A recepção crítica a Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880–1882)
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RESUMO
Tema: todas as resenhas atualizadas de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis, publicadas em 1880, 1881 e 1882.
Publicações do romance:
1. Como uma história seriada, de 15 de março a 15 de dezembro de 1880 na Revista Brasileira (Rio), em dezessete partes;
2. Como um conto, em 3, 5 e 6 de abril de 1880 no Diário de Pernambuco, na seção Literatura (somente os nove primeiros capítulos, equivalentes à primeira parte publicada na Revista Brasileira);
3. Como um romance em formato de livro, em janeiro de 1881 (Rio).
Resenhas:
1. Raul Pompeia (pseudônimo: Raul D.), Revista Ilustrada (Rio), 3 de abril de 1880 (resenha referente ao início da publicação seriada do romance na Revista Brasileira).
Natureza: positiva.
“É ligeiro, alegre, espirituoso, é mesmo mais alguma coisa: leiam com atenção, com calma; há muita crítica fina e frases tão bem subscritadas que, mesmo pelo nosso correio, hão de chegar ao seu destinatário.”
2. Arthur Barreiros (resenha não assinada), A Estação (Rio), em 30 de junho de 1880 (resenha referente às primeiras partes da história publicadas na Revista Brasileira).
Natureza: positiva.
“[…] este extraordinário romance de Brás Cubas não tem correspondente nas literaturas de ambos os países da língua portuguesa e traz impressa a garra potente e delicadíssima do Mestre.”
3. Autor anônimo, Gazetinha (Rio), em 21 de dezembro de 1880.
Natureza: positiva.
“[…] o belo romance será publicado em volume. Esperemo-lo ansiosamente.
“Ah! Se todos os “homens de letras” fossem como o Sr. Machado de Assis […].”
4. José Ribeiro Dantas Júnior (pseudônimo: D. Júnio), Revista Ilustrada (Rio), em 15 de janeiro de 1881.
Natureza: positiva.
“As Memórias Póstumas, escritas com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, são mais uma prova interessante do seu engenho e um valioso mimo de humorismo.”
5. Urbano Duarte, Gazeta da Tarde (Rio), em 28 de janeiro de 1881.
Natureza: negativa.
“Entre resoluto nesse caminho; interrogue a poeira dos arquivos, as sepulturas dos conventos, os códices das bibliotecas, as tradições das famílias e traga à luz da imprensa os tesouros que ali se ocultam não menos ao ensino das novas gerações do que às glórias da pátria.” (Conselho do crítico para que Machado desistisse do estilo realista e se dedicasse ao romance histórico em que heróis transmitem mensagens edificantes aos leitores.)
Primeiro texto a apontar semelhanças entre o romance e O Primo Basílio, romance de Eça de Queiroz (1878).
6. Capistrano de Abreu, Gazeta de Notícias (Rio), em 30 de janeiro e 1 de fevereiro de 1881 (observação: não se conhece o conteúdo da segunda parte da resenha).
Natureza: de neutra para negativa (provavelmente).
“As Memórias Póstumas de Brás Cubas serão um romance? Em todo o caso são mais alguma coisa. O romance aqui é simples acidente. O que é fundamental e orgânico é a discrição dos costumes, a filosofia social que está implícita.”
7. Urbano Duarte, Gazetinha (Rio), em 2 de fevereiro de 1881.
Natureza: negativa.
“[…] a obra do Sr. Machado de Assis é deficiente, senão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o verdadeiro problema que se propôs a resolver e só filosofou sobre caracteres de uma vulgaridade perfeita; é deficiente na forma, porque não há nitidez, não há desenho, mas bosquejos, não há colorido, mas pinceladas ao acaso.”
8. Arthur Barreiros (pseudônimo: Abdiel), A Estação (Rio), em 28 de fevereiro de 1881.
Natureza: positiva.
“É soberano, límpido, musical, colorido, grave, terno, brincalhão, conceituoso, magistral, o estilo deste livro notável, o mais notável que se tem publicado, em literatura amena, depois da morte de José de Alencar.”
Primeira resenha a contestar o suposto plágio de O Primo Basílio.
9. Autor anônimo, Gazetinha (Rio), 14 de maio de 1882.
Natureza: positiva.
“As Memórias Póstumas de Brás Cubas é trabalho que, por si só, bastaria para conferir ao seu autor o supremo título de mestre. E o livro do Sr. Clóvis nem sequer falou nesse romance modelo.”
10. Aluísio Azevedo, Gazeta da Tarde (Rio), em 8 de novembro de 1882.
Natureza: positiva.
“[…] um mimo de concepção, de graça e de arte — as Memórias Póstumas de Brás Cubas, um trabalho de au jour le jour [dos dias de hoje], não é um conto improvisado para encher o rodapé de uma folha diária, mas sim um livro meditado, escrito metodicamente, no qual o autor pagou uma grande soma de seus estudos e uma grande soma de seu talento. Não é um romance de enredo, é um livro de filosofia, de observação e de estilo.”
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Apresentação
Memórias Póstumas de Brás Cubas, primeiro romance da fase realista de Machado de Assis, saiu inicialmente em publicação seriada na Revista Brasileira, de 15 de março a 15 de dezembro de 1880, em dezessete partes.
Em 3, 5 e 6 de abril de 1880, a primeira parte das dezessete, correspondente aos nove primeiros capítulos, saiu no Diário de Pernambuco, sem que houvesse continuidade. Muitos leitores devem ter considerado o texto um conto, e não um romance.
Em janeiro de 1881 publicou-se o livro cujas resenhas serão apresentadas neste artigo. Todas saíram em periódicos do Rio de Janeiro. Não há resenhas conhecidas em outros estados.
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[…] demos ao tempo o que é do tempo, e daqui a vinte anos, talvez menos, talvez mais, depois de lido e compreendido o livro nas suas várias intenções, lavre-lhe então o público, que é o supremo juiz, a sentença definitiva que o fará viver ou esquecer.
Arthur Barreiros, resenha de 28 de fevereiro de 1881 na revista A Estação.
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A primeira resenha: Raul Pompeia (1863–1895; pseudônimo: Raul D.), Revista Ilustrada, 3 de abril de 1880 (resenha referente ao início da publicação seriada do romance na Revista Brasileira).
O primeiro avaliador de Memórias Póstumas nem esperou o final da publicação seriada na Revista Brasileira para louvar seu autor. Já em 3 de abril de 1880, ainda no início da história, o jovem Raul Pompeia escreveu na Revista Ilustrada (Rio) um texto curto no qual se liam os primeiros elogios ao romance de Machado (todas as imagens das resenhas vêm ao final do artigo):
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O governo está absorvendo poetas.
O Sr. Pedro Luiz está ministro, o Sr. Machado de Assis, oficial de gabinete… justamente quando encetou na Revista Brasileira a publicação do seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, muito interessante para que todos desejem a sua continuação.
É ligeiro, alegre, espirituoso, é mesmo mais alguma coisa: leiam com atenção, com calma; há muita crítica fina e frases tão bem subscritadas que, mesmo pelo nosso correio, hão de chegar ao seu destinatário.
É portanto um romance mais nosso, uma resposta talvez, e de mestre uma e outra coisa; e será um desastre se o oficial de gabinete absorver o literato.
Esperamos que não.
A segunda resenha: Arthur Barreiros (1856–1885), A Estação, 30 de junho de 1880 (resenha não assinada, referente ao início da publicação seriada do romance na Revista Brasileira).
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Machado de Assis
[…]
É opinião minha que este extraordinário romance, inspirado diretamente nos humoristas ingleses, dissecando cruamente a alma humana com uma observação maravilhosa, não se limitando a julgar parcialmente este microcosmo chamado homem, mas abrangendo numa síntese poderosa todos os grandes impulsos que nos levantam acima de nós mesmos e todas as pequeninas paixões que nos conservam acorrentados à baixa animalidade; é opinião minha, repito, que este extraordinário romance de Brás Cubas não tem correspondente nas literaturas de ambos os países da língua portuguesa e traz impressa a garra potente e delicadíssima do Mestre.
Ninguém melhor do que ele poderia condensar num livro de alto valor literário a vida íntima e os perfis dos escritores do seu tempo, uns adormecidos a esta hora à sombra dos ciprestes merencórios, e outros — mais infelizes ainda — a tiritar de frio na Sibéria da política.
De grande parte deles foi íntimo; de outros restam-lhe apenas vagas sombras imperceptíveis nos infinitos horizontes empardecidos da saudade; vestígios, sombras, tíbias reminiscências que bastariam a encher o livro de páginas saudosas, travadas de urna dor longínqua, que não chega a doer, e encanta.
E desse livro colheria a geração em flor profundos exemplos salutares; aprenderia, com os que já depuseram as armas do combate nas mãos da Morte, como e que se resiste por meio da tenacidade, esse heroísmo obscuro dos fortes, às conspirações da má vontade, aos desfalecimentos da própria natureza e não raro às solicitações da indiferença; aprenderia como se resiste e como se vencem os espantosos tropeços deste inferno das letras, que teve o seu Dante [menção ao poeta italiano de A Divina Comédia] na pena imortal de Balzac [romancista francês].
Machado, na sua longa e aproveitada carreira, tem conquistado os graus de folhetinista, poeta, comediógrafo, crítico e romancista; não escalou nunca a horas mortas as barbacãs [muros protetores de muralhas] dessas províncias da literatura; entrou sempre pela porta larga da vitória, no meio de aclamações, como um triunfador e um herói.
Não são conhecidas as suas opiniões políticas; mas, no domínio da literatura, Machado, que podia cingir a coroa da realeza, confunde-se plebeiamente com a turbamulta [multidão desordenada] dos escritores para os quais tem sempre, na sua própria expressão, a advertência amiga e o aplauso oportuno: é um republicano da Arte.
Um cavalheiro em quem concorrem todos os favores da fortuna, do talento, do caráter e da ilustração, encontrando o Machadinho pela primeira vez numa cidade de província apertou-lhe calorosamente as mãos e disse-lhe que o estimava devidamente, porque ele era um escritor filho da sua vontade. Lembra-me que Machado de Assis, num minuto de expansão, me confessou que nunca nenhum louvor lhe soara tão agradavelmente como esse. Mas há ainda outro, que não é somenos e que não ocorreu ao citado cavalheiro:
Machado de Assis não pertence ao Instituto Histórico.
10 de junho de 1880.
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Observação importante. É interessante notar que já em 1880 o epíteto Mestre estava associado a Machado, ao menos na avaliação dos membros de certo grupo literário brasileiro. Para os modernos, essa condição de mérito está fortemente associada ao conjunto de obras publicadas a partir de Memórias Póstumas.
A terceira resenha: autor anônimo, Gazetinha, 21 de dezembro de 1880.
Trata-se de uma breve avaliação inserida em uma nota sobre o final da publicação seriada e a futura publicação em livro.
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A Revista Brasileira concluiu a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Brevemente, talvez por estes dias, o belo romance será publicado em volume. Esperemo-lo ansiosamente.
Ah! Se todos os “homens de letras” fossem como o Sr. Machado de Assis, nos lhes perdoaríamos a sua empregomania e o seu Instituto Histórico.
A quarta resenha: José Ribeiro Dantas Júnior (?-1886; pseudônimo: D. Júnio), Revista Ilustrada, 15 de janeiro de 1881.
A resenha foi precedida de uma breve notícia do lançamento, em 12 de janeiro, redigida por Ângelo Agostini, sob o pseudônimo K. Brito.
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Terça-feira:
Aparecem, em volume, as Memórias Póstumas de Brás Cubas, por Machado de Assis, já publicadas na Revista Brasileira.
Não se fala noutra coisa.
Não se fala, nem se lê: relê-se.
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BIBLIOGRAFIA
Acabo agora mesmo de reler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, cuja publicação tinha acompanhado sempre com o máximo interesse [na Revista Brasileira, em 1880].
Já uma vez me referi a esta obra [referência não encontrada], cujos primeiros capítulos eram uma valiosíssima promessa, que o autor hoje paga com uma generosidade de espírito e de bom humor inapreciáveis. Machado de Assis, reconhecem-no todos aqueles que o têm acompanhado desde as Falenas [livro de poesia, 1870], a Mão e a Luva [romance, 1874], Ressurreição [romance, 1872], Contos Fluminenses [1870]… até Iaiá Garcia [romance, 1878] e Tu Só, Tu, Puro Amor [peça teatral, 1880]…, é uma organização essencialmente literária e, sobretudo, um talento provadamente progressivo: vence-se constantemente.
As Memórias Póstumas, escritas com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, são mais uma prova interessante do seu engenho e um valioso mimo de humorismo. A obra é tudo, diz ele, esquivando-se a um prólogo: se te agradar, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote.
Eu, com certeza, não apanho o piparote.
A quinta resenha: Urbano Duarte (1855–1902), Gazeta da Tarde, 28 de janeiro de 1881.
Esta resenha é tema de um artigo à parte (Uma crítica inédita ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)?), no qual se encontram seu texto atualizado e todas as imagens originais. O artigo original foi alterado para se incluir a história da descoberta do nome do autor (trata-se de uma resenha anônima).
A sexta resenha: Capistrano de Abreu (1853–1927), Gazeta de Notícias, 30 de janeiro de 1881.
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LIVROS E LETRAS
As Memórias Póstumas de Brás Cubas serão um romance? Em todo o caso são mais alguma coisa. O romance aqui é simples acidente. O que é fundamental e orgânico é a discrição dos costumes, a filosofia social que está implícita.
Esta filosofia define-se facilmente evocando os dois nomes de La Rochefoucauld [autor francês de máximas moralistas] e Sancho Pança [fiel escudeiro do personagem Dom Quixote]. Com efeito, vemos de um lado o ceticismo, perguntando se atrás de um ato que desperta o entusiasmo e desafia a crítica e a malevolência, não há motivos recônditos que o reduzem a proporções de um fato qualquer banal. Do outro, há a satisfação, há o contentamento, que acha que tudo vai muito bem, no melhor dos mundos imagináveis.
Segundo esta filosofia, nada existe de absoluto. O bem não existe; o mal não existe; a virtude é uma burla; o vício é um palavrão. Tudo se reduz a uma evolução: a passagem do importuno para o oportuno, ou do oportuno para o importuno.
Os homens bem o sabem. Por que não reagem?
Primeiro, por causa das formalidades, a mais consistente de quantas argamassas conservam preso o edifício da sociedade. Segundo, pelo interesse, que, se não encobre o caminho direito, leva a embicar para direção oposta. Depois, a vaidade, a covardia, a covardia principalmente…
Filosofia triste, não é? O autor é o primeiro a reconhecê-lo, e por isso põe-na nas elucubrações de um defunto, que nada tendo a perder, nada tendo a ganhar, pode despejar até às fezes tudo quanto se contém nas suas recordações.
A sua vida levou-o, aliás, a tais conclusões. Nasceu de pais ricos e complacentes, que o amavam com ardor, mas de um amor antes específico e animal do que esclarecido e elevador. As suas inconveniências e travessuras passavam como rasgos de espírito. As suas exigências, por mais esdrúxulas, eram sempre satisfeitas. Daí a primeira tendência ― para a satisfação, para o otimismo, tendência auxiliada pela fatuidade, que herdara do pai.
Veio a amar — , mas sensualmente “durante quinze meses e onze contos de réis”. Foi a este propósito que lhe sobrevieram as primeiras dúvidas e desgostos. Mas quem sabe? pensou consigo. Se o meu amor fosse puro, seria outro o desenlace.
Viu, porém, que não seria. Encontrou no navio em que embarcava um par que se amava legitimamente. A mulher morre, e é pretexto para versos, e no aplauso por estes suscitado afoga-se a dor da perda que considerava irreparável.
Na universidade em que estudou, a face dos objetos poderia modificar-se. Se o estudo o arrastasse; se a ciência com sua beleza máscula o atraísse ou uma ideia qualquer o prendesse, poderia ter sido diferente o resto de sua carreira.
Não sucedeu assim. O que queria era a carta de bacharel; esta obteve-a sem grandes dificuldades. E como o problema do bem nunca se desenhara em sua consciência, o problema da verdade nunca palpitou em seu espírito.
Volta para a pátria e perde a mãe. Uma dor grande o possui. Aguilhado por ela, vai procurar lenitivo na solidão. O pai visita-o, e em vez de encontrar nele a angústia e o desconsolo, Brás Cubas só enxerga a vaidade por ter recebido uma carta do regente, ao mesmo tempo que o desejo de introduzi-lo na política.
Mostra-se agora um ensejo que poderia dar outra direção à vida de Brás Cubas. Encontra uma mulher nobre, digna, de virtude que não permitia dúvidas, de um caráter que não admitia transações.
Amou-a, se é que podia amar; porém, ela era pobre, filha natural, e os cálculos do pai apontavam-lhe outra, que era uma apresentação para a deputação. Fez a corte a esta; foi bem recebido; tudo parecia encarrilhado da melhor maneira… quando um rival, que não lhe era superior, seduziu a sua noiva acenando-lhe com a coroa de marquesa.
Se não fosse Brás Cubas, teria sofrido um choque terrível; mas o nosso herói não era homem de abalos. Sua vaidade foi amarrotada, e muito mais a do pai, que não pôde resistir ao golpe. mas não passou disto; nem protestos, nem maldições contra as mulheres, nem coisa nenhuma. Já chegara à teoria das edições humanas, e vira que isto de amor, por maior que seja impressão causada no momento, dificilmente escapa ao ridículo, quando passado o êxtase.
Viu mais tarde que a amizade de família é um logro, pois sua irmã e seu cunhado por causa da herança não hesitavam em quebrar os laços.
Então atirou-se à vida fácil, às polêmicas de jornais. Se tivesse de ganhar a vida, se a necessidade o obrigasse ao labor, é provável que diverso fosse o seu futuro; mas nem no exterior, nem no íntimo encontrava incentivos para a atividade.
Não tardou muito que voltasse, para o Rio, Virgília, a mulher que por ambição preferira outro. Encontraram-se os dois e não se sabe bem por quê — provavelmente porque de importunos tinham passado a oportunos — começaram a se amar.
Amor cego, que chegou às cumiadas de sentimento, para depois ir baixando, baixando até ficar rente com o solo. Brás Cubas a princípio nada viu, enlevado no primeiro ímpeto; depois, porém, notou que a alma que ele julgava pertencer-lhe inteira era dominada por muitas outras considerações: a vaidade, o gosto de ser admirada, o medo, uma certa ingenuidade imprudente…
O marido desconfiou; mas, embora caráter de rija têmpera, apenas gretado por certos preconceitos, não teve coragem de desafrontar-se porque viu que isto seria tornar pública a mancha doméstica.
Daí a tempos, Virgília teve de acompanhar o marido a uma província de que fora nomeado presidente, após incidentes bastantes curiosos…
Nada prendia Brás Cubas a Virgília: o amor fora substituído pela saciedade em ambos; o filho, que Virgília a princípio anunciara, morrera antes de nascer. Por isso acabou cedendo às propostas de casamento que sua irmã lhe fazia. Mas estava escrito que ele nunca havia de formar família: a noiva morre poucos dias antes do ato realizar-se.
Foi depois do falecimento da noiva que Brás Cubas entrou na política. Foi deputado; escapou de ser ministro e não foi reeleito. Imagine-se a sua decepção!
Mas um amigo o consolou, um amigo de viver bastante agitado, que da ociosidade fora levado ao vício, e do vício ao crime. Este amigo, a quem uma fortuna herdada inesperadamente afastara do caminho da correção, imaginou um sistema de filosofia: o humanitismo.
Tudo é bom: tudo é grande; tudo é santo. A humanidade reside no todo, mas reside igualmente no indivíduo. Como, por conseguinte, pode lesar-se a si própria?
[Observação: a segunda parte da resenha, publicada dois dias depois, nunca foi publicada em livros ou trabalhos e não se encontra disponível on-line.]
A sétima resenha: Urbano Duarte (1855–1902), Gazetinha, 2 de fevereiro de 1881.
BIBLIOGRAFIA
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
[Observação: houve um erro cômico de tipografia no título da resenha e no título do livro, na primeira linha. Lê-se, nos dois casos: Memorias Phosthumas de Braz Cubas; em português atualizado, Memórias Fóstumas de Brás Cubas. Na época, o encontro “ph” tinha o valor sonoro de “f”.]
As Memorias Póstumas de Brás Cubas são um livro de filosofia mundana, sob forma de romance. Para romance falta-lhe entrecho, e o leitor vulgar pouco pasto achará para sua imaginação e curiosidade.
O livro poder-se-ia intitular, sem muita falta de propriedade — o Elogio do Egoísmo — tal é a amarga filosofia que destila, aliás muito contestável, se bem que temperada por um humorismo de bom gosto.
O eu, o eu sinistro, é o fator da vida que assoberba e nulifica todos os outros; só há no livro um personagem com sentimentos altruístas, desprendido do eu: este personagem é um louco — o Quincas Borba.
E neste mesmo, como o autor dá a entender, o altruísmo não é mais que uma simples extensão do egoísmo, inventada pela sandice.
Diria o autor que aquilo é fruto de longa observação e experiência, mas nós lhe contestaremos que nos fenômenos da observação e da experiência o ponto de vista é tudo. Os efeitos de luz e sombra dependem do ponto em que, voluntária ou involuntariamente, se colocou o observador.
O autor, sóbrio como é, usando de anódinos [calmantes] a tudo, deixou transparecer uma ponta de materialismo que, malgrado seu [contra a sua vontade], avulta e enche o espírito do leitor até chegar a este terrível teorema ― o bem e o mal não são princípios, são resultados.
A. virtude ou o vício são o produto das circunstâncias, e homem é o escravo das circunstâncias. Logo, o homem é irresponsável e inocente, como queríamos demonstrar.
O Sr. Machado de Assis rebate, com visível voluptuosidade de filósofo, ao chão da banalidade e do comum, toda ordem de sentimentos e ideias que nos pareciam filhas de um móvel generoso, elevado, desinteressado, espontâneo, o qual deve residir no imo da natureza humana.
Se não disse isto positivamente, escreveu-o nas reticências, um dos segredos do seu estilo. Interpretar ou mesmo adivinhar a ideia-mãe da obra, descobrir a bússola que dirige a pena do escritor, tal é a missão mais importante e dificultosa da crítica.
A nós, parece-nos que o seu pensamento cardeal foi o que acima exaramos; e se assim é, se quis de fato fazer o elogio do eu, pondo em partes secundárias todas as outras forças cuja resultante final é a ação humana, nós opomos o nosso fraco voto a esta desoladora teoria.
Aniquilar a vontade humana, reduzi-la a um cata-vento que impele a brisa caprichosa, quando justamente todo o drama da vida provém da grande luta empenhada entre a vontade e a fatalidade, entre o Homem e o mundo exterior!… Inútil é insistir na falsidade deste teorema.
Vejamos agora a feição literária do livro.
O estilo é sóbrio, impecável, ataviado de expressões originais e pinturescas que muito o realçam; às vezes, porém, monótono e livrando-se da monotonia pelo abuso das cabriolas [volteios]. No colorido geral, poucas são as cores definidas, e estas mesmas desmaiadas e se sucedendo continuamente em infinitos matizes, para suplício do órgão visual. É um estilo furta-cores, aquele.
Há, no correr da obra, percepções singulares, conceitos de grande agudeza, certa veia cômica que faz rir para não fazer chorar, e umas tantas tendências naturalistas assaz atenuadas pela polidez natural do autor.
Em suma, a nossa impressão final é a seguinte: ― a obra do Sr. Machado de Assis é deficiente, senão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o verdadeiro problema que se propôs a resolver e só filosofou sobre caracteres de uma vulgaridade perfeita; é deficiente na forma, porque não há nitidez, não há desenho, mas bosquejos, não há colorido, mas pinceladas ao acaso.
Apelamos para juízo mais competente.
A oitava resenha: Arthur Barreiros (1856–1885), A Estação, 28 de fevereiro de 1881.
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Bibliografia
Memórias Póstumas de Brás Cubas, por Machado de Assis. Rio de Janeiro. Tipografia Nacional. 1881.
Num ligeiro artigo biográfico deste autor, publicado numa data gloriosa (10 de junho .de 1880), dizia eu desta narrativa humorística, que se andava então a estampar na Revista Brasileira: “É opinião minha (e hoje creio que é da Crítica) que este extraordinário romance, inspirado diretamente nos humoristas ingleses, dissecando cruamente a alma humana com uma observação maravilhosa, não se limitando a julgar parcialmente este microcosmo chamado homem, mas abrangendo numa síntese poderosa todos os grandes impulsos que nos alevantam acima de nós mesmos e todas as pequeninas paixões que nos conservam acorrentados à baixa animalidade; é opinião minha, repito, que este extraordinário romance de Brás Cubas não tem correspondente nas literaturas de ambos os países da língua portuguesa e traz impressa a garra potente e delicadíssima do Mestre.”
Não me mentiu o presságio: o que eram simples presunções são hoje realidade acabada.
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Não se poderá dizer que este livro seja uma autobiografia minuciosa e completa, porque estamos ali como que fotografados, eu, no meu egoísmo; tu, na tua presunção; o homem que dobrou aquela esquina, na cáustica mordacidade; o nosso vizinho da esquerda, na ambição e na avareza.
Mas a observação é tão positiva, os fatos são de uma realidade tão palpável, fiel, esmagadora e perfeita, que ninguém os podia ter inventado nem fabulado a frio, entre as quatro paredes do gabinete; é evidente que o autor os viveu primeiro e os pôs no papel muito mais tarde, com o juízo calmo da experiência e as desilusões da idade, com as recordações, amargas ou doces, do tempo que passou, com a nota predominante do seu temperamento e o melhor do seu coração.
É esta circunstância singular o que lhe dá mais valor e lhe afirma a durabilidade; foi ainda esta circunstância que levou um crítico, a quem aliás sobeja talento, a perguntar admiradíssimo do ruído que o livro fez:
— Mas o que é, afinal, o Brás Cubas? Um sujeito nulo que escreve para os jornais, escapa de casar, e morre.
Aplicando o mesmo processo de crítica a todas as grandes obras do engenho humano, o que deixam elas como resultado? Quatro palavras simples, simples como a verdade, simples como a natureza, simples como a realidade. O entrecho dos Trabalhadores do Mar [romance do francês Victor Hugo] é a coisa mais simples deste mundo: um homem, ou, melhor, o homem luta com a natureza por arrancar-lhe às garras o costado de um velho navio e alcançar, como paga da audácia, a mão de uma mulher.
E eis aí está a Odisseia do homem.
Não há grande dispêndio de imaginação neste enredo; mas no entanto que profundo interesse nos desperta este livro, que bela e boa obra do enfant terrible de Chateaubriand [romancista francês]!
É igualmente simples o Paulo e Virgínia [romance] de Bernardin de Saint-Pierre; são-no também o Eurico [personagem de Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano], o D. Quixote, Madame Bovary [personagem de romance homônimo de Flaubert], os livros de [Émile] Zola [romancista francês] e os livros de [Alphonse] Daudet [romancista francês], todos os monumentos e todas as obras-primas da Arte, finalmente, quer na poesia, quer na pintura, quer na escultura.
O que é imprescindível, o que é essencial, numa obra de arte, é que ela exista na natureza, que impressione viva, benéfica e poderosamente o espírito do homem, que a um tempo o delicie, aperfeiçoe e melhore.
E o novo livro do Sr. Machado de Assis satisfaz cabalmente estas exigências, porque o tipo do herói foi colhido ao vivo de entre a multidão; porque representa — como entende um escritor consciencioso, o Sr. Urbano Duarte ― a luta do egoísmo estéril e brutal de Brás Cubas e o altruísmo do Quincas Borba; e é positivo que esta luta interessa, melhora e aperfeiçoa o espírito do leitor.
O Brás Cubas mereceu do talentoso critico, a quem me refiro, outro reparo, que também me parece menos cabível: o da influência patente que exercitou o Primo Basílio, vicioso de hoje, no pobre do Brás Cubas, adúltero de 1814.
E essa influência baseia-a o escritor em que em ambos os livros há uma esposa que prevarica e um amante que se goza com a prevaricação; e, por derradeiro, que a casinha da Gamboa parece-se muito com o Paraíso.
Esta reminiscência, esta cópia, este plágio, ou como lhe queiram chamar, sinceramente não o vejo eu. É fato que é esta a primeira vez que o Sr. Machado de Assis elege um tema escabroso e sem igual em toda a sua obra; bem pode ser que se deixasse levar, de caso pensado, pelos romances ruidosos de hoje; é possível também que haja obedecido ao espírito dos tempos de agora; mas daí a asseverar que copiou o Primo Basílio vai uma grande distância.
Demais, a mulher adúltera, tanto na sociedade como nos livros, escolhe um sítio para se encontrar com o amante; não é somente no Primo Basílio que há paraíso: há-o também na Madame Bovary, no Affaire Clémenceau [romance de Alexandre Dumas], e outros, e outros.
Mas, dado que este incidente seja copiado, porque o seria do Primo Basílio, e não o seria antes, e com maior soma de razão, da Madame Bovary ou do Affaire Clémenceau, que lhe são superiores?
Porventura o Sr. Eça de Queiroz será melhor romancista que Dumas filho ou melhor mestre que Flaubert?
Certo que não; e, repetimos, é despropositada a censura do crítico, que neste caso se nos afigura nada prudente, conquanto bem-intencionado.
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É soberano, límpido, musical, colorido, grave, terno, brincalhão, conceituoso, magistral, o estilo deste livro notável, o mais notável que se tem publicado, em literatura amena, depois da morte de José de Alencar.
Mas para o leitor vulgar e inclinado às grandes interjeições falsas e aos lances inverossimilhantes dos romances industriais, estes predicados do estilo e a filosofia, ora triste, ora cômica, do pessimismo que produz e rói como um cancro a flor da vida e do tédio, a flor amarela e mórbida do capítulo XXV — ; estas excelências do estilo e a filosofia que se desprende das páginas deste livro devem de comover mediocremente e inspirar até fadiga mortal.
Apelou um dos críticos para juízo mais alto e mais sábio que o seu [referência à resenha da Gazetinha]; demos ao tempo o que é do tempo, e daqui a vinte anos, talvez menos, talvez mais, depois de lido e compreendido o livro nas suas várias intenções, lavre-lhe então o público, que é o supremo juiz, a sentença definitiva que o fará viver ou esquecer.
Até lá, e enquanto se não apresenta outro escritor com mais claros direitos ao generalato que o Sr. Machado de Assis, cabe-nos a nós, último soldado raso do desordenado batalhão das nossas letras, cabe-nos a nós, toda a vez que o avistarmos, já nas páginas do livro, já nas colunas do jornal, fazer-lhe a continência do estilo e apresentar-lhe as armas.
A nona resenha: autor anônimo, Gazetinha (Rio), 14 de maio de 1882.
Trecho de resenha sobre o livro Vigílias Literárias, obra de crítica literária de Clóvis Beviláqua e Isidoro Martins Júnior.
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Infelizmente notamos no proveitoso trabalho do Sr. Clóvis Beviláqua um ponto, no qual não concordamos absolutamente com S. S. [Sua Senhoria]. É no que diz respeito a Machado de Assis.
Machado de Assis não é simplesmente um poeta digno de menção, como pretende o segundo livro das Vigílias Literárias, mas também um romancista muito vitorioso, elegante e natural.
As Memórias Póstumas de Brás Cubas é trabalho que, por si só, bastaria para conferir ao seu autor o supremo título de mestre. E o livro do Sr. Clóvis nem sequer falou nesse romance modelo.
A décima resenha: Aluísio Azevedo (1857–1913), Gazeta da Tarde, 8 de novembro de 1881.
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LITERATURA
NOSSO TEATRO
[…]
Machado de Assis, um dos mais graduados oficiais da nossa literatura, lança ao público um mimo de concepção, de graça e de arte — as Memórias Póstumas de Brás Cubas, um trabalho de au jour le jour [dos nossos dias], não é um conto improvisado para encher o rodapé de uma folha diária, mas sim um livro meditado, escrito metodicamente, no qual o autor pagou uma grande soma de seus estudos e uma grande soma de seu talento. Não é um romance de enredo, é um livro de filosofia, de observação e de estilo.
Pois bem, como foi que a imprensa recebeu esse livro, que em qualquer país civilizado representaria um grande acontecimento literário?! O que foi que ela lhe dispensou? Quais as críticas que se levantaram em torno dessa obra excepcional?
Nada de valor! A imprensa constituída expressou-se a declarar que recebeu e que agradeceu o volume do Sr. Machado de Assis, e, para arredondar a frase, disse condescendentemente que a obra está bem impressa e que o autor tem talento […]
IMAGENS DAS RESENHAS
A primeira resenha: Raul Pompeia (1863–1895; pseudônimo: Raul D.), Revista Ilustrada, 3 de abril de 1880 (resenha referente ao início da publicação seriada do romance na Revista Brasileira).
A segunda resenha: Arthur Barreiros (1856–1885), A Estação, 30 de junho de 1880 (resenha não assinada, referente ao início da publicação seriada do romance na Revista Brasileira).
A terceira resenha: autor anônimo, Gazetinha, 21 de dezembro de 1880
A quarta resenha: José Ribeiro Dantas Júnior (?-1886; pseudônimo: D. Júnio), Revista Ilustrada, 15 de janeiro de 1881.
A quinta resenha: Urbano Duarte (1855–1902), Gazeta da Tarde, 28 de janeiro de 1881.
Veja as imagens aqui: Uma crítica inédita ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)?
A sexta resenha: Capistrano de Abreu (1853–1927), Gazeta de Notícias, 30 de janeiro de 1881 (as imagens da segunda parte estão indisponíveis).
A sétima resenha: Urbano Duarte (1855–1902), Gazetinha, 2 de fevereiro de 1881.
A oitava resenha: Arthur Barreiros (1856–1885), A Estação, 28 de fevereiro de 1881.
A nona resenha: autor anônimo, Gazetinha (Rio), 14 de maio de 1882.
A décima resenha: Aluísio Azevedo (1857–1913), Gazeta da Tarde, 8 de novembro de 1881.