A cobrança post-mortem de um professor negro a Machado de Assis pela falta de protagonismo na causa abolicionista (1908)

Sérgio Barcellos Ximenes
29 min readJun 8, 2020

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Outros artigos sobre Machado de Assis

A crítica literária vingativa e o seu maior alvo no Brasil: Machado de Assis — 1. A vingança de Sílvio Romero | 2. A vingança de Múcio Teixeira

Machado de Assis e o Negro: um artigo de 1940, ainda atual

Música Inglesa (1888): uma série inédita de artigos de Machado de Assis em jornal escravocrata?

O Mestre (amargurado): um artigo de 1906 sobre Machado de Assis

Dom Casmurro: A crítica literária e a “traição” de Capitu: 1. José Veríssimo: o primeiro a suspeitar da história de Bentinho (1900) | 2. Francisco de Paula Azzi: a primeira defesa categórica da fidelidade de Capitu (1939)

Memórias Póstumas de Brás Cubas: 1. A segunda e desconhecida publicação do romance (1880) | 2. Uma crítica inédita (1881) | 3. Você conhece o romance Memórias Fóstumas de Brás Cubas? | 4. A recepção crítica ao romance (1880–1882)

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RESUMO

Tema: uma carta publicada no jornal Gazeta de Notícias (Rio) em 29 de novembro de 1908, dois meses após o falecimento de Machado de Assis, em que o professor negro Hemetério José dos Santos desqualificava a obra do escritor, apontado erros gramaticais e estilísticos, além de criticar Machado tanto pelo uso raro do tema da escravidão em suas obras, quanto pela omissão na luta abolicionista.

Aspecto de novidade: um texto jamais publicado em trabalhos acadêmicos ou na Web, e também não encontrado no site da Academia Brasileira de Letras dedicado a Machado, na seção de fortuna crítica (conjuntos de textos avaliativos da obra de um autor).

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Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, RJ), 29/11/1908, número 334, página 2, parte superior — http://memoria.bn.br/DocReader/103730_04/18748

A carta

Em 29 de novembro de 1908, exatos dois meses após o falecimento de Machado de Assis (21/6/1839, Rio — 29/9/1908, Rio), um professor negro chamado Hemetério José dos Santos publicou no jornal Gazeta de Notícias (Rio) uma longa carta a seu amigo Fábio Luz, com o título Machado de Assis.

O texto dessa carta não se encontra disponível em trabalhos acadêmicos ou no Google. Aparentemente, apenas um livro de Josué Montello o reproduziu (talvez em parte; não tive acesso à obra): Os Inimigos de Machado de Assis (1998).

https://www.estantevirtual.com.br/livros/josue-montello/os-inimigos-de-machado-de-assis/676623361

Além disso, o site oficial de Machado criado pela Academia de Letras não oferece resultados na busca de “Hemetério”. Como se trata de um documento importante para a chamada fortuna crítica do autor (o conjunto de textos avaliativos sobre a sua obra), ele será reproduzido integralmente neste artigo, de modo a ficar disponível on-line a pesquisadores, estudiosos e interessados na obra de Machado.

O conteúdo da carta

Na carta, Hemetério José dos Santos deprecia o mérito de Machado de Assis como escritor, expõe o que seriam erros primários no trato do idioma e trata de uma questão ainda polêmica: a relação de Machado de Assis com a questão abolicionista. Muito provavelmente, a primeira crítica derivou da segunda. Hemetério era negro, como Machado, e não se conformava com a recusa de Machado em tornar a escravidão um tema frontal em sua obra e com a omissão social do escritor na defesa pública de seus irmãos negros escravizados.

Hemetério reconhece a presença do tema na obra de Machado, embora a considere insuficiente, e parece estabelecer uma distinção, vigente na época, entre posição e ativismo. Ou seja, sabia-se então que Machado era contra a escravidão, denunciada em algumas de suas obras (a posição), mas questionava-se a ausência do autor no movimento que, especialmente nas décadas anteriores à Abolição, empolgava escritores, artistas, jornalistas e intelectuais em geral (o ativismo).

A relação de Machado com o tema da escravidão vem sendo tratada há bom tempo no meio acadêmico, e os argumentos favoráveis e contrários ao escritor não serão abordados aqui por se encontrarem bem distantes da minha área de competência (a pesquisa histórica sobre a ficção brasileira).

Dois livros tratam do assunto. O primeiro em ordem cronológica, Imagens, Máscaras e Mitos: o Negro na Obra de Machado de Assis (2006), de Mailde Jerônimo Trípoli, informa na apresentação:

“Obra resultante de um aprofundamento no estudo do escravo como personagem na literatura brasileira, sobretudo na obra de Machado de Assis. Esclarece a falsa crença de que o gênio, a fim de ascender socialmente, negou a própria raça, omitiu-se da luta pela liberdade e excluiu a imagem do escravo de suas obras”.

https://www.amazon.com.br/Imagens-Máscaras-Mitos-Negro-Machado/dp/8526807404

O segundo, lançado em 2007, encontra-se na terceira edição (2020): Machado de Assis afrodescendente: antologia e crítica, com seleção, notas e ensaios de Eduardo de Assis Duarte. Da apresentação:

Machado de Assis afrodescendente abrange poemas, contos, crônicas, crítica textual e excertos da ficção romanesca de Machado. Além de esclarecedoras notas, o livro traz um conjunto de seis ensaios críticos que compõem o segmento ‘A poética da dissimulação’.”

https://www.editoramale.com/product-page/machado-de-assis-afrodescendente-antologia-e-cr%C3%ADtica

Recentemente, a questão ressurgiu com o lançamento da mais recente tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas, realizada por Flora Thomson-DeVeaux.

https://www.amazon.com.br/Posthumous-Memoirs-Brás-Cubas-English-ebook/dp/B081M5RL5S/

A seguir, o texto da carta de Hemetério José Santos publicado em 29 de novembro de 1908. Alguns trechos da parte final, onde o professor aponta o que seriam erros gramaticais de Machado, estão ilegíveis na cópia escaneada do periódico disponível na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, e essa parte não saiu na republicação da carta no Almanaque Brasileiro Garnier para o Ano de 1910 (páginas 369–374).

Note-se que Hemetério realiza uma série de ataques a Machado, estéticos, sociais, literários e até mesmo pessoais, abordando, nesse último caso, aspectos que ele considerava questionáveis na vida particular do Bruxo do Cosme Velho, entre eles a escolha de uma mulher portuguesa e branca por companheira.

Almanaque Brasileiro Garnier para o Ano de 1910, página 370, José Ribeiro, Rio de Janeiro (RJ) — http://memoria.bn.br/DocReader/348449/5001

Atualização (12/6/2020)

Informado pela tradutora Flora Thomson-DeVeaux de que a carta de Hemetério é referenciada a partir da página 8 do livro The Brazilian Master and His Novels (O Mestre Brasileiro e seus Romances, 1970), obra da crítica e escritora estadunidense Helen Caldwell, busquei um exemplar do livro, mas o único disponível na Estante Virtual custa R$ 299,00.

Felizmente o Google Books oferece acesso às páginas relevantes da obra de Helen. Para fornecer um contraponto ao texto de Hemetério, seguem-se as imagens e a tradução dessas páginas. As informações da autora servem para contextualizar as várias histórias e boatos sobre Machado, surgidos em vida e logo após o seu falecimento.

https://books.google.com.gt/books?id=HzEmMFj8pvsC&lpg=PA14&vq=hemet%C3%A9rio&hl=pt-BR&pg=PA8#v=snippet&q=hemet%C3%A9rio&f=false

[Helen antes revela a existência da carta de Hemetério e o seu teor acusatório, destacando a questão nela abordada sobre a omissão de Machado de Assis no movimento abolicionista.]

Tradução

Essa efusão espontânea de um obscuro professor de ensino fundamental recebeu estranhamente uma espécie de imortalidade, ao ser reimpressa no Almanaque Brasileiro para 1910 [Almanaque Brasileiro Garnier para o Ano de 1910], uma publicação anual da editora de [Machado de] Assis e editada pelo amigo e colega João Ribeiro.

Pontos desse artigo foram repetidos tantas vezes, em tantos livros e artigos, que até pouco tempo eles passavam pela verdade na maioria dos círculos, e assim como o boato do próprio conto de Assis “Quem Conta um Conto…”, aqueles que os repetiram “acrescentaram um pouco”. Por exemplo, havia um relato, em terceira ou quarta mão, de que Coelho Neto comparecera com Machado de Assis ao funeral de uma pobre mulher idosa, a qual foi interpretada por um daqueles que repetiram a história como a madrasta de Assis. Assim, o famoso autor e amigo de Assis supostamente confirmava a acusação de ingratidão feita por [Hemetério dos] Santos.

Machado de Assis, como supramencionado, nada escreveu sobre sua infância ou família, mas seu patriotismo e sua preocupação com a escravidão são expressos de modo amplo ao longo de suas obras, para que todos que a queiram ler. Nos últimos anos, escritores brasileiros, em particular R. [Raimundo] Magalhães Junior, completaram a imagem da preocupação social e política de Assis, apontando passagens pertinentes em suas obras menos lidas e revelando registros de suas ações públicas e discursos; a recuperação de correspondência adicional também ajudou a dissipar grande parte desse mito.

Em seu tempo de vida, é verdade, ele foi atacado em sua atividade pública por inimigos políticos, e seus escritos criticados violentamente — por um crítico influente em particular, Sílvio Romero. Mas esses homens puderam ser respondidos, e o foram quando Assis julgou necessário ou oportuno. Nem todos os rumores que começaram a envolver o escritor e suas obras originaram-se de intenção maliciosa. Alguns eram simples erros; além disso, amigos e colegas exageraram e “embelezaram” os fatos de sua origem humilde e de suas dificuldades iniciais, a fim de tornar maiores as suas realizações. Depois de sua morte, não foram apenas os invejosos que se apressaram a publicar textos; escritores que o admiravam também correram a publicar testemunhos piedosos da grandeza e bondade do mestre. Por exemplo, no mês seguinte, dois jovens escritores a quem ele havia encorajado, Mário de Alencar e José Veríssimo, puseram no papel suas lembranças e avaliações do famoso amigo. Esses dois homens tinham estado quase diariamente em contato com ele nos anos que antecederam sua morte — Veríssimo por dezessete anos, Alencar por quatro. A discussão de Veríssimo sobre a arte de Assis é excelente. Ambos, sem dúvida, admiravam Machado de Assis, como homem e escritor, e valorizavam sua amizade, mas ambos reconheceram que não o entendiam — Alencar, francamente, Veríssimo, por implicação. De fato, Veríssimo, aqui como em outros pontos de suas críticas, trai, sob seus julgamentos medidos e admiradores da arte de Assis, uma certa antipatia por ele. Apesar de admitir a incapacidade de entender o homem ou seu gênio, ambos os escritores fazem afirmações sobre seus sentimentos e opiniões que podem, com razão, ser questionadas. Alencar nos conta, por exemplo, que Assis não tinha religião de nenhuma espécie, mas prossegue descrevendo seu “culto” à falecida esposa Carolina. Veríssimo interpreta as últimas palavras (que ele afirma ter distinguido na fala desconexa de Assis enquanto agonizava no leito), relata e amplia uma opinião sobre escrever por dinheiro (que diz ter ouvido dos lábios de Assis), e oferece a sua própria explicação para a aversão de Assis a discussões políticas veementes — como resultado de seu medo de provocar em si mesmo um ataque epilético, e assim por diante. Além disso, seu artigo, assim como o de Santos, tornou-se fonte de duvidosos aspectos biográficos que foram repetidos em biografias posteriores; por exemplo, o de que seu pai era um pobre pedreiro ou carpinteiro, e que ambos os pais eram pessoas de cor e analfabetos. Veríssimo também é fonte da ficção de que os pais de Machado de Assis morreram “quando ele estava entrando na puberdade”. Apesar dos dezessete anos de conhecimento pessoal, é evidente que ele não gozava da confiança de Assis. E foi Veríssimo quem dramatizou a reserva “imoderada” de Assis sobre sua própria vida e seu trabalho, afirmando que ele não discutia seus livros, mesmo depois de publicados.

Esses dois artigos contribuíram inadvertidamente, se não deram origem, ao que parece ser um certo equívoco sobre a natureza de Machado de Assis: eles enfatizam a sua timidez. E Veríssimo, cujo artigo é muito mais extenso, utiliza constantemente o adjetivo tímido; mas, assim como no artigo de Alencar, a palavra é geralmente associada ao adjetivo delicado, que significa “cortês e atencioso”. Tímido, eles parecem usar no sentido de “reticente”; também deixam bem claro que Assis era um homem de caráter e vontade forte, e, embora de maneira modesta, consciente de seu próprio valor. Infelizmente, esse adjetivo tímido foi aplicado liberalmente a Assis no sentido de “medroso”, e um “complexo de inferioridade” exuberante, de proporções tremendas, daí se desenvolveu. Das raízes desse exótico gigante originou-se toda uma maravilhosa lenda psicológica, ou mito, se preferir, que identificava Assis com protagonistas de seus romances — Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro e o diplomata aposentado Aires, e com Luiz Garcia do romance Iaiá Garcia. O homem, Assis, foi identificado de modo avulso com cada um desses personagens, e com todos eles de uma só vez, como se eles fossem um só personagem com nomes diferentes. E foi identificado com suas heroínas, Estela de Iaiá Garcia, Helena do romance homônimo, com Guiomar de A Mão e a Luva, e com Flora, a adorável heroína de Esaú e Jacó. As naturezas e os caprichos dessas personagens foram atribuídos à epilepsia, à gagueira, à origem humilde de Machado de Assis… e aos estados emocionais e impulsos derivados de tais “distúrbios”. Tentativas heroicas foram feitas para identificar casos de amor que explicassem as heroínas Capitu e Fidélia.

Mesmo em vida, Assis foi submetido a essa espécie de crítica. Em 1897, o crítico brasileiro Sílvio Romero, pondo à parte o estilo sintético e impressionista, escreveu que o estilo de Machado de Assis era a fotografia exata de sua mente, de sua natureza psicológica indecisa; que ele gaguejava em seu estilo como resultado de uma deficiência em seus órgãos da fala. Era sem dúvida esse uso do material biográfico que Machado de Assis temia ao recusar a publicação de sua correspondência, a escrever memórias, a compartilhar seus métodos de composição literária, ou a discutir seus livros antes ou depois da publicação — em suma, era por isso ele fez tudo ao seu alcance para tornar difícil, se não impossível, uma biografia pessoal.

Como sua escrita era fundamental em sua vida, seu medo de publicidade pessoal era sem dúvida o medo do dano que ela causaria a suas obras publicadas. E ele previu que a Rua do Ouvidor não seria ampliada. De fato, a Rua do Ouvidor ainda está lá, física e espiritualmente, como confirma Agripino Grieco, escrevendo cem anos após a rua ter sido abastecida por meio de gás. Em seu livro Machado de Assis (Rio, 1960), Grieco conta como ele e seus confrades gostavam de se sentar em seu confortável “clube do livro” e ruminar as antigas fofocas geradas por Hemetério dos Santos, em vez de subir as ruas e consultar testemunhas vivas.

Mas estas provavelmente também teriam sido vistas com ceticismo por Machado de Assis. Esse testemunho existia até recentemente, talvez ainda exista, transmitido por uma longa tradição oral; e paralelamente a ele estão as lembranças deturpadas de pessoas que sabiam, ou viram, ou ouviram falar dele quando eram crianças, finalmente publicadas após um lapso de muitos anos. Não é impossível que o comentário de Aires, o narrador ficcional do romance Esaú e Jacó, refletisse alguns dos sentimentos de Assis sobre esse tema. Naquele romance, depois de a politizada senhora Batista (comparada por Aires a Lady Macbeth) importunar seu marido, um político menor, obrigando-o a conseguir um encontro com o Presidente da República, cunhar algumas expressões eloquentes para ele utilizar nessa conversa, mandá-lo embora e aguardar ansiosamente seu retorno, que por algum motivo demorou além da conta, então, quando ele apareceu: “Ela correu para cumprimentá-lo, agarrou a sua mão com entusiasmo e levou-o ao quarto de dormir”. Dona Perpétua, uma senhora que colecionava objetos sem valor por razões sentimentais, presenciou tudo e “exclamou ternamente: ‘São como duas rolinhas’.” Aires comenta: “Veja quanto valem as testemunhas oculares da história!”

Segundo capítulo — Estatísticas vitais

Cem anos após o nascimento de Machado de Assis, o registro de seu batismo foi descoberto em um livro da igreja da paróquia do Rio de Janeiro na qual ele nasceu. Declarava que, em 13 de novembro de 1839, em Senhora do Livramento, capela da Igreja de Santa Rita, o reverendo Narciso José de Moraes batizou e ungiu o bebê Joaquim, filho legítimo de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis, ele natural do Rio de Janeiro e ela da ilha de São Miguel; que os padrinhos eram seus excelentíssimos camareiros Joaquim Alberto de Souza da Silveira e dona Maria José de Mendonça Barroso; e que o bebê nascera em 21 de junho de 1839.

Desde então, sabe-se que sua mãe era portuguesa, natural de uma das ilhas dos Açores; presumia-se que fosse uma mulher branca e não de sangue negro, como indicado nas biografias até aquele momento. Os padrinhos provaram ser de alta categoria social: o padrinho, duas vezes decorado, camareiro do palácio imperial; a madrinha, portuguesa de nascimento e viúva de um general de brigada e senador do império brasileiro. (Já era de conhecimento que o pai e a mãe de Assis eram dependentes que moravam na propriedade dessa senhora, a Quinta do Livramento.)

Nos vinte anos seguintes, 1939-1959, foram encontrados novas certidões relativas à família Assis, neste e em dois outros registros paroquiais da cidade. Esses documentos também geraram dúvida sobre uma série de pontos na lenda da origem e do início da vida de Machado de Assis. Foram eles:

. Certidão de batismo do pai de Machado, que afirmava ser ele, Francisco, filho legítimo de Francisco de Assis, mulato, escravo liberto e natural do Rio de Janeiro, e de Inácia Maria Rosa, mulata, escrava liberta e natural do Rio de Janeiro, e ter sido ele batizado em 2 de outubro de 1806.

. Certidão de casamento dos pais de Machado (19 de agosto de 1838). A partir deste documento conheceram-se os nomes dos avós maternos de Machado e a cidade e paróquia de origem de sua mãe em Portugal.

. Certidão de batismo da irmã de Machado, nascida em 3 de maio de 1841 e batizada como Maria.

. Certidão de óbito de Maria, que morreu de sarampo, 4 de julho de 1845.

. Certidão de óbito da mãe de Machado, declarando que ela morreu de tuberculose, 18 de janeiro de 1849, aos 34 anos de idade.

. Certidão de casamento do pai de Machado, Francisco José de Assis, com Maria Inês da Silva, 18 de junho de 1854.

Esses dois últimos certificados lançam dúvida sobre a história de [Hemetério dos] Santos, de que a madrasta de Machado o ensinara a ler quando ele era criança, pois a mãe de Machado não morreu até os seus dez anos de idade, e o pai não se casou novamente até que o rapaz estava com quinze anos, já solto no mundo, ganhando a vida. Além disso, Gondin da Fonseca, que descobriu esses últimos quatro registros, nos informa o que conseguiu deduzir de sua pesquisa: (i) a mãe de Machado de Assis chegou ao Brasil dois anos antes de seu casamento; (2) seu nome completo de solteira era Maria Leopoldina Machado da Câmara; (3) ela sabia ler, escrever, e escreveu seu próprio nome com letra firme, bem formada e fluida; (4) há certas semelhanças entre a letra dela e a do filho. Pode muito bem ser que ela o tenha ensinado a ler e escrever. É muito improvável que ela tenha sido a lavadeira da lenda. Em resumo, todos esses documentos indicam que Machado de Assis nasceu em um ambiente humilde, mas não inculto — o que pode ajudar a explicar sua devoção inabalável à escrita e explicar suas maneiras refinadas, comentadas por muitos de seus contemporâneos, maneiras que fizeram um deles afirmar: “Ele cresceu em família instruída”.

Fonseca também descobriu, através de anúncios publicados no Jornal do Commercio, 27 de abril e 22 e 23 de maio de 1864, que o pai, Francisco José de Assis, morrera em 22 de abril de 1864 — ou seja, quando Machado de Assis tinha quase vinte e cinco anos de idade. Essa descoberta não apenas contradiz a “informação” de José Veríssimo, mas também põe em dúvida a afirmação de Hemetério dos Santos de que o menino Machado havia sido criado por sua madrasta. Além disso, os avisos de missas separadas a serem realizadas para o falecido pela viúva, mãe e irmãos, e por Machado de Assis, indicam pelas palavras e tom que este não estava em boas relações com sua madrasta e a família dela. De qualquer forma, na época do casamento de seu pai em 1854, Machado, então com quinze anos, já estava no mundo das publicações e, como o Pequeno Polegar, marcando o caminho escolhido com suas próprias pedras literárias.

Trechos dos capítulos 1 e 2 da introdução de Machado de Assis: The Brazilian Master and His Novels, Volume 2, Helen Caldwell, EditoraUniversity of California Press, 1970.

Atualização (9/7/2020)

O UOL divulgou, em 9 de julho de 2020, um podcast sobre Hemetério intitulado A história do professor negro e antirracista que ensinou durante a escravidão.

https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2020/07/a-historia-do-professor-negro-e-antirracista-que-ensinou-durante-a-escravidao.shtml

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Machado de Assis

Carta ao Sr. Fábio Luz.

Amigo Fábio Luz.

Quando estive nos primeiros dias de outubro conversando no Café-lógio sobre o valor de Machado de Assis, notei que estavam na roda dois rubros fanáticos, e então achei de boa gentileza não fundamentar o juízo que sinceramente fiz e faço do poeta, do romancista e do escritor, mestre oficial dos artistas, dos artesãos da palavra, fora e dentro da Academia Brasileira [de Letras].

Guardei silêncio de honesto comedimento, como de costume, quando vejo paradoxais as minhas asserções; você insistiu em saber a causa íntima do meu proceder, e eu dei de ombros num mutismo desconsolado e triste. E todos me tiveram por um sujeito de ideias irreverentes e exóticas.

À noite, por ocasião de rezar o decorrido durante o dia, vi a necessidade de uma explicação, não já perante os nossos companheiros de ágape no Café-lógio, mas diante de todos os que vivem de letras por amá-las carinhosamente, ou por prostituí-las, ordenhando-as com brutalidade e imperícia.

Adiei a explicação que hoje venho dar.

Tive sempre pela obra do Machado de Assis o sentimento que desperta o trabalho chinês de acurada paciência em um papelão, lata ou chumbo derretido: efêmero, porque a ausência de fundo que se nota não tem força de eternizar a forma; passageiro, porque essa mesma forma não se estima e não se valoriza pela excelência na construção e pela variedade dos materiais.

Machado de Assis não foi um observador fiel do nosso modo de ser, um psicólogo, mesmo no corrente sentido desta palavra, durante a sua vida muito alongada e sempre bafejada pelos carinhos dos seus e pelo aconchego que sempre teve de estranhos, o que o elevou às posições culminantes no nosso mundo burocrático e literário.

Nascido em junho de 1839, sendo pois mais moço do que Gonçalves Dias apenas de 16 anos, com idêntica força que o preconceito dá para lutar em “meio” mais culto e tolerante e tendo sobrevivido ao poeta brasileiro 44 anos, a bagagem que nos deixa é relativamente apoucada e pequena.

O problema do “negro”, que assumiu em nossa vida de nação talvez um fulgor de vontade único, sem igual nem nos tempos antigos pelos cativeiros de guerra nem nos tempos modernos pela escravidão colonial, não mereceu do romancista e do poeta senão pálidas e aquareladas pinturas, tão tímidas que claramente revelam que do artista primeiro partiam as ideias preconcebidas contra a sua cor e procedência.

Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães, Gonçalves Dias logo nos verdes anos, nas suas Meditações, [Joaquim] Manoel de Almeida, Agrário de Menezes, Trajano Galvão, Castro Alves, de tuba tronissonante, e tantos e tantos outros não deixaram de molhar a pena nesse tinteiro de dor e de vergonha nossa, sem falar daqueles que, como o Visconde do Rio Branco, [José do] Patrocínio, Arthur e Aluísio Azevedo, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Rui Barbosa e vários outros, em legião juntaram a mente às musas dada, ao braço às armas feito.

As nossas guerras e as nossas questões externas, resolvidas pelas lutas pacíficas e remansadas do talento e da diplomacia, não existem, para quem as procurar, nos livros de Machado, ou se existem são simples episódios tênues e fugitivos de uma sociedade que morreu nascendo, às mãos das Virgílias e Capitus, e outras hetairas [prostitutas refinadas da Grécia antiga] tolhidas de sua desenvoltura pelos casamentos interesseiros e sórdidos.

E, no entanto, foi de virtudes o lar em que Machado passou os primeiros anos da sua juventude.

Seu pai, o pintor e dourador Francisco José de Assis, era um artista inteligente e de alguma leitura.

Vendo que a carreira das Letras podia retardar a colocação do filho em posto que lhe assegurarasse a subsistência antes de sua morte, era com viva dor contrário à inclinação pronunciada de Joaquim Maria.

Sua mulher, dona Maria Inês de Assis, não concordava, e acompanhando a aplicação apaixonada e teimosa do enteado, ensinava-lhe todas as noites e às escondidas o pouco de suas letras, quando o marido ia discretear com o vigário de São Cristóvão, onde moravam, ou ia com os companheiros jogar as cartas em família e à puridade [em segredo], conforme o costume daqueles tempos.

Bem depressa, a boa e inquieta madrasta, antes mãe idosa e caroável [amável], nada mais tinha a transmitir ao menino. Foi então que pediu ao forneiro de Madame Gallot, com padaria à Rua de São Luiz Gonzaga, que lhe ensinasse o francês, que depressa aprendeu a ler, traduzir e falar regularmente, porque em dedicação o mestre corria parelhas com o discípulo.

Eu conheci essa boa mulata velha, comendo de estranhos, com amor e conforto máximo, chorando porém pelo abandono nojoso em que a lançara o enteado de outrora, nunca mais a procurando desde a sua mudança de São Cristóvão, lugarejo de operários, para o nicho de glória nas Laranjeiras.

Quatorze anos de paz a retiveram na casa de Eduardo Marcelino da Paixão, onde morreu abençoada de todos pela grandeza do seu coração, e por ter sido o anjo tutelar de Machado de Assis.

Pelo francês se lhe abriram todas as portas literárias, e na casa de Paula Brito foi então recebido no convívio dos grandes homens do tempo ― políticos, poetas, romancistas e jornalistas.

Viu tudo e sentiu todo o passado nas palestras diárias da loja do Canto, foi colaborador da Marmota e de outras revistas e produções que ali se editaram.

A sua poesia foi tão incolor como os seus trabalhos ulteriores [seguintes]; desde o título chinês até ao fundo, que sinceramente não traduziu esse estado de alma pungente e dilacerado, como se nos mostra no juízo de todos os seus críticos e companheiros de arte.

Pode-se dizer que, excetuado o admirado soneto A Carolina, posto à frente das Relíquias da Casa Velha:

Querida! Ao pé do leito derradeiro,

Em que descansas desta longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração de companheiro.

*

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro…

*

Trago-te flores ― restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados;

*

Que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

…todas as suas produções foram um belo exercício para formar o estimado prosador, de maneira untuosa e de uma “preciosidade” coleante e serpentina, que foi, em tão grande e tão comprido desenrolar de anos sossegados e tranquilos, como não há igual nem nos tempos antigos nem nos modernos, quer em Portugal quer no Brasil.

Para no verso produzir poemas que os de sua raça ― portugueses, negros e mestiços ― haviam traçado com o coração e o braço, teve exemplos desde o raiar da nossa vida para a arte da palavra, até aos nossos dias.

Em 26 de Março de 1535, um belga, Nicolau Clenardo, escrevendo ao seu amigo Latomus, notou admirado que em Portugal e sobretudo em Lisboa e Évora havia muitos negros, que em número excediam à população branca.

“Os escravos pululam por todos os lados. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Há em Lisboa uma tal quantidade dessa fazenda [desse rebanho], que se acreditaria que excede em número os portugueses livres. Mas apenas pus os pés em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do inferno: por toda a parte via negros, raça que me inspira uma tal aversão que isso bastaria para me fazer abalar”.

Gil Vicente não desprezou o fato e o pôs de mil modos nas suas farsas. E como o preto era o roubado, era sempre o espoliado, até na produção, porque os filhos logo na segunda geração lhe saíam louros, isto é, não lhe pertenciam, Gil Vicente tinha em cada negro um comparsa ladrão!

Ainda até mesmo mos romances populares, a musa do povo não se esquivou, não se vilipendiou de tratar do negro:

Deu sete voltas à cerca,

Sem nada poder encontrar;

Viu lá entrar uma preta

Que se estava a pentear.

Oliveira Martins, na História de Portugal, não deixou de mencionar que, no reinado de Dom Manuel, crescido e espantoso era o número de negros no reino, conforme a estatística do tempo; e as Ordenações também o registram pela maneira cuidadosa de regular as reuniões dessa gente, que se incorporava à sociedade pelo serviço que prestava.

E por que Machado não quis, dando lenitivo à dor que o acabrunha, levantar com os seus talentos a pedra que injustamente esmagou os seus irmãos de cor e de sofrer?

Por que não teve, seguindo o exemplo do Padre António Vieira, desassombro de dizer ao Senhor Graça Aranha, o pai infeliz do aborto Canaã, e de provar com os fatos que a obra do português e do negro na América é sem par no mundo, pela bondade e pela candura que ambos derramaram por toda a parte, nessa construção de amor e tolerância que se chama o Brasil?

A sociedade brasileira é sem modelo na história, pelos exemplos de altas virtudes constantes, múltiplas e variadas, desses três tipos que se irmanaram pelo sentimento, tornando-se um só espírito para a cultura do bem, desde os tempos de Vieira e Gregório [de Matos].

Por que o inglês, que tem alguns domínios da América do Sul, não faz um Brasil?

Por que não se impôs o holandês à obra final da formação da nossa nacionalidade?

Por que não faz surgir das suas Guianas, opulentas de vida natural, uma nova Holanda que seja a suplantadora do Brasil―Norte?

Por que não faz a França uma república que seja a encarnação de todas as virtudes que prega, de toda a sua humana ciência, e que traduza o ideal de seus filhos e auríferas terras do Orinoco?

Onde está a obra de agremiação humana, bondosamente feita pela nebulosa Alemanha?

Só imaginariamente na Canaã, que ficará como um tema certo de colegial esperto e aplicado.

A arte de Machado de Assis esgota as energias; não tem ela nem uma relação com o sentimento nacional que, apesar dos prismas pigmentais, já se impõe naturalmente ao observador, porque primeiro não o excita e não o satisfaz.

É uma arte doentia, de uma perversidade fria, não sentida diretamente do meio, mas copiada de leituras parcialmente ruminadas de romances franceses e ingleses, de almanaques que representam, para a vida dos amores e das conquistas, o mesmo papel que faz e fez, para a economia doméstica, a vida do Bom Homem Ricardo, de Benjamin Franklin [tema do almanaque escrito pelo autor estadunidense].

Por ser mulato, Machado não tinha razão plausível para desfigurar a nossa moral simples e tradicional.

Um Calabar literário, contorcido e fugitivo nos seus membros enigmáticos, não é menos criminoso do que um Calabar que deserta nos seus pela porta da traição e do suborno.

O elogio exagerado que vai além do valor real é um filtro tão sutil como o mel de abelha: empolga e envenena.

Mulatos outros o foram antes de os haver no Brasil; houve muitos alhures e em Portugal; e por êmulo de Gil Vicente se notabilizou o mulato Afonso Álvares, que primeiro teve, na nossa raça, verdadeira intuição artística, vivendo e vibrando com os tipos verdadeiros e apanhados da massa muscular popular, e não com os tipos imaginários e não encontrados pelo leitor ao descansar nos finais dos capítulos e dos episódios de qualquer composição de fôlego.

O segredo da arte de Machado de Assis é primário e rudimentar: está no vocabulário minguado e pobre, repetido tão amiúde, indo e tornando, passado incessantemente sobre uma mesma tônica, que o leitor acaba por adormecer.

Quem ler dois ou três páginas de Dom Casmurro, Brás Cubas e Memorial de Aires tem lido toda a sua obra.

Esse ódio disfarçado e felino que Machado teve para com todos, parentes e íntimos, amigos e patrícios, revelando-o ora pelo silêncio que esmaga e anula, ora pela criação de hetairas em época que não as tínhamos em família, porque a escravidão era o trabalho que conforta e a luxúria que alivia, teve-o ele sinceramente ou foi uma simples e inocente ficção neurótica?

Nas sociedades em desequilíbrio e em que a moral, de fato, ainda não igualou os tipos vários que a compõem, já porém, embalados pelas leis e pelos conceitos, as ligações de amor ou casamento obedecem a uma corrente uniforme, como as que por impulso se estabelecem maravilhosas na grande massa da água dos oceanos.

Machado assim não procedeu. Não cobriu e não amparou com a reputação do seu nome uma que fosse do mesmo ciclo de sua dor, nem elegeu por companheira qualquer da roda aristocrática por educação, onde teve acento e carinhos singulares, e posição de mando, diretor e chefe.

Para evitar encontros de Capitus e Virgílias, Machado teve por consorte uma portuguesa que puramente lhe foi pela vida inteira um clarão de singulares virtudes domésticas.

Ainda bem que foi uma portuguesa, porque se houve, consoante com a sua obra, alguma ofensa, esta não chegou a ser profunda e lacerante, por ter sido dos nossos corações o coração que o acolheu.

Muito tem sido gabada forma de Machado, e no entanto nada talvez haja mais acoimado de imperfeições. É banal ― que as coisas nos ferem somente pelo modo por que são ditas, pois o estilo está antes no valor das palavras e nas suas relações orquestrais, do que em qualquer outro artifício: não há literatura sem língua, como não há estilo sem gramática.

O nosso léxico é o mais rico todos os povos civilizados. Ele se compõe de todas as palavras da baixa latinidade, acrescidos dos termos eruditos da alta literatura latina, dos vocábulos asiáticos, porque nós fomos os primeiros a auscultar as civilizações e as religiões do Oriente pela pena observadora e assombrosa de Fernão Mendes Pinto e pela piedade e submissão de Francisco Xavier; de vocábulos germânicos e árabes que conosco comungaram na península; pelos dizeres regionais da África, que foi lavrar primeiro o solo europeu e veio depois desbravar a luxuriosa vegetação da América; nos vocábulos nos nossos indígenas e dos novos termos criados na sua convivência pelos padres que primeiro os chamaram à civilização; finalmente pelos termos e expressões científicas criados aqui e ali, que imediatamente se ajeitam e se acomodam, assimilados ao nosso dicionário.

Com estes elementos o escritor “cria novas palavras”, usando as mesmas do fundo da língua, infiltrando-lhes, porém, novos aspectos nas relações que entre elas deve estabelecer.

Machado não o consegue: o seu vocabulário tem o resumido número de escritor que começa, e a sua sintaxe geralmente se insubordina às leis surpreendidas.

Por vezes parece um artista novel, que se queixa dos instrumentos, torcendo-os e conformando-os a seu talante.

Você sabe, meu carro Fábio, que eu não aprecio exóticos que toquem flauta com o nariz, nem prodigiosos que com os artelhos corram o teclado do piano.

É comum na língua portuguesa dar-se a atração dos pronomes nos casos gerais, e no entanto Machado, contra a lição de todos os escritores até nós, faz sistematicamente o contrário, conseguindo arranhar os ouvidos pela forma e molestar-nos a alma pelo fundo.

Vejamos Brás Cubas, 4.ª edição, mais de oito vezes visto e corrigido:

. Eu deixei-me estar a contemplá-la.

. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.

. […] e eu via-a agora não qual era…

. … outros minguaram, outros perderam-se no ambiente.

. E eu seguia-a, tão pajem como o outro.

. Eu segurei-lhe nas mãos.

. E eu sentia-me feliz com vê-la assim.

. Eu agradeci-lho com os olhos úmidos.

. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça.

. Ela percebeu-o nos meus olhos.

. E eu disse-lho com ternura com sinceridade.

Assim vai, sempre contra todas as lições de Camões, Vieira, Bernardes, que lhe são conhecidos como amiúde o repete, até produzir frases como esta:

. Pois dou-ta eu, égua piedosa…

. Ele, Cotrim, acompanhava-me de longe.

Assim em todas as páginas. Só algumas vezes disse com acerto:

. Tudo isso me levou a fazer uma coisa única.

. Tudo se deve dizer.

. Quem lhe disse isso?

. Ninguém me visitava.

Com qualquer pronome, todo o clássico usa da anteposição pronominal, salvo nas formas de imperativo. Vejamos Camões, Cartas e Autos:

. Ela nos trata somente como alheios de si…

. Ambos lhe saem das mãos virgens.

. Eu vo-lo direi

. Este pantufo se perdeu ali.

. Eu o tomei à cala de sua boa fama.

. E eu por gracioso o tomei.

Francisco de Morais:

. […] e isso me fazia triste.

. Tudo se faça hoje à tua vontade e tudo seja festa.

. Ele mesmo me convidava pouco há.

. Encomendamo-nos a Deus e ele nos encha do seu espírito.

Frei Luiz de Souza:

. E ele me vigia a mim…

. Este me avisa que não deixe de acudir.

Rodrigues Lobo:

. Ambos se temiam de outra…

E:

. […] cada um dos dois me fez inveja…

. eu me quisera meter em meios.

. Falo com o rei e cada um se entende conforme a roupa com que se cobre.

Padre Antônio Vieira:

. E eu também me admiro dos que fazem o que ele fez.

. Tudo isso se fazia ao som de trombetas.

Assim todos os clássicos, não só no verso como na prosa, numa razão de noventa por cento.

E para que não se diga que os exemplos são velhos e que são de portugueses, darei exemplos de Rui Barbosa em discursos que são peças não cuidadas.

Por mais áspera que seja, eu a declaro.

Eu a reconheço e saúdo.

Nós nos aliamos contra vós.

Todos a entendiam porque ela era a clareza e a lisura.

Ninguém o compreende.

Nas frases de conjunção, todas as páginas estão cheias de ofensas à gramática e ao estilo, porque as posições de pronome não formam verso regulares [?], o que justificaria a infração idiomática:

. Porque os contornos perdiam-se.

. Porque meu pai tinha-me em grande admiração.

. Que ela amara-me à tonta, devia de sentir alguma coisa.

. Porque eu tinha-lhe voltado as costas.

. Porque em tal caso poupa-se o vexame.

. Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou beijo, se assim quiserem chamar, um beijo que ela me deu…

Destes senões, Dom Casmurro e Memorial de Aires estão cheios, bem como de períodos rimados e do emprego abusivo e fastidioso dos pronomes pessoais.

Outras vezes, cacofonias e francesismos que ferem de frente o modo consagrado:

. O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia ao banquete noturno em que eu pouco ou nada comi porque só tinha olhos para a dona de casa.

No Memorial de Aires:

. Quando faltavam pouco ou nada, o silêncio dizia mais que as palavras.

. Na escola não brinquei com ninguém, ouvia ao mestre, ouvia aos companheiros.

No Brás Cubas:

. Ouço daqui uma objeção do leitor: ― Como pode ser assim, diz ele se, nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?

Você me pode dispensar o comentário, ou melhor os comentários, e somente dizer comigo ― Não nos deixeis, senhor, cair em tentação…

Há plebeísmos no dizer, em quase todas as páginas do Brás Cubas e Memorial de Aires, como estes:

. Pouco dissemos: notícias do Barão que está melhor e do Aguiar, que [trecho ilegível] bom, e despedimo-nos.

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A partir deste ponto, a coluna está parcialmente legível. Hemetério critica Machado pelo uso de mais principal, meia surda, seu pai e mãe, além do abuso de pronomes e de repetições de um termo na mesma frase. Mais: um escritor sem visão própria, falando sempre sob a influência de emoções de outrem, já velhas, já sediças, já banais.

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O Brás Cubas e Dom Casmurro, tantas vezes lidos e relidos pelo autor, seriam um belo tratado das misérias humanas, um abecê dourado para os mancebos libertinos, se não tivessem tantas e tão variadas incorreções de forma e de estilo.

Em suma, meu Fábio como você vê, o Machado não é um clássico porque não se inspirou diretamente nos antigos; não é um romântico à provençalesca porque lhe falta a bondade que é o amor para com seus e um culto para as coisas do Além; e nem ao modo da escola mineira dos Inconfidentes, porque não nos fez ver por um prisma todo seu, completamente novo, os sucessos [fatos] que presenciou na sua longa vida de calma e sossego, sempre remunerado; nem na bitola dos de 1830, na fase de Porto Alegre, ou na de Gonçalves Dias, porque não soube aproveitar o grande arsenal de materiais pacientemente acumulados por mais de uma geração, que honrou a língua, eternizando as coisas boas do seu tempo e da sua pátria.

Adeus: Machado de Assis ficará na história literária do nosso país ao lado de [Domingos] Magalhães que, apesar de branco, foi também corroído pelas misérias da vida e pelos preconceitos vesgos e zarolhos que também roeram o criador de Quincas Borba.

Rua Barão de Ubá, 21.

16 de novembro de 1908

Hemetério dos Santos

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.