Machado de Assis e o Negro: um artigo de 1940, ainda atual

Sérgio Barcellos Ximenes
25 min readJun 20, 2020

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Tema: o artigo Machado de Assis e o Negro, do crítico literário Couto de Magalhães Neto, publicado em 15 de junho de 1940 na revista literária Dom Casmurro, do Rio.

Contexto da publicação: a comemoração do centenário de nascimento de Machado de Assis, em 1939, a qual gerou uma série de artigos elogiosos e também críticos à obra e à vida do escritor.

Críticas contestadas no artigo de Couto:

. A “análise psicanalítica” de Machado e de suas obras.

. O foco excessivo na vida pessoal do autor (notadamente em “defeitos”, como gagueira, epilepsia e estilo reservado de vida) e a busca de relações entre essas características e o estilo de Machado.

. A suposta omissão de Machado na questão do negro no Brasil.

. As exigências de que Machado deveria escrever histórias baseadas nos critérios de seus críticos, e não em sua própria concepção artística.

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Não há informações disponíveis sobre o crítico literário Couto de Magalhães Neto em dicionários biográficos ou mesmo no Google. Esse articulista foi o autor de Machado de Assis e o Negro, um dos mais interessantes textos sobre a questão ainda hoje polêmica, publicado na revista literária Dom Casmurro em 15 de junho de 1940.

Curiosamente esse artigo só aparece, no Google, em uma referência do livro Machado de Assis: Multiracial Identity and the Brazilian Novelist [Machado de Assis: Identidade Multirracial e o Romancista Brasileiro], de G. Reginald Daniel (Penn State Press), com um de a mais no nome do autor do texto original.

Contextualizando o artigo. No ano anterior (1939), comemorara-se o centenário de nascimento de Machado de Assis. Paralelamente aos textos elogiosos saíram vários textos críticos, tanto à obra quanto à pessoa do autor.

A polêmica se estendeu até o ano seguinte. Em 6 de abril de 1940, demonstrando o nível a que chegaram os artigos críticos, a revista literária Dom Casmurro publicou o texto Machado de Assis, vítima de endeusadores, do escritor e crítico literário Alfredo Tomé, no qual o autor aplicava (supostamente) a psicanálise para “entender” a obra de Machado. Apenas três pérolas:

. Os seus romances traduzem apenas recalques e complexos do seu mundo interior.

. O conteúdo dos contos e romances [é] todo ele calcado num pessimismo mórbido, num negativismo doentio.

. Machado de Assis não fugiu à regra quase geral: todo mestiço é pernóstico.

Dom Casmurro (Rio de Janeiro, RJ), 6/4/1940, número 144, página 8 — http://memoria.bn.br/docreader/095605/855

O mesmo Alfredo Tomé havia publicado o artigo Complexos de inferioridade de Machado de Assis, cujo conteúdo é possível avaliar a partir das amostras acima.

O lado dos críticos, à época do centenário, contou com figuras ilustres. Até Monteiro Lobato aproveitou a ocasião festiva para liberar mais uma vez o seu racismo, derivado da doutrina eugenista que defendia como poucos, e terminou seu artigo intitulado Machado de Assis deste modo:

“Saldo equivalente apresentou a vida de Machado de Assis. Não teve filhos. Não legou a criatura alguma os seus pigmentos, a sua gagueira, a sua tara epiléptica, o seu desencantamento das marionetes ― já que não poderia negar-lhes também o seu gênio. E não houve em sua vida ato de maior generosidade. Que coisa terrível para uma criatura qualquer, ainda que de mediana sensibilidade, conduzir pela vida afora a carga tremenda de ser filho de Machado de Assis!

― Sabe quem é aquele corvo triste que vai saindo daquela repartição?

― Aquele corcovado, moreno trejeitante?

― Sim. É o filho de Machado de Assis…

Estamos a ver o ar de apiedada compunção que se estampa no rosto do informado.

A natureza só permite aos gênios uma filha: sua obra. Machado de Assis compreendeu-o como ninguém, e depois de dar ao mundo a mais bela de suas filhas, afastou-se do tumulto sozinho, cabisbaixo, na tranquilidade dos que cumprem uma alta missão e não deixam atrás de si nenhuma sombra dolorosa.

Dom Casmurro (Rio de Janeiro, RJ), 8/7/1939, número 109, página 2 — http://memoria.bn.br/docreader/095605/453

O meio literário, convenhamos, não é para os fracos.

O artigo de Couto de Magalhães Neto soou como um “basta!” à sequência de ataques a Machado, explicitada logo em seu início.

Como esse artigo não se encontra disponível na Web, no site oficial do autor no MEC e, aparentemente, em nenhum livro sobre a questão, segue a transcrição atualizada de seu texto.

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MACHADO DE ASSIS E O NEGRO

Couto de Magalhães Neto

Foto do artigo

O caso de Machado de Assis, cujo centenário foi comemorado há pouco, ainda está no cartaz do dia.

Do ponto de vista intelectual, foi talvez a única vez que o túmulo do silêncio não caiu pesado sobre o nome de um laureado.

Ainda assim. houve escândalo, e do forte, provocado em torno de seu nome. Parece-me que foi Plínio Barreto ou Brito Broca, não sei onde, que protestou contra essa vergonheira de se enxovalhar essa glória com pretensas afirmações científicas…

Todo o mundo falou de Machado. Porém, Machado ficou mais impenetrável que dantes. Afastou-se mais dessa bulha.

Lá, longe, indiferente e sarcástico, vendo o nosso ridículo e rindo-se de nossas bobagens.

Veio à baila o seu mulatismo. A sua doença epilética bamboleou, por aí, cínica, insolente, malcriada.

Todo o mundo mais se importou com a sua vida particular do que com o Machado mesmo que ficou nos livros. E o resultado dessa desarmonia foi que não entendemos mais nada dele. Mas que diabo de mulato este, metido a escrever sobre grã-finos brancos! Irra. Por que não escreve ele sobre o negro, sobre o morro, e não faz os seus heróis trapilhos, sem dinheiro, mas mete-se, apenas, pelos salões da alta [sociedade], fazendo de suas páginas um crivo de coisas que ele nunca teve nem sentiu?

Isto é “complexo de inferioridade”! Isto é recalque!

Pau nele. Um mulato não pode escrever senão sobre mulatos.

Cada macaco no seu galho. Nada de mistura. Nenhum mulato deve ter vergonha de sua carapinha. E este, por que razão tem?

Por quê? E entretanto, esquecemo-nos de que Machado havia crescido e se educado num meio absolutamente pedante, artificial, estreito. Logo, tinha de sofrer a influência de seu meio nesse ponto.

Tinha de arcar com as humilhações dos espíritos tacanhos que, incapazes de uma vantagem no seu terreno, arremetiam contra ele num verdadeiro “complexo de inferioridade”, ofendendo-o sem o mínimo remorso.

Nesse particular, não há mulato, nem branco nem preto que não possua suscetibilidade. Ao menos, que tenha sangue de ostra.

Não pararia[m] aí, porém, as descomposturas que ele deveria mastigar.

Seria essa, sem dúvida, a paga lógica do seu talento, da sua “enorme vocação de artista”…

Aqui está a história da famosa “ausência de paisagem” em seus romances. Outro, ali, fala do Machado refratário à política, embora vivesse numa época perturbada por movimentos intestinos.

Sobre o negro e a República, nada! Diabo de homem seco!

Só vive metido em seu mundo de abstrações, com seus pensamentos.

E a isso chamam grã-finismo!

Entanto, se ele tinha de nos dar obras medíocres sobre o mulato, o negro, antes isso.

Essa mania de ser especialista da matéria é um mal de nossa supercivilizada civilização sem cultura.

Há por aí, porém, gente que versou melhor sobre o negro do que muito negro bom seria capaz.

E vice-versa, no Caso de Machado de Assis…

O fato a notarmos, agora, consiste nisto: — mais esbordoamos a obra do Mestre e mais ela resiste. Mais nos aparece brilhante, inconfundível, admirável, mais cresce.

Sobre a política de que Machado não queria saber, um político da República Velha esgotou o assunto numa série de artigos para o Estado de S. Paulo.

Só não ficará satisfeito com isso quem tiver mesmo vontade de falar à toa. De repente sucede isto de espantoso: os críticos de Machado “descobrem de novo” a sua epilepsia.

E relacionam-lhe a doença com o estilo. Machado só escreve por frases curtas, sem fôlego, estilo de gago.

E nós que não sabemos nada de nós mesmos, dogmatizamos a esse respeito, tornando inabalável essa química esdrúxula.

Os homens compreendem a Machado muito pouco. Nada mesmo. Foi mais feliz aquela escritora que se avizinhou dele com ares maternais [Lúcia Miguel Pereira].

Quase que lhe desvenda a alma. Por um triz! Assim, pois, os campos dividem-se em dois. Num estão os que lhe negam quase tudo, ou tudo mesmo, embora proclamem que lhe querem fazer justiça.

Aí está: se não fosse a boa intenção, o inferno não estaria cheio de justos. Como pode uma alma curta medir o infinito?

Machado não é humano, dizem.

*

Ora, com essa história de “humano” estamos à vontade.

Com ela, podemos adulterar, a nosso talante, ao nosso critério deficiente, as coisas mais grandiosas.

Isto é o mesmo que cairmos num materialismo grosseiro.

Isto é o mesmo que se dissermos: quem não escrever sobre nossas bandalheiras, não serve.

Quem falar em espírito, aqui, é suspeito. E assim por diante.

Com essa teoria, podemos arremeter contra o mais provecto dos espíritas a cachorrada de nossas atrevidas afirmações.

O pudor se torna sem valia. Todo o mundo não presta. Só é [são] critico[s] esses pernas de pau virulentos, posto que pusilânimes.

E assim é que Machado deve ser esmiuçado, clinicamente, e posto, ao depois, para melhor o saborearmos, num frigorifico da Armour…

*

Falemos do meio ambiente. Isso é bom. Qual o meio em que Machado viveu? Num meio de preconceitos, em que precisava viver pisando de leve, com atitudes medidas, todo curvo, respeitoso.

Num meio em que ser mulato ou descendente de negro era mácula, um pequeno crime de que não nos livramos facilmente. A tão apregoada liberdade do negro no Brasil e seus descendentes constitui, infelizmente, até nos dias de hoje, um dos nossos adoráveis vícios.

Mas isto, por certo, vai irritar a pele ao meu vizinho, e ele vai protestar com ares de apóstolo ofendido.

Não, isso é mentira. Meu amigo está errado. Mas eu digo isso porque sei o que estou dizendo. Tenho experiência própria. Aqui em São Paulo é assim.

Ora, Machado, mulato, epilético, de carapinha, por força sofreria essa influência devastadora.

Porque não há coisa que mais nos doa do que a hipocrisia refinada.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o negro, o mulato ou coisa que o valha, é tratado de modo diferente, Ele deve andar no meio da rua e não se misturar com o branco. Mas é preferível.

Não o atraem para um meio em que ele é tido na conta de indesejável.

E isso é melhor. Mais humano, embora pareça incrivelmente estúpido.

O que mais enerva são as alfinetadas do que um bofetão.

Um elefante prefere que o matem a ter uma pulga na orelha. Sofre menos com isso. Ora, tudo ponderado, por força haveria de fazer de Machado um taciturno. Principalmente se levarmos em conta o seu alto grau de inteligência. O sofrimento mudo, que não se extravasa em cólera, em protesto, é um sofrimento mais doloroso e que nos leva, irremediavelmente, ao túmulo.

Como poderia ele escrever sobre o negro num inferno desse gênero?

Impossível! Daí o seu esforço em aplicar-se na arte dos brancos, naquela que lhe daria consideração, conforto, respeito e paz espiritual.

Todo artista é um temperamento. E a ciência já provou que isso é imutável. Em consequência, não há um meio único de que se possa valer um escritor para representar o seu povo.

A arte é duradoura, enquanto do ponto de vista do infinito.

Machado poderia muito bem entender que não valia a pena escrever sobre o negro, a república, em profundidade, diretamente.

Umas penadas, mais ou menos. Mais nada. Ele, que sofria horrivelmente com os preconceitos, precisava demonstrar àquela gente mesma que o seviciava o inútil dos seus andaimes, vividos em uma sociedade corrupta.

Isto não constitui senão um fundo moral admirável. Era por causa da ignorância desaparecesse [?].

Ela precisava ser estigmatizada, combatida. Como, aos berros? Mas isso não estava em sua índole. Além de que não era de político hábil.

Era preciso que ele fosse um novo Erasmo e pudesse compreender a maneira de se infiltrar nesse mundo, sem que ele percebesse, minando-lhe as bases.

Toda a arte é assim, não de superfície, mas de profundidade.

Por vezes, e quantas, foi ele para além dos limites da sátira moral, fina, aristocrática, mas furiosíssima no fundo.

Quantas vezes bateu nas portas do infinito. lavrando páginas robustas de um pensamento digno da galeria dos grandes pensadores.

Uma prova disso é que ele cada vez mais vai se afastando, no sentido da glória, dos outros seus contemporâneos que viveram, de modo diferente que ele, para as lantejoulas do momento.

E por que esses não ficaram? Temos plena consciência de que um escritor pode representar o seu povo em todas as facetas, por exemplo, de seu caráter; pode ser o intérprete de seus sentimentos, no sentido mais amplo que esta palavra comporta, sem que, para tanto, tenha ele tomado parte das questiúnculas nem sempre dignas de seu tempo.

Dante, que chicoteou seus contemporâneos, metendo-os a todos no inferno, sem apelação, por que é que é imortal?

Porque tinha alma, simplesmente. Só o que vem de alguém para fora, com alma, é que fica. Só o pensamento elevado é sólido, irresistível.

O mais é mofo e ferrugem que o tempo atira à lama, como coisa sem utilidade.

*

E a [Divina] Comédia [poema épico de Dante] foi escrita com o mais alto ódio que jamais abrigou um coração humano.

Se assim é, se isso é que dá imortalidade. estamos sossegados quanto a Machado de Assis. Se o seu acusador lhe diz que ele era pernóstico por ter em mãos um látego terrível de sarcasmo, com o qual nos mostrou o ridículo de nossas atitudes e o vazio de nosso peito sem alma, isso mais lhe dá méritos.

É uma obra destrutiva apenas para os que não sabem ou não querem ver o outro lado, aquele soberbo arranha-céu que ficou erguido, depois de ter ele feito em ruínas uma construção soberba de vaidades.

Esse lado amargo de sua obra era como uma advertência para nós.

Imprevidentes — íamos ligados às coisas materiais, ao externo, ao pomposo, ao minuto efêmero.

Esquecíamo-nos de que, dentro de nós, um edifício maior, mais diuturno que não perece, existe, que precisa ser cuidado com maior carinho.

Em síntese, Machado de Assis, destruidor, sarcástico e pernóstico, nos ensinou uma verdade do mais alto valor moral em relação no infinito: só o que repousa sobre a alma e que se aperfeiçoa na luta incessante da verdade persiste: o resto é cinza, miséria e sepultura.

[Alexis] Carrel, em seu famoso livro [O Homem, Esse Desconhecido], depois de ponderar sobre as fraquezas de nossa civilização, notou, com fortíssima propriedade, que o mal dela foi ter nivelado tudo o que fez a certo padrão e querê-lo impingir-nos, ao depois, sem outras considerações.

Desse mal sofremos nós. Há espíritos que levam esse absurdo para mais longe.

Suponhamos que o brasileiro goste de cachaça, futebol e não se impressione com o futuro.

Que gaste o seu dinheiro em farras com mulheres bonitas e jogue veneno sobre a Academia…

Ora, se um escritor quiser ser “escritor brasileiro”, deve jogar futebol, beber cachaça, jogar no bicho, fazer farras com mulheres bonitas, não se impressionar com o futuro e desancar a lenha nas múmias da Academia Brasileira…

Se ele fugir desse abismo e procurar outros ângulos, esse não presta. Conforme o tal, dão-lhe um rótulo: inglês, turco, alemão.

E o pobre diabo deve levá-lo à testa a vida toda.

Esse tal é grã-fino. Quê, onde se viu isso? Isso é estrangeiro!

O brasileiro não é esse tipo correto, asseado, cortês, instruído!

Está divorciado do meio. Esse não conhece a nossa história e nem a nossa realidade cultural. Fora!

Todavia, outros países de cultura mais refinada e civilização madura possuem esses mesmos vícios, com outros títulos mais atrapalhados, que ficam mais belos…

E por lá também existem grandes escritores, grandes artistas, que não falam somente do lixo que têm no canto da casa…

Que vale mais: a força espiritual, [que] parte do escritor para fora, ou a macaqueação servil sem alma?

O próprio Dante só foi grande porque extravasou a sua tremenda ira contra os pigmeus de sua idade [época], sem nenhum verniz espiritual, chafurdados que estavam no lodo do materialismo.

Só o espírito, na luta eterna a favor do bem contra o mal, é eterno.

A carcaça do corpo é apenas um instrumento passageiro para a lapidação do espírito.

*

Machado de Assis apareceu numa época em que, passada a inspiração de Gonçalves Dias e Alencar, voltávamos lentamente para o ramerrão quotidiano de uma mediocridade alarmante.

De quando em vez, um relâmpago de gênio, e a regra se confirma, plena. Então, porque a índole do brasileiro era só para viver “no dolce far niente” [ócio], só esse seria motivo plausível para cruzarmos de todo os braços e nada mais tentarmos?

Mas, se essa é a verdade lógica, então será para mandarmos às favas todo o esforço que fazemos no presente para remediarmos a nossa falta de previdência do passado, a favor do futuro.

Com essa teoria do “por que me ufano do meu país” não é que iríamos entrar para o concerto do universo.

Machado vinha ensinar-nos a medir, com mais acerto, o nosso íntimo, onde se encastelam os pensamentos geradores de nacionalidades.

Povo sem pensadores é povo que não vive muito. Que Machado tenha sofrido influências dos ingleses, dos tártaros, não importa.

Importa o seu exemplo. Toda cultura, ademais, é uma interpenetração permanente. Ela se nacionaliza ao depois, graças ao poder filosófico e à cultura em geral de seus pensadores.

E isto não é nada vergonhoso: é o tributo lógico que detemos, os mais jovens, aos que mais trabalharam para o engrandecimento das ideias — um patrimônio universal.

*

Aos que falam do Machado como a dizer que ele era plagiário, perguntaremos alguém já se deu ao luxo de saber se sua obra superou a de seus modelos?

Eis aí um ponto que merece atenção e que exige uma resposta sem ambages [evasivas]. Sem restrições.

Fala-se em característica brasileira. Mas que escritor notável, dos nossos, jamais se importou com isso? Só Euclides da Cunha, a rigor.

Só em nossos dias o Brasil procura-se aproximar dos brasileiros. Por necessidade da época, porque não desejamos morrer asfixiados nem chicoteados por outros mais valentes…

A nosso respeito, sempre fomos comodistas. Basta-nos saber que somos inteligentes. E isso supre a nossa falta incrível de adestramento.

E enchemo-nos de empáfia. E pomo-nos a arreliar dos outros, reduzindo-os a pós de traque. E sempre somos surpreendidos pelos mais modestos, mais atilados, mais previdentes.

Não gostamos do esforço que gera a recompensa, o bem-estar.

O pensamento nunca nos seduziu. Somos incapazes de gastar um pouco de fósforo num problema árduo, em nosso proveito.

Preferimos a cópia servil.

Apetece-nos mais tudo o que seja rápido e brilhante. Sabemos falar alemão, chinês e sânscrito, e mutilamos vergonhosamente o nosso idioma.

A história da Grécia, da Índia e do Japão, seus reis, generais, tudo, sabemos.

Mas nos encrencamos redondamente se nos perguntarem de chofre quantos galões tem um sargento ou qual a capital do Recife. Somos ignorantes de tudo quanto diga respeito a nós mesmos.

Por isso, o termômetro de nossas resoluções oscila de extremo a extremo. Nada de maduro. Tudo de improviso. O que é nosso serve, apenas, para zombaria e piada malévola.

Mas esta tendência de povo esgotado é que não se coaduna com essa alma escandalosamente rica e soberba, que espera os nossos braços e as sementes amorosas de nosso pensamento para florescer em dádivas, generosamente.

*

É certo que a língua evolui de acordo com os escritores e o povo.

Dizem por aí ser a língua portuguesa o túmulo do pensamento.

Nada mais injusto. Ela é o espantalho dos preguiçosos, dos vagabundos e dos incompetentes.

Sem os escritores, a língua pode existir artificialmente, nem passa de geringonça, não é arte, não atinge à ciência. Não amadurece, retrograda, definha e morre.

A arte é a disciplina. Um povo só tem disciplina quando sabe o que quer. E o sabe querer. Quando exprime com clareza as suas ideias.

Ora, a língua portuguesa não é um túmulo, Falta-nos ordem, estímulo, estudo, perseverança e boa-vontade, sobretudo.

Desse modo, ela alcançará por certo a maturidade, cuja porta Machado de Assis escancarou, de golpe, com energia máscula.

Os Lusíadas são nosso orgulho. Mas com Machado de Assis a língua recebeu um novo sangue, um novo ritmo.

A estrada continua aberta. Nada é definitivo.

Mormente nos povos de calça comprida, como o brasileiro, cujo cérebro se ilumina, a pouco e pouco.

Nosso dia chegará. Trabalhemos. O trabalho é o único melo de nos libertarmos da pobreza e da apatia. Mas trabalhemos com método, sem a que tudo será esbanjamento de tempo.

Façamos nós a nossa riqueza, antes que outros mais sabidos no-la tomem a muque…

*

Então, porque um povo é analfabeto e de costumes bárbaros, não pode possuir um [alguém] que, rompendo a fita da tradição, lhe aponte novos rumos? Novos horizontes?

Se isso fosse verdade, seria o caso de fazermos como aquele déspota chinês que mandou queimar dezenove séculos de cultura em seu país e começar tudo de novo.

Coloque-se Machado de Assis frente a essa tão falada “realidade brasileira”, que bem poucos entendem.

Mas coloquemo-lo de modo tal, que de nosso ângulo de observação possamos vê-lo, não envolto em brumas, porém, claro, integrado nessa realidade.

Não importa que ele pouco se desse ao ócio de análises do ambiente indígena.

Esquivo e sempre em fuga, Machado é um escritor cuja ideia precisamos surpreender, depois de longa meditação.

Agarrá-la pelos cabelos, pelas pernas rijas de resistência, inteirinha, e não pelas faces de brilho perturbador, eis aí o método.

A paisagem intelectual de seu tempo — monótona e bravia. Só comportava o medalhão, como ainda hoje há muitos por aí…

Para sair desse meio de asfixia era necessário que o indivíduo fosse herói.

Pois Machado o foi. Deu um vasto pontapé naquilo tudo, virou o pragmático pelo avesso e demonstrou que a nossa vida estava torta.

Para atingir o bem, penetrou sem escrúpulo no antro sáfaro [bravio] do mal.

É preciso ter um estômago de touro para não sentir náuseas e desmaiar de vertigem, quando se entra no subsolo da decomposição moral de um povo.

No tempo de Machado, as inquietações brasileiras não eram tão graves como as de hoje. A fruta de nossas fraquezas estava em período de apodrecimento, apenas, mas o minuto crítico se aproximava vertiginosamente.

Nossos predecessores, porque não tivessem inspiração divinatória e nem muitas necessidades, e acreditassem demasiado em si próprios, só acumularam erros, dos mais crassos, para a nossa herança.

É o que em geral acontece com os povos sem experiência própria.

Só depois de muito errarmos, aprendemos. Nada adianta, pois, ver o passado com ódio. Temos é de agir. Com prudência e astúcia. Essa é a mais dura e comovente de nossas responsabilidades.

Se fôssemos habituados à meditação, se não fôssemos somente papagaios, desses que incensam tudo o que não presta dos outros e ridicularizam o que têm de melhor em sua própria casa, não passaríamos, agora, por pedaços de incompreensão caótica.

Graças a Deus, contudo, levantamo-nos. Reagimos. Bom sintoma.

De resistência. Avante!

Falta-nos uma base sólida de cultura que nos oriente o esforço e as necessidades de nossa época e nos encoraje.

Nada de muito falatório, todavia. A era dos discursos já passou.

Ação. Mas onde não há quem oriente, a massa se torna apática e rebanho, e se dispersa pelo vento frágil das ideologias dissolventes, contrárias aos nossos legítimos interesses.

Machado foi, assim, na aparência um cético, um destruidor, um dissolvente, um anarquista.

Títulos pomposos, cômodos para quem não quer pensar. E isso parece, além do mais, extraordinariamente profundo…

Com o chicote do sarcasmo queria Machado, apenas, demonstrar que as doçuras diárias, fofas e pecaminosas dos sentidos contribuem para o desmoronamento da raça.

E isso está de sobejo comprovado com uma clareza meridiana no estudo feito por Ortega y Gasset [filósofo espanhol], quando estuda o motivo da rebelião das massas [no livro A Rebelião das Massas].

Mas onde estava essa doença crítica? Nos negros do morro, inofensivos em sua cachaça e em seu batuque a lhes agravar a miséria sem fim?

Que influência poderia ter sobre o povo brasileiro o pobre negro, imerso em seu destino desesperado? Nenhuma.

Esse mal estava na elite, e esta, quando deteriora, a decadência da estrutura nacional é inevitável.

O alto influi o baixo, o baixo arremeda o alto, no que ele tem de pior, é claro, e pode vir a ser o alto.

Iludem-se, desse modo, os que pretendiam ver o Machado de Dom Casmurro e outras obras-primas gritando feito louco pelos negros e suas reivindicações ou estudando-o em seu íntimo como Nina Rodrigues, Gilberto Freire, Artur Ramos e outros muitos.

O que importava, no momento histórico nacional daqueles dias, era chicotear, de rijo, a nossa elite, que chafurdava no gozo material, fazendo-lhe sentir que em suas mãos estava o destino de um povo de oito milhões e pico de quilômetros quadrados.

E isso só poderia ser atingido se houvesse um Isaías possante a lhe azucrinar o ouvido e lhe mostrasse que esse caminho a levaria para a bancarrota, sem apelo, irremediável, e nunca ao infinito de Goethe.

Machado necessitava ter em si, portanto, mais do que esse desejo velhaco de vingança que lhe imputam, uma força divina, alicerçada na fé inabalável no futuro de sua gente.

Os que precisavam apanhar não eram os negros do morro.

Era a nossa sociedade, constituída em elite que se decompunha, paulatina mas vergonhosamente.

E os fatos de hoje dão razão ao Machado cético, pernóstico e destruidor, felizmente, de ídolos absolutamente ocos por dentro.

Foram esses que lavraram a terra de corrupção, de vergonha, na ânsia criminosa de se aboletarem em fofas cadeiras, sem outro intuito que a expansão de um personalismo doentio de grandeza.

Irresponsáveis e sem o senso de equilíbrio em seus atos, foram eles que mais comprometeram a unidade de nossa terra, sem verem que ela perigava, há tempos, não houvesse um freio nessa descida, que deitasse término à nossa indiferença, à nossa abdicação sem limites e que nos punha gélidos diante de nossos mais reais valores. Eis tudo.

*

Vê-se que a crítica, a verdadeira, em Machado, atinge um ponto altíssimo, só comparável àquele que inspirou a previsão terrivelmente matemática de Rui Barbosa acerca do destino que nos esperava.

A crítica de Machado, embora pareça absurdo, caminha em paralela à de Rui, com esta diferença: — Rui trovejou de sua cátedra, mais eloquente que Demóstenes, contra os hábitos inconfessáveis de falcatrua de um sistema inadequado ao nosso meio, que ele, infelizmente, ajudara a agravar com suas geniais utopias.

Machado preferiu outro campo, outro setor mais profundo, a célula de nação: — a nossa elite.

Ambos tinham, no mais alto grau, a mesma confiança nos destinos de nossa raça e na eternidade de nossa terra.

Se ambos não acreditassem nas reservas de nossa gente, ambos teriam quebrado a pena. Quem não espera nada de sua Pátria não burila, com aquele ardor fanático, a língua em que semeava as ideias.

Quem semeia é porque acredita na colheita próxima da eternidade.

Só a eternidade enfeitiça a nossa esperança. O contrário é o suicídio.

Considere-se, agora, que a evolução política é de todo impossível onde as ideias se baralham e não tomam a forma geométrica na clareza.

A luta é necessária, e ela só se torna possível através do pensamento. Falo da luta leal, viva, eterna, e não da turbulenta e ácida, que se contenta com o prato magro do dia de amanhã e não se importa com o abrigo de carvalho do futuro. E essa só nasce no pensamento nobre, generoso, honesto, culto e solícito, sobretudo, que vê em todo cérebro uma usina capaz de inédita energia criadora.

• • •

Infelizmente não temos, ainda, uma disciplina espiritual de reservas suficientemente ordenada que nos guie nas horas de desânimo.

Habituados a uma liberdade cínica e desenfreada, os nossos atos eram dispersivos, quando mais necessitava a nossa terra de prudência e trabalho.

Sem a disciplina espiritual, como venceremos?

Há males que vêm para bem, contudo. De nossa desordem, eis que, em dado instante, acordamos, frente ao perigo.

Resta-nos no momento trabalharmos e ganharmos o tempo perdido.

Outra senda é perigosa. E isso tudo Machado previu.

Viu que a corrupção, a vagabundagem, o lirismo inócuo, a luxúria, os defeitos precoces de uma civilização importada iam afrouxando os músculos de nosso caráter.

A luxúria amolece os sentidos, narcotiza as resistências, é desagregadora.

Foi isso que Machado quis evitar. Viu e se assombrou.

Isso era mais terrível do que a falência física e moral dos negros do morro, afeitos à mandriagem e à prostituição por falta de alfabeto e bússola.

E por quê? Porque os negros podiam danar-se. Desaparecer. Eles não eram a maioria. Não eram o corpo. O corpo ameaçado pelo tétano do braço perde alguma coisa quando o amputamos? O sacrifício da parte é útil ao todo.

Mas quem era o todo aqui? A elite. A sua morte, no caso, significava a do Brasil inteiro, que nem poderia salvar, sequer, os seus negros do morro.

Daí o acordá-la. E como? Com um chicote de fogo, com a lâmina do sarcasmo.

A ironia bem aplicada só não desperta os invertebrados, mas levanta o moral daquele que possui bom sangue.

Apesar dos pesares, Machado acreditava em nossa elite.

A sua mensagem foi dirigida para ela, como possuidora que é da chave da grandeza de nosso povo. Pensar, pensar, pensar, eis o seu pórtico, eis a sua entranha, eis o seu sentido mais elevado.

Só se chega ao povo pela elite forte de saúde espiritual e de excelente físico.

Machado compreendeu ou não o seu tempo? Mais do que isso. A sua raça, a sua terra, o Brasil.

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Do mesmo modo que o Eça, Machado de Assis foi incompreendido. Eça sofreu o diabo.

Só lhe faltou uma Inquisição para lhe queimar os livros em praça pública.

Mas a geração de hoje o cultua como a um dos cimos da inteligência luso-brasileira.

Não joguemos, nós, os brasileiros, na lata do lixo, como coisa imprestável, uma das mais legítimas glórias de nossa formação espiritual.

Aceitemo-la. Tal como é. Com todos os defeitos e virtudes.

Um povo que se preza faz justiça aos que mais o engrandeceram e não se envergonha dos pomos que eles amadureceram para nós, com o pensamento em nós, através de angustiosas vigílias.

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Machado de Assis pernóstico? Grã-fino? Ai, quem nos dera termos mais alguns Machados de Assis!

Ao menos, ninguém seria capaz de dizer, lá fora, que na Avenida Rio Branco há cobras passeando nas calçadas e ninguém diria que a capital do Brasil é Buenos Aires! Eles, os cultos…

Que povo procura ser eterno ingênuo? Só é analfabeto o povo que não é estimulado a ser instruído.

Só a cultura engrandece um povo, e a civilização estável só é possível, segundo [Oswald] Spengler [historiador e filósofo alemão], graças a ela…

Povo sem cultura e que se não se esforça por formá-la, depende eternamente dos outros e está fadado ao desaparecimento eterno.

Como, pois, investirmos contra Machado por ele nos abrir os olhos e nos indicar o verdadeiro rumo?

Precisamos derrubar, do alto, o que não serve, o que se torna pesado, os parasitas, o caruncho imprestável.

Se Machado fosse apenas pregador de cultura e não apóstolo do exemplo, quem lhe daria crédito?

Mas um homem que trilha toda a sua existência numa devoção fanática, enaltecendo cada vez mais o seu culto, esse não é um vingativo, um medíocre, um pernóstico.

Os vingativos consomem-se no labirinto de seus pensamentos anárquicos, e porque tenham ideias fixas, são estéreis, de ventre árido e cérebro de eunuco.

A ideia fixa não eleva ninguém aos píncaros da perfeição moral, mas mete o bruto no manicômio. O exemplo de Machado é típico.

Ele está aí a atestar que essa história de raça superior, de tipo dolicocéfalo, de ângulo facial reto, é pura invenção ariana que se esquece da sífilis que lhe decompõe o sangue…

Todos os homens, segundo a herança de seus antepassados, o método de vida que levam, podem elevar ou pelo menos predispor a sua raça para que ela vibre em elementos de maior vitalidade, contribuindo desse modo para a expansão da cultura universal.

Povo que se não educa não tem expedientes nas horas de aperturas críticas.

Apanha e não reage. Escravizam-no, e depois de escravizado não tem glóbulos vermelhos no sangue. E apodrece.

Povo sem ambição de um porvir eterno não crê no petróleo, não o procura e arruína-se em plena mocidade, no formigueiro babilônico das metrópoles.

Só o ideal é prolífico. Só é idealista o povo que pensa por sua própria cabeça, depois de se instruir com os mais avisados e experientes.

Foi essa a lição de Machado, que o Brasil de hoje está compreendendo e procura seguir com inteligência, na ânsia eterna de ver respeitado o seu destino!

*

Complexo de inferioridade é tapeação. Cada povo, falo dos capazes de se governarem por si próprios, é dono do seu nariz.

Essa frase-chavão tem mergulhado mais povos na obscuridade do que todas as guerras do mundo, até hoje.

Por isso, falamos do Machado mulato com a irreverência dos nulos frente aos sábios.

Temos ciúmes de suas maneiras, do esforço do seu talento vitorioso e da vertigem que a sua altura nos causa.

Apedrejar os deuses sempre foi o prazer dos mortais invejosos.

Está no íntimo de cada um de nós.

Quem inventou o arianismo? Um grupo de pretensiosos, sem o mínimo respeito à individualidade alheia.

Machado de Assis mulato pernóstico? E por quê? Porque um mulato é mulato, e a escala hierárquica precisa ser respeitada?

Mas a era dos párias já se foi, embora a nossa escravidão moral, no presente, seja mais cínica e dura do que todas as escravidões do corpo e da enxada.

Então um mulato só deve ter pensamentos do morro? Mas o pensamento não é privilegio de nenhuma cor e tanto pode se alojar no cérebro de um branco do mesmo modo que pode estar no de um negro.

E isto que é senão recalque? E que recalque brabo!

Mas o recalque é a vingança dos falidos. Quando se trata de um mulato em luta com o meio, se ele o vence e projeta-se na eternidade, é pernóstico.

Porque um mulato não deve ser diferente de outro mulato…

Aí está um velho tabu de “certos civilizados”…

E tanto ele se aplica a mulatos, a brancos e negros, a todos aqueles que estejam no catálogo dos inferiores, dos não arianos…

Imitamos dessarte [desse modo], em plena primavera de nossa cultura, o pior das entorpecidas, cansadas e de nervos lânguidos.

Todo mulato é pernóstico… É de efeito, e de arromba, mas como fica mal na boca desse que pretende ser superior a todos os críticos simpáticos à obra de Machado de Assis e que troveja superficialmente essa paródia insignificante da trompa dos “gênios”…

Quando um Salomão, um Omar Khayyam [poeta persa de Rubaiyat], um Dante, um [Giacomo] Leopardi [poeta e ensaísta italiano], um Shakespeare, falam alto e arrotam, com virulência, contra o alicerce da parvoíce, por desejá-la mais próspera e menos estúpida, esses são sábios e gênios, trabalharam pela humanidade!

Sim, [Jiddu] Krishnamurti [pensador indiano], Schopenhauer [filósofo alemão], Nietzsche [filósofo alemão], Spengler e [Hermann von] Keyserling [filósofo alemão] podem falar, quando quiserem, na primeira pessoa, e embora eles tenham o mesmo ar de tristeza por verem a turba incrédula, o mundo atrasado e sem roteiro certo; embora eles tenham aperfeiçoado, cada um de per si, o instrumento da própria cultura, em inspirações de outras, esses são super-homens…

E qual desses não sofreu influência? Nada de novo há sobre a terra…

E Machado de Assis é mulato pernóstico, sofre de complexo de inferioridade, só porque abandonou a ladeira e foi para a planalto, onde indiscutivelmente o ar é mais rico em oxigênio.

Tivesse Machado de Assis escrito numa língua mais universal, e apesar de pernóstico e mulato seria um Gênio!

Felizmente o Brasil desperta.

A hora fatal soará para esses incrédulos, para esses falsos valores, para todos os papagaios de penas macias e de gorjeio flácido, que nos querem impingir por força a moeda sem lastro de suas mercadorias de importação duvidosa…

Então Machado de Assis não será mais um mulato pernóstico, mas, como um dos picos de nossa cultura, velará pelo respeito que o Universo prestará cerimonioso ao Brasil, forte e florescente, e mais que tudo abençoado pela união de todos os seus filhos.

Casmurro (Rio de Janeiro, RJ), 15/6/1940, número 153, página 5 — http://memoria.bn.br/docreader/095605/972

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.