos. Ao telefone, minha ex-cunhada, que, muito nervosa, disse que meu pai tinha “caído e estava muito mal”. Troquei de roupa e me desloquei o mais rápido que pude do Flamengo para o Hospital Municipal Luiz Palmier, perto do Centro de São Gonçalo. Após uma curta espera no ambulatório, veio um médico dizer a mim e ao meu irmão que nada pôde ser feito. Aos 75 anos, meu pai estava morto.

Afinal, o telefonema chegou. Vinha esperando por esse telefonema desde 2004, quando meu pai teve o primeiro infarto, aos 60. Ele não tinha doenças crônicas nem levava um estilo de vida particularmente insalubre, mas fumava desde a pré-adolescência. O susto o fez largar o cigarro… por um tempo. Depois passou a fumar escondido. Depois chutou o balde. “Fumando ou não fumando, vou morrer mesmo”, justificava-se (sic). Nos últimos anos, notava-o pouco a pouco mais alquebrado, cansado, reclamando de dores e de falta de fôlego. Mas o epílogo veio sem aviso prévio. A família ouviu um baque surdo no quintal. Logo depois acharam-no lá, caído. Não levantaria mais.

No domingo seguinte, 28/10/2018, dia do 2º turno das eleições, precisei pegar uma calça jeans do meu irmão emprestada — vários números acima de cintura — para ir à missa de 7º dia de meu pai. Sem cinto. Após o ritual, eu, literalmente com as calças na mão, fui interpelado por um tio e uma tia, ambos irmãos do finado. Sem qualquer prolegômeno, o tio me inquire:

“Vai votar em quem? No Haddad não, né?”

Sorri o melhor que pude e disse: “No outro não dá…”

No outro flanco, a tia: “Mas meu filho, você não está vendo a roubalheira do PT… olhe o estado das escolas, os hospitais…”

Girei nos calcanhares e deixei-os falando sozinhos. Acenei um tchauzinho, mas não olhei para trás. É preciso ser desse jeito, mesmo em uma missa de 7º dia?

Apesar de prevista, a morte de meu pai me abalou muito mais do que eu supunha ser possível. Ele não acreditava no doce porvir além-túmulo, e herdei dele a descrença. Ver seu caixão descendo os proverbiais sete palmos foi um baque ainda a ser digerido, mais de dois anos depois. Ele não estudou muito, nem pouco; não deixou um tostão de patrimônio, mas nunca passou fome (nem nos deixou passar); não se empolgava de verdade por quase nada, a não ser com o radioamadorismo, hobby praticado durante toda a vida adulta. Reclamava pouco, ambicionava menos ainda e se aborrecia com praticamente nada. Uma vez, ele me disse: se pudesse escolher entre qualquer profissão do mundo, seria… operador de telégrafo?!

Conheço esse símbolo e essa sigla (Liga Brasileira de Amadores de Rádio Emissão) desde criança. Um dos grandes orgulhos de meu pai era sua coleção de cartões enviados por radioamadores de todo o mundo. Não sei que fim levou o acervo.

A acomodação de meu pai com sua vidinha me perturbava. Esforcei-me para cumprir uma trajetória mais… como dizer? Plena? Inspiradora? Bem-sucedida? Sei lá. Consegui? Sei lá. Sei que me estressei muito mais que meu pai, trabalhei muitas noites, feriados e fins de semana a mais, esgotei minha paz de espírito múltiplas vezes rolando a pedra morro acima nessa trajetória. Eu deveria ter observado o exemplo do meu pai mais atentamente. Durante o enterro, mais uma ficha caiu: corri muito mais que meu pai correu, mas vou parar no mesmo lugar. Eu me antevi ali, sendo sepultado com ele. Clichê, né.

O segredo de uma vida adulta funcional é nunca parar e perguntar “Para quê?” Se você parar, olhar pro lado e perguntar a si mesmo “Para quê?”, não vai fazer mais coisa alguma na vida. Depois da morte de meu pai, passei a me questionar de maneira contínua: “Para quê?”

Em 2019, o impacto da perda somado a uma sequência de pequenas catástrofes profissionais e de desavenças domésticas logo no começo do ano me atiraram de cabeça num processo que, no século passado, seria classificado como crise de meia-idade. Hoje, não sei qual nome teria. Passei o ano arrastando correntes metafóricas; deixei de ver sentido no trabalho, cometi excessos ocasionais, tornei a vida familiar mais difícil, senti pesadamente no corpo o desgaste dos anos, engordei e não consegui emagrecer, larguei a corridinha matinal, gastei dinheiro com o pior tipo de drogas (as não-recreativas, com receita médica). Cheguei a cogitar uma chutada radical no balde — largar tudo e abrir um bar. Plano, claro, abortado pela pandemia.

À crise existencial, se somava à tristeza — que, como a raiva, tinha suas definições atualizadas diariamente, via redes sociais. Alimentado por TTs, likes e RTs, o monstro da caixa de comentários é o cão de guarda virtual do mito. A internet brasileira sempre refletiu a raiva que o povo sente. A polarização crescente no cenário político desde 2013 afiou a retórica do pessoal. Na “nova era”, a coisa evoluiu (evoluiu?) para um carnaval non-stop de ignorância, sadismo e intolerância. Quem se engaja, é pago em raiva. Aos espectadores, resta a tristeza. Mas para quem trabalha com informação, é difícil ficar ausente das redes sociais. Diante do evidente efeito negativo que elas causam, tentei nos últimos anos me afastar, mais de uma vez. Do Facebook, ao menos, consegui. Insisto no Twitter, que uso basicamente para me manter atualizado — e triste.

Nem preciso dizer que 2020, um dos piores anos na história da humanidade, não trouxe muitos motivos para aliviar o aperto no peito. O isolamento social e a rotina de intermináveis conexões remotas acabaram com a dinâmica do cotidiano, borrando os limites entre dia e noite, horário comercial e folga, feriado e dia útil. Apesar de tudo, reconheço o privilégio de ter mantido meu emprego e de ser capaz de exercê-lo em casa, num momento em que tantas pessoas perderam seus trabalhos. E consegui lançar o quarto álbum do meu projeto musical. Não foi o suficiente para superar o luto, um luto não apenas por meu pai, mas pelo fim do Brasil. Ou, ao menos, de uma ideia de Brasil.

Pois vivenciamos desde outubro de 2018 a aniquilação de um Brasil que nunca foi perfeito, mas que tinha o potencial para ser gentil, pacato e desapegado. Ou melhor, perseguia o ideal de ser isso tudo. Esse sempre foi o Brasil do mundo das ideias. Mesmo que, lá embaixo, na caverna, os 50 mil assassinatos por ano e a pior desigualdade econômica do planeta persistissem. A ascensão do mito e a difusão de seu modus operandi como o novo normal (na política, na comunicação, no trato com a coisa pública) acabaram de matar o já cambaleante ideal anterior de Brasil, e o substituíram por algo grosseiro, agressivo e egoísta.

Vivíamos antes um autoengano, na crença de que um dia superaríamos os assassinatos e a desigualdade. Em 2018, acordamos para a realidade e vimos que a ordem — vinda do Planalto — agora era festejar os assassinatos (desde que não fossem de cidadãos-de-bem) e ignorar a desigualdade (pois ela só prejudica a quem merece).

E (mais de) um entre cada cinco brasileiros adultos comprou a ideia, de livre e espontânea vontade. Isso é triste.

Um consolo doce-amargo: meu pai, que era um cara gentil, pacato e desapegado, não testemunhou isso.

--

--

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)