A crítica literária e a “traição” de Capitu. 2. Francisco de Paula Azzi: a primeira defesa categórica da fidelidade de Capitu (1939)
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Tema: o artigo Capitu, o enigma de “Dom Casmurro”, de autoria do odontólogo Francisco de Paula Azzi.
Publicação: Correio da Manhã (Rio de Janeiro, RJ), 30 de julho de 1939, número 13.721, no Suplemento, página 5, da primeira à terceira coluna.
Republicação do artigo: Mensagem: Quinzenário de arte e literatura (Belo Horizonte, MG), 15 de dezembro de 1939, com o título O eterno enigma de Capitu.
Importância: Primeiro texto integralmente baseado na questão da suposta traição, e também o primeiro a afirmar categoricamente a fidelidade de Capitu e a atribuir ao “ciúme mórbido” de Bentinho o conteúdo do seu relato.
Pesquisador responsável pela descoberta: Ubiratan Machado.
Primeira reprodução em livro: Dicionário de Machado de Assis, de autoria do pesquisador, em 2008.
Defensores da posição “Sim”: José Veríssimo (1916, avaliação definitiva), Frota Pessoa (1902), Manuel de Oliveira Lima (1909), Alfredo Pujol (1917), Renato Almeida (1918), Múcio Leão (1922), Américo Valério (1935), José Maria Belo (1935), Augusto Meyer (1938), Mário Matos (1939), Carlos Castello Branco (1939), Olegário Ramalhete (1939), Lia Correia Dutra (1939), Mário de Andrade (1939), Amando Fontes (1939).
Defensores da posição “Talvez”: José Veríssimo (1900, primeira avaliação), Lúcia Miguel Pereira (1936)
Defensores da posição “Quase certamente sim”: Luís Martins (1939).
Defensores da posição “Quase certamente não”: Breno Pinheiro (1939).
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Neste segundo artigo da série sobre a polêmica da traição de Capitu iniciarei a cronologia da posição dos críticos, num total inicial de 20 deles, indo até o primeiro que defendeu categoricamente a fidelidade da esposa de Bentinho ― ou seja, a posição “não”.
O conceito de narrador não confiável (unreliable narrator)
Os conceitos e seus significados constituem uma boa parte do nosso pensamento, e eles existem por um bom motivo: são nosso principal recurso intelectual de compreensão da realidade.
O conhecimento e o uso de determinado conceito podem servir, por si só, para esclarecer uma questão. Por exemplo, o conceito de fake news (notícias mentirosas) surgiu para distinguir entre notícias simplesmente errôneas, geradas por equívoco humano, e notícias intencionalmente manipuladas com o objetivo de produzir um efeito político desejado por seu manipulador.
O uso apropriado dessa classificação (de natureza crítica) permite compreender a natureza do fato, a sua origem e seus efeitos.
Já a ausência de determinado conceito pode impedir o esclarecimento de uma questão, mesmo de natureza simples. Na literatura brasileira, o maior exemplo desse efeito danoso da ausência de um conceito necessário foi a interpretação dominante da questão central (ao menos do ponto de vista da recepção) do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, até a década de 60 do século passado: Capitu traiu ou não a Bentinho?
O romance, impresso em 1899, veio à público em 1900. Somente em 1961 o crítico literário estadunidense Wayne Booth (1921–2005) lançou o hoje clássico Rhetoric of Fiction (Retórica da Ficção), no qual, entre outros conceitos originais, introduziu o de narrador não confiável (unreliable narrator).
O exemplo clássico de narrador não confiável no Cinema se encontra em Rashomon (1950), obra de Akira Kurosawa. Quatro testemunhas de um crime duplo (o assassinato de um samurai e do estupro da esposa) contam cada qual a sua versão, bem diferentes entre si. A história revela a subjetividade inerente à percepção e ao juízo humano, em especial quando há interesses pessoais envolvidos em uma situação.
No romance Crônica da Casa Assassinada (1959), o brasileiro Lúcio Cardoso utilizou dez narradores-personagens para contar, cada qual do seu ângulo, a vida da personagem central, Nina, todos convencidos da veracidade de seu relato parcial.
Exemplos de narradores não confiáveis: loucos, espiões, criminosos, partes interessadas em um conflito, doentes mentais, partidários políticos. Todos, suspeitos por natureza.
Fosse lançado hoje, os resenhistas classificariam Bentinho como narrador não confiável, sem exceção, desconfiando da veracidade do seu relato, até porque, ao contrário dos dois exemplos acima, não há em Dom Casmurro a presença de relatos alternativos.
Mas antes da popularização desse conceito literário, autores inteligentes, como Machado de Assis, conseguiram iludir muitos leitores, entre eles resenhistas e críticos famosos, produzindo efeitos de interpretação hoje quase impossíveis de conseguir.
Um histórico das posições de críticos literários ante a questão polêmica de Dom Casmurro: Capitu traiu ou não a Bentinho?
1. José Veríssimo (1857–1916) — 1900 e 1916.
Um dos principais críticos da época de Machado de Assis, José Veríssimo inicialmente considerou Bentinho “suspeito” ao contar a história da traição de Capitu, em resenha de 1900:
“Capitu, a dissimulada, a pérfida, é deliciosa de afetuosidade felina, de reflexão e de inconsciência ou desplante, de animalidade inteligente e perspicácia feminil, de jeito, de feitiçaria e graça, e, com isso tudo, viva, real, exata. Dom Casmurro a descreve, aliás, com amor e com ódio, o que pode torná-lo suspeito.”
Fonte: Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 19/3/1900, número 78, página 1, quinta coluna: http://memoria.bn.br/DocReader/364568_09/177
Transcrição integral da crítica: https://medium.com/@sergiobximenes/o-primeiro-crítico-literário-que-suspeitou-da-história-de-bentinho-sobre-a-traição-de-capitu-45a4992ce86d
Nos anos seguintes, Veríssimo assimilou a posição dominante entre os contemporâneos, passando a afirmar a existência do adultério.
“Dom Casmurro é exemplo desta sua superior faculdade de romancista, comprovada aliás em toda a sua obra. É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele [Bentinho] jamais o percebesse ou desconfiasse. Somente o veio a descobrir quando lhe morre num desastre o amigo querido e deplorado. Um olhar lançado pela mulher ao cadáver, aquele mesmo olhar que trazia ‘não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca’, o mesmo olhar que outrora o arrastara e prendera a ele e que ela agora lança ao morto, lhe revela a infidelidade dos dois. Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo.”
Fonte: História da Literatura Brasileira, José Veríssimo, 1916.
Texto on-line: https://literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=144369
Posição inicial do crítico: Talvez. Posição definitiva: Sim.
2. Frota Pessoa (1875–1951) — 1902.
Dois anos depois, em 1902, o crítico Frota Pessoa lançou o livro Crítica e Polêmica, no qual afirmava, à página 67:
“O seu último livro, Dom Casmurro, é de concepção inferior. Expurgando-o das pequeninas observações que o recheiam, pedacinhos de vida e pedacinhos de alma, vistos como através de um buraco de fechadura, ele resume-se em mostrar como uma criança licenciosa por educação e talvez por atavismo dará uma mulher adúltera.
“E esta moralidade explícita lá está no livro: ‘Uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca’. Parece-me exagerado quatrocentas páginas para tão pouco.”
Fonte: Crítica e Polêmica, Frota Pessoa, 1902.
Link para download da obra: https://literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=170533
Posição do crítico: Sim.
3. Manuel de Oliveira Lima (1867–1928) — 1909.
No texto As várias óticas sobre Machado de Assis afirmam que ele foi tão plural quanto sua obra, publicado na revista literária Rascunho em dezembro de 2019 e no jornal Gazeta do Povo em março de 2020, Marcos Hidemi de Lima informa:
“Oliveira Lima, na conferência proferida na Sorbonne, em 3 de abril de 1909, observa, à certa altura, que ‘essa linda Capitu, a rapariguinha de espírito precoce que, num adorável idílio infantil, tão simples e entretanto tão atraente, guia, aconselha e domina já, por meio de sua decisão perspicaz, o menino de vontade mais fraca que mais tarde ela enganará’.”
Fontes: Rascunho, edição 236, dezembro de 2019: http://rascunho.com.br/olhares-sobre-o-bruxo/
Gazeta do Povo, Florianópolis (SC), 9/3/2020: https://www.gazetadopovo.com.br/cultura/as-varias-oticas-sobre-machado-de-assis-afirmam-que-ele-foi-tao-plural-quanto-sua-obra/
Posição do crítico: Sim.
4. Alfredo Pujol (1865–1930) — 1917.
Primeiro crítico a realizar uma série de conferências sobre Machado (1915–1917) depois reunidas em livro lançado no ano da última conferência, Alfredo Pujol não podia ser mais claro em sua posição:
“Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina — , Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente. Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa com a companheira de infância. Capitu engana-o com seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mau.”
Fonte: Dom Casmurro e o infindável debate sobre a traição, Objetos educacionais do MEC, página 3: https://bit.ly/2OtQB3e
Posição do crítico: Sim.
5. Renato Almeida (1895–1981) — 1918.
Em artigo publicado na Revista Americana, o crítico literário e futuro folclorista Renato Almeida escreveu sobre a questão:
“D. Casmurro suportou o adultério de Capitu com outro desespero e tortura que, em mesmas circunstâncias, sofreu Mr. Bergeret [personagem da série História Contemporânea, de Anatole France]. Influências, talvez, de espírito mais culto, mas, para mim, não creio na ação delas sobre um homem em tal estado.”
Fonte: Machado de Assis, Renato Almeida, em Revista Americana (Rio de Janeiro, RJ), fevereiro-março de 1918, página 78: http://memoria.bn.br/DocReader/052558/9027
Posição do crítico: Sim.
6. Múcio Leão (1898–1969) — 1922.
Em texto sobre a ópera Dom Casmurro, encenada em 1922, o crítico literário Múcio Leão sentenciou:
“O tema central de Dom Casmurro é o que há de mais banal, de mais frívolo, em um romance: é a história de um adultério sem nenhum relevo, sem nenhum particular encanto.”
Fonte: Correio da Manhã (Rio de Janeiro, RJ), 13/10/1922, número 8622, página 2, primeira coluna: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_03/12227
Posição do crítico: Sim.
7. Américo Valério (? — ?) — 1935.
No estranho estudo psicanalítico As Mulheres de Machado de Assis, Américo Valério afirmou a respeito de Capitu:
“Capitu, outra exata infermulher, multiplica a personalidade.
“Histérica, de futuro timbre paranoico, adulterava naturalmente os fatos, pela exaltação reflexa e terreno emotivo. Em sonhos metanormais e monstrengos oníricos, recalca certos impulsos do sexo. Mas um dia a casa caiu. A censura proibia, pela falta de oportunidade, estes desejos que Capitu realizava em sonhos. O adultério não é episódio ocasional. Mas, predestinado, congênita e freudianamente. Menina seivosa e irregular, os toques paranoicos indicavam a pecadora tardia. Procura nos amplexos escusos, sob cruel herança, a satisfação imperiosa da sexualidade. Não teve culpa. Nem Machado. Nem o Sr. Caio [de Freitas Castro, autor de artigo homônimo que inspirou Américo a realizar essa análise]”.
Fonte: Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro, RJ), 10/2/1935, número 34, página, da segunda à penúltima coluna: http://memoria.bn.br/DocReader/103730_06/3713
Posição do crítico: Sim.
8. José Maria Belo (1885–1959) — 1935.
Em seu trabalho crítico sobre Machado de Assis, José Maria Belo segue a opinião geral de sua época, escrevendo às páginas 56 e 57 de seu livro de ensaios:
“D. Casmurro é uma pobre alma, sem vontade, afetuosa e boa. Quem lucrou com isto? Capitu, que ele amou desde criança, através da má vontade de José Dias e dos seus superlativos, e com os seus ‘olhos de ressaca que arrastavam para dentro como a vaga que se retira da praia em dias de ressaca’, o trai com o seu amigo único, o Escobar. O filho, Ezequiel, a esperança e a alegria da vida, é filho de outro, do amigo.”
Fonte: Inteligência do Brasil Ensaios sobre Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e Rui Barbosa. Síntese da evolução literária do Brasil, José Maria Belo, terceira edição, 1938: https://bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/123
Posição do crítico: Sim.
9. Lúcia Miguel Pereira — 1936.
A primeira mulher a comentar a polêmica, a crítica literária Lúcia Miguel Pereira adota posição semelhante à de José Veríssimo em 1900: Bentinho é um narrador suspeito, e quanto à traição de Capitu, quem poderá saber? Reproduzindo a posição da autora na página 273 do seu livro:
“Casado com uma mulher de fogo, ele próprio mais propenso à interiorização, desconfiado de si, Bentinho não podia deixar de ter ciúmes. Ciúmes doentios, dolorosos, que fizeram dele quase um assassino e que o levaram à misantropia? Ou fundados?”
Fonte: Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico, Lúcia Miguel Pereira, 1936: https://bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/155
Posição da crítica: Talvez.
10. Augusto Meyer (1902–1970) — 1938.
Augusto Meyer, em seu ensaio Capitu, atribui a infidelidade de Capitu a uma natureza indomável:
“Em Capitu, há um fundo vertiginoso de amoralidade que atinge as raias da inocência animal. Fêmea feita de desejo e de volúpia, de energia livre, sem desfalecimentos morais, não sabe o que seja o senso de culpa ou do pecado.”
Fonte: Vamos Ler! (Rio de Janeiro, RJ), 11/8/1938, número 106, página 19, primeira coluna (em Panorama Literário, texto anônimo): http://memoria.bn.br/DocReader/183245/4763
O. Martins Gomes, em artigo de 1939 para o Correio da Manhã, confirma essa posição de Meyer, reproduzindo um trecho do autor:
“Através de alguns aspectos da obra de Machado de Assis tentei traçar o seu retrato psicológico sem espírito prevenido. Está claro porém que esse homem era uma colônia de almas contraditórias, como toda personalidade complexa: o niilista feroz foi um funcionário público exemplar, o cético fundou a Academia de Letras, o cínico deliciava-se mentalmente na companhia da pérfida Capitu porém amou a ‘meiga Carolina’ — e o humorista (este, então, nem se fala!) era a consciência de todos esses contrastes, o espectador que sacode a cabeça, desenganado sorrindo, sem esperança alguma de poder harmonizar a família desunida.”
Fonte: Correio de Manhã (Rio de Janeiro, RJ), 16/6/1939, número 13.683, página 11, antepenúltima coluna. página 27, sobre Augusto Meyer: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_04/52710
Posição do crítico: Sim.
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A importância do ano de 1939 para a questão central de Dom Casmurro
A imprensa brasileira comemorou o ano do centenário de nascimento de Machado de Assis com matérias especiais e artigos importantes sobre o autor e sua obra.
Justamente esse ano viu surgir, pela primeira vez, algumas rachaduras importantes no monólito da certeza da traição de Capitu. A história contada atualmente seria outra, se os estudiosos dos anos seguintes houvessem referido com destaque, em seus artigos e obras, a pelo menos um dos textos críticos publicados então: o último da série deste artigo.
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11. Mário Matos (1891–1966) — 1939.
Nas páginas 232 e 233 de seu livro sobre Machado de Assis, o crítico literário Mário Matos alinha-se com a maioria dos estudiosos de Dom Casmurro em sua época:
“O adultério de Capitu é uma previsão do subconsciente do leitor, que o adivinha desde a afeição brotada entre os dois adolescentes. Aventa-se como fatalidade do temperamento de Capitu, ‘uma criatura mui particular, mais mulher do que ele, Bentinho, era homem’. É a expressão significativa do romancista.”
“Os atrativos com que a Natureza a compôs, a saúde sexual de que é dotada, a fatalidade de enganar, que traz em si, como nota singular, são outras razões, cada qual mais lúcida, para cumprir, com o disfarce instintivo da astúcia, o destino do engodo ao homem a quem ama. A quem ama? Não é positivo. Capitu teria amado Bentinho? Interrogação impossível de ser decifrada.”
Fonte: Machado de Assis: O homem e a obra, os personagens explicam o autor, Mário Matos, 1939: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/237/1/153%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf
Posição do crítico: Sim.
12. Carlos Castello Branco (1920–1993) — 1939.
Em 20 de maio de 1939, um mês antes da comemoração do centenário do escritor, a revista Dom Casmurro publicou um artigo do jornalista Carlos Castello Branco com o título A dos Olhos de Ressaca… (referência ao olhar de Capitu).
O jornalista comparou Capitu a Carmen e a Colomba, personagens do escritor francês Prosper Mérimée (1803–1870), para depois concluir que, apesar do olhar de mistério das três, Capitu possuía essência “intangível”. E finaliza: “É que Capitu é um mistério”.
Fonte: Dom Casmurro (Rio de Janeiro, RJ), 20/5/1939, número 22, página, terceira e quarta colunas: http://memoria.bn.br/DocReader/095605/369
Posição do autor: Talvez.
13. Olegário Ramalhete (? — ?) — 1939.
Em seu artigo Mulheres de Machado de Assis, publicado na Gazeta de Vitória (ES) em 31 de maio de 1939 (página 3), Olegário Ramalhete foi categórico:
“Capitu e Virgília são adúlteras”.
Essa afirmação derivou de uma análise psicológica amadora das “mulheres de Machado”:
“Elas jamais conseguiram aparecer, em seus livros, como símbolo de sentimentos puros, da concórdia humana, do elo que une almas entre si. São contraditórias, ou frias. Inquietas, ou perversas, quase sádicas. Ambiciosas, ou voluntariosas calculistas. Quando não são levianas, ou adúlteras.”
Daniel Gomes da Fonseca, em sua dissertação de mestrado Em Torno da Ironia: Análise de Dom Casmurro, de Machado de Assis, reproduz o texto, indisponível na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.
(Observação: a dissertação de Daniel, uma das fontes desta série de artigos, é um recurso único de estudo porque o autor transcreveu vários artigos relativos à polêmica da traição de Capitu. Se você se interessa por essa questão, baixe-a.)
Posição do crítico: Sim.
13. Lia Correia Dutra (1908–1989) — 1939.
Em seu número de junho, o mês do centenário, a Revista do Brasil publicou o artigo Algumas Mulheres de Machado de Assis, da página 74 à 85. Esse texto se encontra indisponível on-line, mas não o da sua reprodução no Diário de Pernambuco em 18 de junho do mesmo mês.
Lia também corrobora a visão dominante do seu tempo:
“Na Capitu menina já está a Capitu que enganará, porque só pode viver de subterfúgio, só pode respirar na mentira, seu elemento próprio, a sonsa Capitu que se insinua de mansinho, que avança pouco a pouco, em passos cautelosos e macios, para acabar tomando conta de tudo”.
E:
“Não se sabe quando Capitu começará a trair Bentinho, quando tem início seu amor por Ezequiel. Antes, depois do casamento? Capitu é a própria mentira; mente e mentirá sempre por uma exigência profunda de seu temperamento”.
Fonte: Diário de Pernambuco (Recife, PE), 18/6/1939, número 187, páginas 2 (terceira e quarta colunas) e 8 (da primeira à quarta coluna): http://memoria.bn.br/DocReader/029033_11/33802 — http://memoria.bn.br/docreader/029033_11/33808
Posição da crítica: Sim.
14. Mário de Andrade (1893–1945) — 1939.
Em sua avaliação de como as mulheres eram concebidas por Machado de Assis, Mário de Andrade incluiu implicitamente a personagem Capitu:
“Na obra de Machado de Assis as mulheres são piores que os homens, mais perversas. Não que os homens sejam bons, está claro, mas são mais animais, se posso me exprimir assim, mais espontâneos. As mulheres não: há em quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez [duplicidade de caráter], uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a entrar em ação.”
Fonte: Diário de Notícias (Rio de Janeiro, RJ), 11/6/1939, número 5098, Suplemento, página 2, quinta coluna: http://memoria.bn.br/DocReader/093718_01/39634
Posição do crítico: Sim.
15. Breno Pinheiro (? — ?) — 1939.
Na série de artigos publicados em comemoração ao centenário pela Folha da Manhã (18/6), Breno Pinheiro, em seu artigo Capitu (páginas 3 e 5), não podia ser mais afirmativo quanto à índole da personagem:
“Tipo sensual, pervertido, logo às primeiras páginas assume tais atitudes de ataque que, se criada por autor de menor penetração psicológica, acabaria descambando para a mais desenfreada licenciosidade”.
Apesar desse juízo, Breno termina o artigo demonstrando inclinação pela fidelidade de Capitu:
“Mas qual a prova da traição? Parece que todas as circunstâncias arrumam-se em definitivo no cérebro de advogado, resultando na certeza”.
José Veríssimo, em 1901, foi o primeiro resenhista a considerar Betinho “suspeito”. E Breno, em 1939, foi o primeiro a afirmar a inexistência de provas da traição, a qual se teria se desenrolado apenas na mente do ciumento. Mas o início de frase de Breno (“Parece”) não o torna o primeiro a afirmar categoricamente a fidelidade de Capitu.
Fonte: https://acervo.folha.com.br/index.do
Posição do crítico: Quase certamente, não.
16. Luís Martins (1907–1981) — 1939.
Ainda em 18 de junho, na página 2 da mesma Folha da Manhã, Luís Martins colaborou com Sofia, Virgília e Capitu. O articulista concentrou-se mais em Sofia e Virgília, além de especular sobre fixações psicológicas de Machado em braços e pernas de mulheres.
Quanto à traição, nada, mas Luís aceita a descrição psicológica de Capitu feita por Bentinho:
“Acho necessária a reabilitação de Virgília. Ela é das mulheres mais mulheres da galeria machadiana. Mais feminina do que ela, entretanto, é a misteriosa, a felina, a sinuosa Capitu dos “olhos de ressaca”, “cigana oblíqua e dissimulada”.
Fonte: https://acervo.folha.com.br/index.do
Posição do crítico: Quase certamente, sim.
17. Amando Fontes (1899–1967 ) — 1939.
Também o Suplemento do jornal O Globo publicou artigos comemorativos, em 21 de junho de 1939. Amando Fontes, em Presença de Capitu, deixa clara a sua posição:
“Afrontando uma grande dificuldade, que é interpretar a alma juvenil, Machado no-la apresenta desde menina, já ‘oblíqua e dissimulada’, mas sem possuir ainda aquela perversidade meticulosa e fria da amante de Escobar”.
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=193019390621
Posição do crítico: Sim.
19. Aloíso de Carvalho Filho (1901–1970) — 1939.
Aloíso de Carvalho Filho, o pioneiro na abordagem jurídica da literatura brasileira, publicou dois artigos sobre Machado de Assis em junho de 1939. Esses textos seriam depois reunidos em livro, juntamente com dois outros sobre Machado e um quinto e último sobre Dostoievski. O livro sairia somente em 1959.
O primeiro artigo de Aluísio intitulava-se Machado de Assis e o Problema Penal, futuro título do livro. Saiu no periódico A Tarde, de Salvador (BA), em 21 de junho de 1939.
O segundo, Crime e Criminosos na Obra de Machado de Assis, saiu no Jornal do Commercio (Rio) em 25 de junho de 1939. Somente este se encontra disponível on-line para leitura, mas foca em sua maior parte no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, sem mencionar o suposto adultério de Capitu.
Fonte: Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 25/6/1939, número 226, página 4, da primeira à quarta coluna: http://memoria.bn.br/docreader/364568_12/59607
Para o primeiro, precisamos recorrer novamente à dissertação de Daniel Gomes da Fonseca. Aloíso não cita especificamente Capitu, mas afirma:
“É que na obra de Machado de Assis raro será que as mulheres não pensem em pecar, os homens em delinquir. Tudo não passa, entretanto, de simples pensamento, ou, quando muito, de simples projeto”.
Afirmação que não vale, obviamente, para a trama de Dom Casmurro, já que o ponto de vista exclusivo de Bentinho impede qualquer acesso ao pensamento de Capitu.
Somente a consulta ao livro permitiria saber se a questão central de Dom Casmurro é tratada nos dois outros artigos.
Veremos em outro artigo desta série que Aloísio dedicaria um livro inteiro à questão: O Processo Penal de Capitu, lançado em 1959.
Posição do crítico: Não acessível ao conhecimento atual.
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20. Francisco de Paula Azzi (? — ?) — 1939.
Chegamos ao artigo mais importante, até esse ponto no tempo. A exposição realizada antes serve para comprovar a afirmação do título deste texto. De 1900 a 1939, nenhum crítico se dispôs a fazer uma defesa categórica da fidelidade de Capitu. No máximo afirmou, como Breno Pinheiro, que ela parecia não ter cometido adultério.
Em 30 de julho de 1939, o jornal carioca Correio da Manhã publicou em seu Suplemento o artigo Capitu, o enigma de Dom Casmurro, no qual Francisco de Paula Azzi, pela primeira vez entre os resenhistas e críticos, questionava decisivamente a interpretação dominante sobre o comportamento de Capitu, centrando todo o seu texto na solução do enigma.
Paula Azzi concorda com a avaliação final de Brenho Pinheiro:
“Contudo, veremos que falta no livro prova incontestável de adultério.” Mas vai além.
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(Negrito acrescentado)
Todavia, mais ingênuo ou mais complacente que outros comentadores, inclino-me a crer que a honra de Capitu só foi enodoada pelo ciúme doentio do marido. O delito não passou de torpe concepção de um cérebro enfermiço. Se Ezequiel pudesse ser submetido a rigorosa perícia científica, estou [certo de] que seriam reconhecidos nas suas veias apenas elementos sanguíneos iguais aos de Casmurro, sem indício de bastardia…
Francisco de Paula Azzi.
Paula Azzi também antecipa o tema da obra de Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis; a Study of Dom Casmurro (O Otelo Brasileiro de Machado de Assis; um Estudo de Dom Casmurro, 1960), neste parágrafo:
“Certa noite volta do teatro, cotejando Desdêmona com sua mimosa Capitolina, mas na esposa só via culpa, quando, na realidade, podia ser tão inocente quanto a heroína de Shakespeare. Essa preocupação com Otelo é observada ainda nos capítulos LXII e LXXII. Teria sido o modelo?”
Curiosamente, Paula Azzi não era crítico de profissão, e sim odontólogo, futuro autor dos livros Monografias Odontológicas e A Periodontia Atual, ambos em edição própria.
No mesmo ano, o texto do Correio da Manhã saiu com outro título, O eterno enigma de Capitu, no periódico Mensagem: Quinzenário de arte e literatura (Belo Horizonte, MG), em 15 de dezembro.
Apesar dessa republicação o artigo não teve repercussão à época e só se tornou conhecido em 2008, graças ao pesquisador Ubiratan Machado, ao ser transcrito em seu livro Dicionário de Machado de Assis.
Esse esquecimento coletivo impediu o reconhecimento da primazia de Azzi na tomada de posição dominante, atualmente, sobre a suposta traição de Capitu.
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Capitu, o enigma de “D. Casmurro”
F. de Paula Azzi (Francisco de Paula Azzi)
Há numa das obras-primas de Machado de Assis, nas páginas magníficas de D. Casmurro, um enigma ainda não decifrado: o de Capitu.
Foi ela adúltera ou inocente?
O idílio Capitu-Casmurro começou na meninice, sem a intercorrência de amores estranhos na vida do casal. Enquanto frequentavam o seminário, vieram a conhecer-se e travar amizade Casmurro e Escobar. Viveram como irmãos até a morte deste último. Ambos casaram. Capitu e Sancha (as duas esposas), condiscípulas em solteiras, depois do matrimônio permaneceram íntimas amigas entre si.
Um belo dia, Escobar morre afogado. Casmurro surpreende Capitu fitando os olhos no defunto “tão apaixonadamente fixa que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas…”.
Preliminarmente, cumpre averiguar os antecedentes de Escobar, que não era nenhum santo e cujo perfil Machado traçou em poucas palavras: “Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo” (capítulo LVI). Após seu casamento, registra-se discreta ligação com uma bailarina. Esse indício de sua capacidade aventureira merece fixação desde já. Que ele pudesse cobiçar a deliciosa Capitu era tão plausível e tão coerente no enredo quanto o próprio Casmurro se deixou enlevar pelos doces olhos de Sancha. As relações de amizade não constituiriam óbice à consumação de desejos menos puros, se porventura os alimentasse. Em matéria de concupiscência, não custa eliminar até mesmo o mais bem forrado escrúpulo. A grande intimidade poderia antes favorecer todos os passos de Escobar no trabalho de sedução. “Cuidado com os bons amigos” — recomendava o saudoso Conselheiro XX.
A célebre novela El curioso impertinente, de Cervantes, difere de D. Casmurro em que um dos dois amigos, recém-casado, força o outro, solteiro, a seduzir-lhe a esposa, para pô-la à prova de fogo. O resultado, inevitavelmente, teria de sair funesto. Em D. Casmurro a amizade fraterna tornava o marido, apesar de ciumento, despreocupado das bem ou mal-intencionadas incursões do amigo em seu lar.
No desenrolar do romance, denunciam-se certas visitas de Escobar à casa de Casmurro, só ocasionalmente descobertas por este, como no caso das libras (capítulo CVI) e da doença simulada de Capitu, quando insistia com o marido para que ele fosse ao teatro (capítulo CXIII); nessa noite coincidiu a aparição do amigo em casa, sem pretexto muito bem definido. embora a intimidade bastasse para justificar visitas a qualquer hora. “Quando ele saiu, referi minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina que possuía, um jeito, uma graça toda sua” (capítulo CXV). Ora, a dissimulação é a melhor arma da mulher, e ninguém nos adverte disso melhor que Schopenhauer. Esse poder tinha-o Capitu em alto grau, merecendo até capítulo especial no romance.
Contudo, veremos que falta no livro prova incontestável de adultério. Não se deve esquecer que as suspeitas de Casmurro começaram após a morte do amigo, já então muito tarde para permitir segura comprovação. O certo é que o autor soube dispor tudo calculadamente, com o fito de implantar a dúvida no espírito dos leitores, evitando deixar vestígios positivos de culpabilidade. Talvez por isso mesmo seus críticos tenham o livro na conta de cruel.
Continuando a apreciação dos fatos, veremos agora como se corporificaram as suspeitas. Casmurro começou a notar da parte da mãe para com a nora e o neto certa frieza e retraimento. “Já disse a você o que é; coisas de sogra. Tem ciúmes de você. Quem sabe se não anda doente?” — era a explicação de Capitu, e “ao passo que falava, recrudescia de ternura” (capítulo CVX), quando devera ser a primeira a ficar intrigada com os modos da sogra. Aqui releva lembrar a circunstância de a prima Justina morar em companhia da mãe de Casmurro. Ora, como Justina não tolerava a esposa do primo (capítulos LXVI e C), não seria ela o Iago responsável pelo triste desfecho? Estas palavras, encontradas no fim do volume, são bastante expressivas: “Se fosse vivo José Dias, acharia nele (em Ezequiel) a minha própria pessoa. Prima Justina quis vê-lo. Conhecia aquela parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel (quando este voltara da Europa) era para o fim de verificar no moço o debuxo que porventura houvesse achado no menino (isto é, traços de Escobar). Seria um regalo último; atalhei-o a tempo”.
Na colheita de indícios favoráveis e contrários à fidelidade de Capitu, não deve ficar esquecido o incidente da conversação de Ezequiel ― o filho de Casmurro ― com José Dias, o mesmo que Machado quis comparar a Iago, no capítulo LXII. O diálogo foi o seguinte: “Queres comer doce, filho do homem?” — “Que filho do homem é esse” — perguntou-lhe Capitu, agastada. — “São os modos de dizer da bíblia.” — “Pois eu não gosto deles” — replicou ela, com aspereza (capítulo CXVI). Precisamos advertir-nos que todas essas cenas são reconstituídas por um espírito obcecado pelo ciúme.
Ressalta, no romance, como principal fator de discórdia, a acentuada semelhança do menino com o finado Escobar. Casmurro, a princípio, notou, sem malícia, certa analogia entre os gestos do garoto e os do amigo. Revelando essa observação a Capitu, ela justificou o fato como momice comum em criança (capítulo CXII). Entretanto, tempos depois, foi ela própria que se alarmou com a fisionomia do filho: “Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar”. Ora, se Capitu tivesse culpas no cartório, não se arriscaria tolamente a denotar tal semelhança, já, então, para ela, indiscretíssima, nessa hipótese. Dessa revelação derivou o ciúme mórbido de Casmurro. Não lhe saía mais da cabeça a ideia de similitude física entre o filho e o amigo, ideia que, paulatinamente, se avivava com o crescimento do menino e a recordação de incidentes passados, a que, outrora, não ligava Casmurro a mínima suspeita. “Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário, do Flamengo, para se sentar comigo à mesa, receber na escada, beijar no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume” — dizia o torturado Casmurro. Já se referia francamente a Escobar como “seu amigo e comborço [amante da esposa]”.
Certa noite volta do teatro, cotejando Desdêmona com sua mimosa Capitolina, mas na esposa só via culpa, quando, na realidade, podia ser tão inocente quanto a heroína de Shakespeare. Essa preocupação com Otelo é observada ainda nos capítulos LXII e LXXII. Teria sido o modelo?
Casmurro planeja criminoso envenenamento, casualmente frustrado. Por fim já não se contém e explode diante do filho, quando este o chamava: “Papai, papai!”. “Não, não, eu não sou teu pai!”. A dramaticidade da cena culmina com a aproximação inopinada de Capitu, que. estupefata, interpela o marido sobre a ignomínia que ele acabara de proferir: “Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera. Que é que lhe deu tal ideia? Diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto: não pode ser muito. Já que disse metade, diga tudo.” “[…] conte o resto para que eu me defenda, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!”
Quanto brio a desditosa Capitu não revelou nessas palavras! Quanto brio! Brio ou pura dissimulação de quem se julga dona exclusiva de seu segredo?! Empenhando-se em reabilitar a honra de Capitu, corre-se o risco de cair na situação de Kant, diante de Deus: acabou destruindo-o (Heine).
Casmurro, ao aludir ao pseudoadultério com Escobar — suspeita que lhe fora inculcada, de modo especial, pela analogia de traços entre o filho e o indigitado [acusado] amante, e secundariamente, pela esquisitice da mãe, demora de concepção da esposa e tristeza desta diante da morte de Escobar — provocou de Capitu estas frases doridas, angustiadas e reticenciosas, de quem luta debalde [inutilmente] contra convicções errôneas e inextirpáveis, germinadas em coração empedernido e inflexível à reconciliação: “Sei a razão disto; é a casualidade de semelhança… A vontade de Deus explicará tudo… Ri-se? É natural; apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio… Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada”.
E daí por diante consumou-se a separação corporal e espiritual do ambos. Houve um divórcio tático. Salvaram-se as aparências. A sociedade, o meio e os preconceitos impunham isso. E a jovem e bela Capitu resvalou para o túmulo, sucumbindo pouco tempo depois, cheia de virtudes, mágoa e dignidade.
Diante de tamanha incerteza, torna-se temerário afiançar que tenha Capita anuído a qualquer proposta de Escobar, para juntos transgredirem o 9.° preceito da lei de Deus. Penso que o crítico, nas suas investigações não tem direito de ir muito além daquilo que o escritor deixou transparecer, se bem que o próprio Machado seja mais liberal nesse ponto: “É que tudo se acha fora de um livro falho. Assim preencho as lacunas alheias, leitor amigo: assim podes também preencher as minhas” (capítulo LIX). Todavia, mais ingênuo ou mais complacente que outros comentadores, inclino-me a crer que a honra de Capitu só foi enodoada pelo ciúme doentio do marido. O delito não passou de torpe concepção de um cérebro enfermiço. Se Ezequiel pudesse ser submetido a rigorosa perícia científica, estou [certo de] que seriam reconhecidos nas suas veias apenas elementos sanguíneos iguais aos de Casmurro, sem indício de bastardia…
E se isto não satisfaz ao leitor, ficará eternamente indecifrável o enigma de Capitu? O próprio Machado se encarrega de responder no capítulo LXXVII “[…] nem tudo é claro na vida ou nos livros”.