A crítica literária e a “traição” de Capitu: 1. José Veríssimo: o primeiro a suspeitar da história de Bentinho (1900)

Sérgio Barcellos Ximenes
18 min readJun 5, 2020

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Tema: a primazia da introdução do fator suspeita quanto à veracidade do narrador do romance Dom Casmurro (Machado de Assis, 1900), ponto nuclear da mais famosa polêmica da literatura brasileira: Capitu traiu ou não o marido Bentinho?

Atribuição mais recorrente de primazia: à crítica estadunidense Helen Caldwell, em seu estudo The Brazilian Othello of Machado de Assis (O Otelo Brasileiro de Machado de Assis), lançado em 1960 nos Estados Unidos.

Primeiro crítico a suspeitar do narrador: José Veríssimo, em crítica publicada na primeira página do Jornal do Commercio em 19 de março de 1900, ano e mês de lançamento de Dom Casmurro.

Posição posterior de José Veríssimo: aceitação da versão dominante sobre a fidelidade do relato de Bentinho e, portanto, da ocorrência de adultério (1915).

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A dúvida eterna da literatura brasileira

Capitu traiu ou não Bentinho?

Essa questão central do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, gera polêmica recorrente nas redes sociais, em especial no Twitter, mas não é tão antiga como parece. Segundo a maioria das fontes na Web, entre elas vários trabalhos acadêmicos, desde o lançamento do romance, em março de 1900, até 1960, ano da publicação do estudo The Brazilian Othello of Machado de Assis (O Otelo Brasileiro de Machado de Assis), da crítica estadunidense Helen Caldwell, a dúvida era uma certeza: sim, houve adultério.

Levados pela perícia machadiana, leitores e leitoras aceitavam a representação de Capitu como dissimulada e traidora, envolvidos no relato do único personagem com voz ativa no romance: seu acusador, Bentinho.

https://archive.org/details/brazilianothello0000cald
https://www.amazon.com.br/Otelo-brasileiro-Machado-Assis/dp/8574800937

Trecho da apresentação da tradução brasileira do livro de Helen Caldwell:

Por muito tempo, prevaleceu nas leituras críticas de Dom Casmurro o tom malicioso sobre a personalidade de Capitu. Helena Caldwell analisa a obra-prima de Machado de Assis afastando-se dessas interpretações machistas e revelando o nexo que o escritor estabelece com Otelo, de Shakespeare.

Essa versão se consolidou em muitos trabalhos acadêmicos e de crítica literária, desde então. Três exemplos:

(1) Trecho da monografia A obra de Machado de Assis comparada pela crítica, de Tatiana Camila Nogueira (página 15).

Ao falar do olhar estrangeiro sobre a obra de Machado de Assis, é imprescindível falar sobre a leitura de Helen Caldwell. A crítica norte-americana publica seu livro no ano de 1960. Foi através de sua análise que, pela primeira vez, apresentou-se a possibilidade de a personagem Capitu não ter traído Bentinho. Dessa forma, a leitura de Caldwell apresenta a ambiguidade da obra de Machado de Assis, trazendo, assim, uma riqueza ainda maior para o texto machadiano.

http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/A%20obra%20de%20Machado%20de%20Assis%20comparada%20pela%20crítica.pdf

(1) Trecho inicial de Dom Casmurro alegorista, de Sergio Paulo Rouanet (página 2):

Não são muito comuns, fora da história da ciência, as “revoluções de Copérnico”. Kant foi autor de uma delas, mas a filosofia crítica é estreitamente aparentada à ciência natural. Razão de sobra para admiramos a façanha de Helen Caldwell, que conseguiu, em 1960, fazer uma “revolução de Copérnico” numa área pouco sujeita a cataclismos dessa natureza: a crítica literária. Como se sabe, ela defendeu, em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, a tese escandalosa de que Capitu era inocente do adultério que lhe fora imputado por Dom Casmurro.

https://docplayer.com.br/7023503-Dom-casmurro-alegorista-sergio-paulo-rouanet.html

(3) Trecho de entrevista do professor e escritor Luís Augusto Fischer a Vitor Necchi, em A polêmica tentativa de embranquecer Machado de Assis:

Foi ela [Helen Caldwell] que chamou a atenção para o fato de que não dava para acreditar total e francamente na visão de Bento Santiago, o narrador (e suposta vítima de traição) de Dom Casmurro.

https://medium.com/@vitornecchi/a-polêmica-tentativa-de-embranquecer-machado-de-assis-34cca0c8116d

Matérias na mídia também reforçam a versão acima, como esta da Superinteressante, de 31 de março de 2014: Capitu traiu ou não traiu Bentinho em Dom Casmurro?

Narrador à parte, o curioso é que a dúvida “traiu ou não traiu” é razoavelmente moderna. Desde que foi lançado, em 1899, até a década de 1960, Dom Casmurro foi entendido pela crítica de forma simplista: como as memórias de um homem traído pelo amor de sua vida, Capitu, e pelo melhor amigo, Escobar.

https://super.abril.com.br/blog/oraculo/capitu-traiu-ou-nao-traiu-bentinho-em-dom-casmurro-de-machado-de-assis/

Também o verbete Dom Casmurro, da Wikipédia, reforça essa informação:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Dom_Casmurro

A consulta às fontes do período entre 1900 e 1960 revela uma situação bem mais complexa. Embora alguns trabalhos acadêmicos, livros e até mesmo artigos de periódicos na Web revelem nuanças nessa primazia de Helen Caldwell, a versão pós-1960 ainda prevalece.

Este artigo é o primeiro de uma série destinada à apresentação de uma série de textos que provam a existência de interpretações “favoráveis” a Capitu, ou mesmo neutras, desde o ano do lançamento do romance.

1. José Veríssimo.

Exatamente no mês de lançamento de Dom Casmurro (março de 1900), um crítico expressou dúvida quanto à validade do relato de Bentinho na história.

Em uma extensa crítica do romance, publicada em destaque na primeira página do Jornal do Commercio em 19 de março de 1900, José Veríssimo (1857, PA — 1916, RJ), um dos principais críticos literários da época, introduziu o tema suspeita na descrição dos fatos por Bentinho (negrito acrescentado).

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Capitu, a dissimulada, a pérfida, é deliciosa de afetuosidade felina, de reflexão e de inconsciência ou desplante, de animalidade inteligente e perspicácia feminil, de jeito, de feitiçaria e graça, e, com isso tudo, viva, real, exata. Dom Casmurro a descreve, aliás, com amor e com ódio, o que pode torná-lo suspeito.

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 19/3/1900, número 78, página 1, quinta coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/364568_09/177

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Ressalte-se que José Veríssimo não mencionou em sua crítica a hipótese central da tese de Helen Caldwell (o modelo de Machado para a história seria o drama Otelo, de Shakespeare), mas quanto à polêmica da traição não se identificava no texto nenhum machismo ou mesmo a adoção ingênua do ponto de vista do narrador da história.

Como bom resenhista, Veríssimo transmitiu aos leitores a história contada do ponto de vista do marido supostamente traído, mas ao final alertou-os para um aspecto técnico da narração: quem conta a história é quem lhe dá o significado. E também alertou-os para uma verdade psicológica: o envolvimento afetivo distorce a percepção.

Reforçando a ambiguidade do relato, José Veríssimo terminou a resenha incentivando os leitores não a se basearem na autoridade do resenhista (como é praxe nessa categoria de textos), e sim a chegarem a uma avaliação independente.

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A sua conclusão [a de Bentinho], que não é talvez aquela que ele confessa, seria acaso que não há [como] escapar à malícia das mulheres e à má-fé dos homens. Mas vejo que é, no fundo, a mesma que ele nos dá. Perco-me decididamente em explicações. Lede a fábula, e tirai-lhe vós mesmos a moralidade.

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 19/3/1900, número 78, página 1, quinta coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/364568_09/177

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Lembrando: Autobiography is usually honest but it is never truthful (Uma autobiografia é geralmente sincera, mas jamais verídica), frase do escritor Robert A. Heinlein. Dom Casmurro é uma autobiografia.

Fatores cognitivos (a maleabilidade da memória), emocionais (o apego às necessidades pessoais) e psicológicos (a defesa de nossas crenças e posições), entre outros, servem de filtro modificador da realidade, e o resultado é uma história pessoal.

Toda autobiografia é uma versão da “realidade”, uma adaptação subjetiva dos fatos então vivenciados, por quem os conta, feita no momento histórico do relato.

https://twitter.com/LaerteCoutinho1/status/1269968258704248832

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Sim, é [são] de Dom Casmurro e não de Bentinho ou sequer de Bento Santiago, o poeta que não é propriamente narrativa da autobiografia, as reflexões morais, as explicações dos atos e sentimentos.

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 19/3/1900, número 78, página 1, quarta coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/364568_09/177

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Curiosamente, ao lançar em 1915 a sua História da Literatura Brasileira ― de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), constatou-se a mudança de opinião de José Veríssimo, no sentido da interpretação majoritária que vigoraria até 1960. Já não há mais suspeita, e sim certeza: houve adultério.

O relato pessoal e distorcido se transformou em descrição objetiva e precisa dos eventos relatados (negrito acrescentado).

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Dom Casmurro é exemplo desta sua superior faculdade de romancista, comprovada aliás em toda a sua obra. É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse ou desconfiasse. Somente o veio a descobrir quando lhe morre num desastre o amigo querido e deplorado. Um olhar lançado pela mulher ao cadáver, aquele mesmo olhar que trazia “não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”, o mesmo olhar que outrora o arrastara e prendera a ele e que ela agora lança ao morto, lhe revela a infidelidade dos dois. Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo.

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Uma simples contagem oferece a melhor pista para a longevidade dessa interpretação: todos os críticos que trataram do romance nas primeiras décadas após o seu lançamento eram homens. Quem primeiro defendeu a “inocência” de Capitu, centrando sua defesa em argumentos fundamentados, técnicos e linguísticos, é uma mulher.

Reproduzo a seguir a crítica de José Veríssimo, em sua inteireza, por se tratar de um texto de importância histórica e não estar disponível no site oficial da Academia Brasileira de Letras dedicado a Machado de Assis.

Vale o alerta: o estilo de José Veríssimo não é dos mais amigáveis para um leitor moderno.

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NOVO LIVRO DO SR. MACHADO DE ASSIS

DOM CASMURRO, por Machado de Assis, H. Garnier, Rio do Janeiro, 1900.

Dom Casmurro é irmão gêmeo, posto que com grandes diferenças de feições, se não de índole, de [Memórias Póstumas de] Brás Cubas. Eu preferia, e comigo estarão porventura os devotos do escritor, que a este raro e distinto livro e a Quincas Borba, que o seguiu, diferenciando-se por uma humanidade maior e uma realidade mais viva, sucedesse uma obra que mostrasse um novo aspecto da imaginação e do pensamento do autor. Relativamente a Brás Cubas, Quincas Borba, derivado embora da mesma inspiração, era novo; filho do mesmo sangue, tinha entretanto outra fisionomia e outro caráter. Sem ser uma reprodução de Brás Cubas, Dom Casmurro tem com ele, mais que o ar de família dos filhos do mesmo pai, semelhanças de irmão gêmeo. São semelhanças, entretanto, que não deixam lugar à confusão. Parecem-se, mas não são o mesmo, nem podem se confundir. Se Brás Cubas e Dom Casmurro contam, ambos os dois, a sua história, cada um tem o seu estilo, a sua língua, a sua maneira de contar. No que mais se assemelham é no fundo da sua filosofia e no modo de considerar as coisas. Mas ainda assim há no homem do Primeiro Reinado e da Regência, que era Brás Cubas, e no homem do Segundo Império, que foi Dom Casmurro, sensíveis diferenças de épocas, de civilização, de costume.

Basta comparar-lhes a linguagem. Certo, o estilo é o mesmo, pois é o estilo de um escritor feito, e não se muda de estilo como de pena. Só o trocam os que do fato não o têm, e menos poderia reformá-lo um escritor completo como o Sr. Machado do Assis, e que o possui com uma individualidade como nenhum outro dos nossos. Mas se não é possível mudar de estilo sem mudar de personalidade, não é impossível variá-lo, consoante as condições, os gêneros, os personagens, a índole, a natureza da ação ou da composição da obra literária. E esta variação, feita com inteligência, do Brás Cubas para o Dom Casmurro, bastou para diferenciá-los. Não faltaria quem inquinasse [acusasse] aquele de uma linguagem, conquanto de raro sabor artístico e inexcedível pureza e elegância, quase antiquada, com os seus boleios [aprimoramentos] clássicos, o uso, embora discreto, de expressões arcaicas, a construção intencionalmente invertida. Não viam esses que era um homem para nós do tempo antigo, espirituoso e douto em letras, que nos recontava a sua história com a língua do seu tempo e da sua classe, acrescentada de preocupações literárias. Quem fala em Dom Casmurro é outro homem, já do nosso tempo e das nossas ideias, que se formou em São Paulo e não em Coimbra, e conquanto pelo espírito, pelo temperamento, apesar da sua casmurrice ulterior e pela concepção da vida, parecido com o outro [que é] muito diferente dele pelas formas e modos com que sentia e se exprimia. Porque na vida, como na arte, que a representa, define ou idealiza, são as formas e modos de sentir e de exprimir e que sentimos, mais que o mesmo sentir, que produzem as variedades e diferenças da existência em todos os seus múltiplos aspectos. E Dom Casmurro, sentindo talvez, como Brás Cubas, exprime o seu sentimento de outra maneira, que basta para renová-lo e distingui-lo. Brás Cubas, em suma, não dispensa Dom Casmurro, antes de alguma sorte o completa. Mas, e aqui venho ao fim do meu reparo, se a crítica tem o direito do formular um desejo, eu quisera que mesmo sem inteirar a trilogia que alguns esperam de Brás Cubas e Quincas Borba, o escritor consumasse a evolução que porventura neste último se pronunciava, para um modo mais piedoso, se não mais humano, de conceber a vida, e nos desse, como com aqueles dois admiráveis livros, uma obra inteiramente nova. Sabe o Sr. Machado do Assis que tais pedidos não se fazem senão aos opulentos.

A obra literária, a obra de arte, se define pela emoção que deve provocar ou despertar em nós. Essa emoção pode ser sentimental ou intelectual. Mesmo de uma emoção puramente sentimental não é possível excluir ou sequer abstrair a inteligência, que tem nela a sua função própria; mas há emoções que, sem necessidade dos conceitos da psicologia, cada um de nós sente que nelas predominam já a inteligência, já o sentimento. E esta predominância as distingue para nós. Teóricos da estética quiseram que o sentimento predominasse sempre nas emoções artísticas e literárias. A concepção é, talvez, estreita e acanhadamente compreensiva, pois uma emoção intelectual, de ordem estética, tende necessariamente a transformar-se em emoção sentimental e satisfazer assim os fins que à arte assinam os seus teoristas.

Na obra do Sr. Machado de Assis, a emoção é por via de regra, não sei se não poderia dizer sempre, de ordem intelectual. Falece-lhe ou esconde-a ciosamente — e talvez seja esta a hipótese verdadeira — a emoção sentimental. Advirto que não quero fazer a psicologia do Sr. Machado de Assis, e os meus conceitos, certos ou falsos, do escritor, derivo-os apenas do estudo da sua obra. É notável que vindo do Romantismo, nada lhe haja ficado do seu sentimentalismo romântico, e que, ao contrário, toda a sentimentalidade, talvez com horror da pieguice em que ele descambou finalmente naquela escola, lhe repugna profundamente. Mas quando em um escritor como ele, de uma tão alta honestidade literária, sentimos esta espécie de repugnância orgânica de um tão humano e legítimo sentimento, esta falta desnatural do amor, ao qual devem a arte e a literatura mais que as suas mais belas obras, a sua mesma existência, desperta-se-nos também a curiosidade de indagar da sua mesma obra até que ponto será qual [como] se nos figura. Dessa obra ressumbra [transparece] uma filosofia amarga, cética, pessimista, uma concepção desencantada da vida, uma desilusão completa dos móveis humanos. E com isto, em vez das imprecações e raivas dos pessimistas profissionais, como os profetas bíblicos ou seus imitadores hodiernos, a quem uma fé, uma esperança desesperada, uma forte convicção alça a cólera ou exaspera a paixão, [também] uma ironia fina, brincalhosa [brincalhona], cortesã de homem bom mas seguro, como o Eclesiastes, de que tudo é vão neste mundo e resolvido por isso a não se iludir com nenhuma aparência. Neste último rasgo, sente-se no escritor, se não o esforço, o propósito, como que o timbre de não se deixar tomar por néscio e ludibriar por coisas que ele assenta falaciosas. Tudo é vaidade, vão é quanto há sob o sol. Mas não será também vã a ironia, vão o ceticismo, vã a nossa tenção de escaparmos a todas as ilusões? Como quer que seja, não escapamos ao encanto amargo desta filosofia desenganada. Se Cohelet [o Eclesiastes] buscou palavras deliciosas com que ensina magistralmente as máximas da sua verdade!

Não me é possível resumir a autobiografia de Dom Casmurro. Se ele não nasceu homem calado e metido consigo, a vida acabou por fazê-lo tal. Somente aquela filosofia desabusada, que estava nele, não consentiu que com ele entrasse a maldade, permitindo-lhe apenas a malícia. Quem foi que disse que a bondade do cético é a mais sólida?

Não sei se acerto atribuindo malícia ao pobre Bento Santiago, antes que se fizesse Dom Casmurro. Não, ele era antes ingênuo, simples, cândido, confiante, canhestro. O seu mestre — formoso e irresistível mestre! — de desilusões e de enganos, o seu professor, não de melancolia, como outro que inventou o autor de um certo Apólogo, mas de alegria e viveza, foi Capitu, a deliciosa Capitu. Foi ela, come diziam as nossas avós, quem o desasnou e, encantadora Eva, quem ensinou a malícia a este novo Adão. Somente haveria nele adequadas disposições para receber a agradável doutrina. Também eu duvido que dele são as reflexões, as considerações, a luz a que vê as coisas do seu passado. Dom Casmurro traiu e caluniou o Bentinho, o bom menino, o filho amante, o rapaz inocente e respeitoso, o estudante aplicado, o jovem piedoso, o namorado ingênuo, o amigo devotado e confiante, o marido amoroso e crédulo. A moral, os comentários de que acompanha os fatos e gestos de Bentinho, são dele, depois que o espírito se lhe desabusou daqueles olhos de Capitu, “que traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”, daqueles “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, como lhes chamava, com demasiado estilo, José Dias, e também dos “olhos dulcíssimos” de Escobar, como lh’os achava o mesmo José Dias, e da sua polidez, das suas boas maneiras, que a todos cativavam. Sim, é [são] de Dom Casmurro e não de Bentinho ou sequer de Bento Santiago, o poeta que não é propriamente narrativa da autobiografia, as reflexões morais, as explicações dos atos e sentimentos. A única verdadeira e certa das qualidades que se atribuem à mocidade é a ilusão com a emoção correspondente. Decididamente Dom Casmurro, de boa ou má-fé, caluniou a Bentinho, isto é, a si próprio. Somente, ditosa culpa, se o não houvesse feito, talvez a sua obra, promessa auspiciosa da História dos Subúrbios, que tanta falta está fazendo à nossa historiografia, não tivesse este picante sabor de malícia, nem a novidade com que renovou, dificuldade só dada a vencer aos grandes artistas, um velho tema.

Mas também, apesar das prevenções de José Dias, quem houvera com quinze anos e a inocência de Bentinho, e mesmo sem isso, resistido à curiosa e solerte Capitu, acoroçoada [estimulada] pela ingênua e velhaca cumplicidade de seus pais? Lede-me aquele delicioso capítulo do “penteado”, ó vós que já tivestes quinze anos, e dize-me quem houvera capaz do resistir a Capitu? Bentinho acabara, por um jogo de crianças íntimas, de pentear-lhe os cabelos, e exclama, a obra concluída.

“ — Pronto.

“ — Estará bom?

“ — Veja no espelho.

“Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

“ — Levanta, Capitu!

“Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus e…”

Que excelente, e penetrante, e fino estudo de mulher nos deu, como a brincar, recobrindo-o de riso e de ironia, o Sr. Machado de Assis nesta sua Capitu! E ao demais [além disso], novo, original, bem nosso, como aliás são, sem embargo da sua real generalidade humana, as criações do Sr. Machado de Assis. Porque, e é seguramente um raro e alto mérito, sendo o autor de Dom Casmurro o único talvez dos escritores brasileiros que na ficção se eleva até o geral, o simplesmente humano, sem preocupações de representações etnográficas e locais, nenhum, [no] entanto, é mais verdadeiro e exato de que ele quanto as faz. A extrema flexibilidade do seu talento permite-lhe casar perfeitamente a verdade geral e superior da natureza humana com a verdade particular do temperamento nacional. E esta é, se não me engano, uma das condições da grande arte, do realismo na sua forma mais elevada e mais pura. A sua literatura não é de intenção descritiva; no mundo só lhe interessa de fato o homem com os seus sentimentos, as suas paixões, os seus móveis de ação; na sua terra, o puro drama, ou comédia, talvez ele preferisse dizer, humano, sem lhe dar da decoração, da paisagem, dos costumes, de que apenas se servirá para criar aos seus personagens e aos seus feitos o ambiente indispensável, porque sendo entes vivos não podem viver sem ele.

Entretanto, raros terão, com toda a sua intenção de cenografia, de pintura de costumes, de representação da vida material nos seus aspectos familiares, dado da nossa vida quadros tão acabados, tão vivos. Ainda Dom Casmurro é um testemunho de que não erro ou exagero. É, talvez, que na obra do Sr. Machado de Assis a representação dos aspectos materiais da vida não provém da descrição ou da enumeração das partes que os compõem, senão, como nos pintores das novas escolas — e não me refiro às chamadas decadentes — da impressão geral, e por assim dizer animada e quase espiritual das coisas. Neste sentido ele é, talvez. um ruskiniano [de John Ruskin, escritor romântico inglês]: a paisagem, que ele, aliás, não ama, e da qual, que me lembra, jamais se ocupou — não será para ele um conjunto de árvores, montes, águas, pedras, com este ou aquele aspecto particular, senão a impressão moral e estética que ela produz no artista.

Se esta é, como creio, a característica da sua representação literária, tanto nos romances como nos contos, a da sua psicologia é idêntica a esta, mostrando assim que os seus processos literários, como próprios e pessoais que são, derivam do seu mesmo temperamento de escritor e procedem de um fundo comum de ideias e sentimentos. Ele faz a psicologia, nem à moda de Balzac, nem à moda de Burget; sobretudo não a faz à moda deste e de seus imitadores, essa psicologia meticulosa, minuciosa, rebuscada, preciosa como a língua das sabichonas e, no fundo, falsa. Não a faz, como eles, procurando decompor uma alma como se decompõe um corpo em seus elementos constituintes, ou analisar os seus sentimentos como se analisa uma substância química, e explicar os seus móveis como um fisiologista explicaria o jogo das funções do nosso organismo. Sobretudo, ele não a faz com qualquer preocupação estranha à pura literatura, ou com os retratos das pretensas psicologias científicas apanhadas de atropelo em leituras desordenadas e malfeitas. A sua, certa ou errada, vem evidentemente de uma observação longa, acurada e aguda. Não é no geral simpática, o que, pode bem ser, lhe vicie a visão, mas sente-se que é sua. Não a expõe em capítulos didáticos; explica-a quanto baste para completar a representação que da sua dão os mesmos personagens nas suas falas, nos seus gestos, nas suas ações. E, ao cabo, os seus livros são galerias de gente viva, como este Dom Casmurro, com Capitu, José Dias, Escobar, e as figuras secundárias, os pais de Capitu, D. Glória, Justina, o tio Cosme. Capitu, a dissimulada, a pérfida, é deliciosa de afetuosidade felina, de reflexão e de inconsciência ou desplante, de animalidade inteligente e perspicácia feminil, de jeito, de feitiçaria e graça, e, com isso tudo, viva, real, exata. Dom Casmurro a descreve, aliás, com amor e com ódio, o que pode torná-lo suspeito. Ele procura cuidadosamente esconder estes sentimentos, sem talvez consegui-lo de todo. Ao cabo das suas memórias sente-se-lhe uma emoção, que ele se empenha em refugar. E só. A sua conclusão [a de Bentinho], que não é talvez aquela que ele confessa, seria acaso que não há [como] escapar à malícia das mulheres e à má-fé dos homens. Mas vejo que é, no fundo, a mesma que ele nos dá. Perco-me decididamente em explicações. Lede a fábula, e tirai-lhe vós mesmos a moralidade.

J. Veríssimo.

Fonte

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 19/3/1900, número 78, página 1, da segunda à quinta coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_09/177

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.