Comer carne é um dano líquido? uma colaboração entre um comedor de carne e um vegetariano

Altruísmo Eficaz Brasil
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10 min readJan 19, 2020

[O seguinte é a tradução de uma “colaboração antagônica” aplicada ao tema da ética do consumo de animais, escrita por David G e Froolow, publicada originalmente no blog racionalista SlateStarCodex (SSC) do psiquiatra Scott Alexander.

Uma colaboração antagônica, Scott define como sendo “quando duas pessoas com visões contrárias sobre uma questão controversa trabalham juntas para apresentar um resumo unificado das evidências e das suas implicações”. Basicamente, é como desfrutar do resultado final de um debate entre especialistas sem precisar passar por todo o debate, retórica e discordâncias.

Trata-se de um bom exemplo de que, embora difícil e rara, a convergência de ideias em questões importantes e polêmicas é ao menos possível, com a ajuda de evidências e boa vontade.]

Este é um post longo, e assim será publicado aqui em sete partes para cada seção. Neste primeiro capítulo será debatida a questão da consciência animal. Caso deseje pular para algum dos demais capítulos:

Parte 2-Condição de criação dos animais,

Parte 3- Felicidade e vidas dignas de serem vividas

Parte 4-Implicações para a saúde humana

Parte 5-Impacto Ambiental

Parte 6-Custos em mudar para uma dieta vegetariana

Parte 7-Conclusão

Introdução

Muita gente mundo afora tem fortes convicções sobre comer animais. Elas com frequência se baseiam em intuições vagas, o que resulta em trocas improdutivas de opiniões entre vegetarianos e comedores de carne. O objetivo desta colaboração é investigar todas as considerações relevantes a partir de um quadro de referência em comum.

Para ajudar a fundamentar esta discussão, produzimos um auxílio de decisão explicitando tudo que é discutido abaixo. Você pode baixá-lo aqui e o encorajamos a brincar com ele.

A questão central é se as vidas de animais na pecuária industrial são dignas de se viverem; a alternativa realista a comer carne não é uma vida melhor para estes animais, mas eles nem existirem para começar.

Começamos investigando quais animais são conscientes. Então comparamos a literatura da felicidade com as condições em que os animais são criados industrialmente para descobrir se, da perspectiva deles, a inexistência é preferível. E finalmente, pesquisamos os impactos mais facilmente mensuráveis do consumo de carne sobre o meio-ambiente, as finanças e a saúde.

1. Consciência

1.1. O que é consciência?

Este ensaio não se trata de uma teoria geral da consciência. Tentamos pesquisar isto e a principal coisa que tiramos disso é simplesmente que a consciência é algo realmente, realmente esquisito. Quando dizemos que uma coisa é “consciente” queremos dizer simplesmente que é “como algo ser esta coisa”, e que se fôssemos esta coisa ligaríamos se coisas “boas” ou “ruins” nos acontecessem.

De particular relevância é a experiência consciente de dor e sofrimento, que consideramos moralmente indesejável quando ocorre em nós e nos outros. A maioria dos animais possui sensores de dano, mas engatilhá-los pode não resultar na experiência subjetiva de “sofrer” se o animal não for consciente ou o estímulo for uma presença constante a que ele se acostumou.

E este é o absoluto âmago desta investigação; se animais sofrem sob os padrões de criação atuais a ponto de preferirem a inexistência, então há um ônus moral sobre os comedores de carne de justificar comê-los.

Para resolver isto, procuramos em diferentes animais dois tipos de evidência para a consciência:

1. Uma arquitetura cerebral similar à humana resultante do mesmo processo evolutivo

2. Comportamentos que são difíceis de explicar exceto com referência a ter experiências

1.2. Que partes do cérebro são “responsáveis” pela consciência?

Você pode presumir que a consciência é simplesmente causada “pelo cérebro”, porque sem ele como poderíamos pensar (ou fazer) qualquer coisa? No entanto, uma enorme parte do processamento de informação inteligente acontece em nosso cérebro sem dar à luz a experiência consciente.

Tente perceber o que acontece quando você lê a frase “Grupo de garis para de trabalhar para receber aumento”. Perceba que a palavra “para” apareceu duas vezes, mas na primeira você não só a interpretou como a ouviu na sua mente como um verbo, na segunda vez como uma preposição. Antes que as palavras aparecessem na sua mente consciente, como imagem na tela, como som na sua cabeça, como um sentimento de entender a frase, o seu cérebro já tinha feito toda a parte difícil de descobrir o que elas significam subconscientemente, sem você ter experiência de nada.

Se você separasse a medula espinhal, o bilhão de células nervosas na coluna vertebral que conectam o seu cérebro aos seus membros, você perderia completamente a sensação abaixo do pescoço, mas continuaria a ter pensamentos e ricas experiências. Ou considere o cerebelo, os 69 bilhões (80%+) de neurônios que são responsáveis pelo controle motor. Se você cortar fora partes dele, pode ser que perca a habilidade mecânica de executar certos movimentos como tocar piano ou andar, mas permanecerá completamente consciente com um senso de si mesmo, uma memória e a habilidade de planejar para o futuro.

O que é comum entre a medula espinhal e o cerebelo? Os circuitos neurais operam em paralelo com centenas de portões lógicos de input/output e se ativam todos do mesmo modo, em vez de formarem um circuito multimodal interconectado. Uma condição necessária para a consciência (nas pessoas) são dois neurônios “conversarem” um com o outro, em vez de simplesmente passarem informação com modificações determinísticas para cima na cadeia de comando.

Onde a consciência parece ser gerada é no córtex cerebral posterior, a superfície externa no cérebro composta de duas folhas com várias dobras. Estimule-o eletromagneticamente e é como qualquer outra viagem de ácido. A estrutura física cheia de dobras parece extremamente importante para gerar a consciência porque maximiza a exposição de área de superfície dos neurônios entre si. Muitas partes do seu cérebro podem ser removidas sem grandes mudanças na sua personalidade e inteligência, mas ainda que pequenas partes do córtex posterior estejam faltando, pacientes cirúrgicos perdem classes inteiras de conteúdo consciente: consciência de movimento, espaço, sons, etc.

É importante reconhecer que a consciência não é simplesmente “causada por qualquer coisa que aconteça no cérebro”. É uma coisa específica e frágil com características distintas que diferem de outras atividades neurais que se associam com a inteligência — portanto, a relativa inteligência dos animais em comparação com humanos não necessariamente corresponde intimamente com seu grau de consciência.

1.3. Indicadores neurais da consciência

Todo mamífero tem um córtex cerebral. Camundongos e ratos têm um liso; gatos e cachorros o têm com algumas dobras; e humanos/golfinhos/elefantes têm córtices altamente expandidos e com muitas dobras. Portanto, todo mamífero provavelmente é consciente, embora com grandes diferenças em vividez e complexidade.

Pássaros e répteis são um caso mais difícil porque a evolução cerebral deles divergiu muito mais cedo. Eles têm, por outro lado, um aglomerado de neurônios com marcadores químicos associados a camadas diferenciadas do neocórtex, mas sem o formato cheio de dobras que maximiza a conectividade.

Por contraste, os peixes não têm qualquer arquitetura neural única com respeito às partes do cérebro relacionadas à consciência e provavelmente são incapazes de sentir medo ou dor do modo como um ser humano sentiria — encorajamos você fortemente a ler este artigo por inteiro para se convencer desta afirmação. Embora os peixes demonstrem respostas semelhantes a dor a estímulos danosos e o façam menos dados analgésicos, isto é verdade mesmo quando o telencéfalo inteiro (que inclui o prosencéfalo) é removido, de modo que, no cômputo geral, é improvável que eles estejam tendo uma experiência qualitativa para acompanhar a resposta.

1.4. Indicadores comportamentais da consciência

O comportamento parece um óbvio lugar para procurar evidência para a consciência. No entanto, qualquer comportamento pode ser explicado pela inteligência pura e simplesmente, ou até por “codificação rígida” sub-inteligente oriunda da evolução. Se você espantar uma mosca, ela vai fazer barulhos altos de “zangada” e ir embora. O seu irmãozinho reagiria da mesma forma. Se você não soubesse nada da arquitetura neural das moscas, você poderia concluir que moscas são tão conscientes e capazes de sofrer quanto gente.

Um jeito de contornar isto seria se pudéssemos projetar testes que procuram estados mentais indiretamente, como o teste do espelho (se um animal consegue reconhecer o seu reflexo). Mas elefantes (definitivamente conscientes) rotineiramente falham e pelo menos um peixe passou nele, de modo que estamos cautelosos sobre colocar muito peso nestes testes.

Outro jeito é procurar comportamentos que se associam a estados emocionais extremamente complexos que observamos nos humanos. Se há uma grande diferença de inteligência, porém, grande semelhança de comportamento, podemos inferir que o animal está tendo experiências conscientes semelhantes.

Começando simples; se você brinca com um cachorro ele vai agir das maneiras altamente específicas como você agiria se você estivesse sentindo “alegria”. De uma perspectiva de hormônios e inteligência, o estresse e a excitação positiva são estados muito semelhantes, e em criaturas não-conscientes não teríamos razão nenhuma para esperar — por exemplo — que uma criatura buscasse um estressor como um brinquedo de morder a não ser que tivesse algum sentimento positivo por eles. O fato de podermos dizer tão claramente como um cachorro está se sentindo é, para nós, evidência altamente persuasiva de consciência.

Cachorros também exibem algo bastante análogo a uma teoria da mente, por exemplo, eles confortarão o seu dono quando ele está triste (mas talvez isto seja comportamento aprendido).

É improvável que cachorros sejam um caso especial; outros animais de inteligência variada também exibem comportamentos complexos indicativos de consciência.

• Chimpanzés que veem outro chimpanzé perder uma briga direcionarão mais comportamento de asseio ao perdedor, mas não se eles não virem este chimpanzé perder a briga. [Link, cobertura popular]

• Corvídeos que escondem uma guloseima ao serem observados voltarão sorrateiramente depois e esconderão novamente a guloseima num outro lugar, indicando (talvez) uma teoria da mente e (certamente) “viagem temporal mental” de imaginar a si mesmos em vários estados futuros. [Link, cobertura popular]

• Golfinhos, testados para discriminar entre X e Y por uma recompensa, mas incluindo a opção de “desistir” do teste em troca de uma recompensa menor, desistirão mais frequentemente em testes mais difíceis, indicando uma metacognição (que diríamos que é adjacente a — se não a mesma coisa que — uma teoria da mente). [Link, cobertura popular]

Passar um tempo com animais (animais superiores, especialmente) torna extremamente difícil imaginar que eles sejam qualquer coisa além de conscientes, mas reconhecemos que qualquer comportamento poderia ser explicado como uma expressão da inteligência sem pressupor experiência consciente. No entanto, estamos razoavelmente confiantes de que:

1. A gama e complexidade de comportamentos exibidos por animais correlacionam intimamente com a arquitetura do cérebro que cremos que causa a consciência –quanto mais complexa é a arquitetura do cérebro, mais como se fosse consciente é o comportamento. Isto seria uma coincidência substancial se de fato os animais não fossem conscientes.

2. Animais que intuímos que são conscientes são menos dados a exibir comportamento de “pane” indicativos de serem um autômato seguidor de regras não-consciente. Há muitos exemplos de “panes” no comportamento de insetos (como vórtices da morte em formigas, comportamentos repetitivos de vespas cavadoras [embora talvez não ] e mariposas não percebendo que estão voando em círculos em torno de uma vela), enquanto há muito poucos exemplos de “panes” no comportamento de mamíferos. Um exemplo divertido de uma pane no comportamento de pássaros pode ser encontrado em vídeos do YouTube [Link , Link] em que o “mecanismo de imprinting” de patinhos os confundiu a ponto de pensarem que um cachorro é a sua mãe.

1.5. Que animais são conscientes?

É justo refletir sobre a incerteza do que foi discutido acima, mas estaríamos confortáveis em atribuir consciência com base em arquitetura neural e comportamento da seguinte forma:

Há boas razões para crer que animais terrestres usados como alimento (vacas, porcos, ovelhas, cabras) são altamente conscientes. Por outro lado, achamos que podemos estar razoavelmente confiantes de que peixes não sofrem de um jeito moralmente relevante. Não estamos seguros sobre frangos. Encorajamos você a ler esta visão geral sobre o comportamento deles por completo para se convencer de que a inteligência cognitiva e emocional deles os agrupariam com animais simples se tivessem a mesma arquitetura neural.

No entanto, como na maioria das partes do cérebro humano “inteligência” não corresponde a “consciência”, e porque cérebros de frangos são um amontoado de neurônios com uma história evolutiva diferente e que carecem da estrutura cheia de camadas e dobras distintiva do cérebro, no modelo presumimos que a sua probabilidade de consciência é 75%.

Uma parte chave deste post é quantificar sentimentos vagos acerca da consciência animal. Isto é semelhante ao que Scott fez com uma amostra de respondentes do Tumblr aqui e o leitor do SSC Tibbar fez com uma amostra do Mturk aqui. Os seus resultados são expressos em termos de “valor” de um animal relativo a um humano em termos de porcentagem.

No entanto, é importante fazer a distinção entre “valor da experiência” e “valor do sofrimento” pois, enquanto podemos preferir ser um humano a um frango num dia bom, sentir dor poderia ser igualmente desagradável em qualquer corpo. Abaixo estão os nossos melhores palpites para uma estimativa “universal” (isto é, até um comedor de carne deveria concordar que elas são plausíveis) — pessoas que privilegiam a experiência animal, como muitos vegetarianos, provavelmente classificariam experiências animais mais alto:

O que queremos dizer com o supracitado é que, por exemplo, se a unidade de sofrimento fosse “ser fervido vivo” com base no nosso entendimento de quão vívidos seus dados sensoriais seriam presumindo a consciência, ficaríamos grosso modo indiferentes entre sermos fervidos uma vez enquanto qualquer humano, chimpanzé ou elefante, 10 vezes enquanto um frango, ou 1000 vezes enquanto uma lagosta. No entanto, ficaríamos indiferentes entre vivermos (presumindo nenhuma escassez ou predadores) por um ano enquanto um humano, 2 enquanto um chimpanzé, 4 enquanto um porco, ou 100 enquanto um frango.

No modelo, o impacto moral de um animal industrializado é a sua probabilidade de ter consciência vezes o peso moral do seu sofrimento se a sua vida for, com base na informação das próximas seções, “pior do que a inexistência”, ou, se não, o peso moral da sua existência.

Leia a parte 2 do texto aqui!

Tradução: Luan Rafael Marques

Revisão: Fernando Moreno

Publicado originalmente em: https://slatestarcodex.com/2019/12/11/acc-is-eating-meat-a-net-harm/

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Altruísmo Eficaz é um movimento que busca descobrir e aplicar as formas de fazer o maior bem, usando para isto evidências e racionalidade.