O Mestre (amargurado): um artigo de 1906 sobre Machado de Assis

Sérgio Barcellos Ximenes
8 min readJun 23, 2020

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O texto apresentado a seguir saiu no jornal Correio Paulistano em 4 de fevereiro de 1906, pouco mais de dois anos e meio antes do falecimento de Machado de Assis (em 29 de setembro de 1908).

Não encontrei menção ao texto no Google ou no Google Scholar (seção do Google para trabalhos acadêmicos), nem em sites dedicados a Machado, daí a iniciativa de reproduzi-lo neste artigo.

São três os pontos interessantes no texto de Mário de Lima Barbosa.

Primeiro, a confirmação do impacto emocional (já bem conhecido) do falecimento de Carolina, a esposa de Machado, no tempo restante de sua vida.

A portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais (1835–1904) casou-se com Machado em 1868. O casal não teve filhos. Carolina faleceu em 20 de outubro de 1904, e para homenageá-la Machado compôs o seu soneto mais admirado: A Carolina.

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Querida! Ao pé do leito derradeiro,

em que descansas desta longa vida,

aqui venho e virei, pobre querida,

trazer-te o coração de companheiro.

*

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

que, a despeito de toda a humana lida,

fez a nossa existência apetecida

e num recanto pôs um mundo inteiro…

*

Trago-te flores — restos arrancados

da terra que nos viu passar unidos

e ora mortos nos deixa e separados;

*

que eu, se tenho, nos olhos mal feridos,

pensamentos de vida formulados,

são pensamentos idos e vividos.

____

Em carta a Joaquim Nabuco, escrita um mês depois, Machado confessaria: “Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo”.

O segundo ponto interessante refere-se aos escritores de então e de agora. Mário de Lima Barbosa revela a situação financeira aflitiva de Machado, então com 66 anos de idade, e ainda obrigado ao trabalho burocrático para se manter.

“Velho e cheio de glória, ele, o Mestre, ainda precisa trabalhar para viver… É pobre como, em geral, o são os homens de letras do Brasil…”

Vale lembrar que, atualmente, cerca de 4% dos brasileiros se declaram como leitores de livros nas pesquisas de opinião pública. Naquela época, marcada pelo analfabetismo, raramente os livros passavam da primeira edição, mesmo os de autores consagrados como Machado. Daí a necessidade de complementação da renda familiar com o trabalho para jornais e, muitas vezes, em repartição pública (o caso de Machado).

O terceiro ponto interessante deriva do segundo, e se refere a um aspecto às vezes desconsiderado nas análises da obra do autor: as condições longe das ideais em que foram produzidas suas obras-primas ― assim como a precariedade das recompensas do seu trabalho, tanto financeiras quanto sociais.

Este trecho de carta de Machado a Magalhães de Azeredo, escrita em 26 de maio de 1895, ilustra com perfeição os efeitos danosos das condições restritivas impostas à maioria dos escritores pela necessidade de ganhar a vida em outras funções.

Correspondência de Machado de Assis — Tomo II — 1890,-1900, Academia Brasileira de Letras, 2011 — https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/correspondencia_machado_de_assis_-_tomo_iii_-_1890-1900.pdf

“O livro em que trabalho” refere-se a Dom Casmurro. O romance, que Machado pretendia terminar ainda naquele ano (1895), só ficou pronto em 1899, sendo lançado em 1900. A tiragem da primeira edição: 2.000 exemplares.

A ausência de filhos deve ter facilitado a dedicação à literatura, mas o trabalho para jornais e para o governo certamente impediram um desenvolvimento ideal da ficção e da poesia de Machado.

Correio Paulistano (São Paulo, SP), 4/2/1906, número 15.263, página 3, segunda e terceira colunas — http://memoria.bn.br/DocReader/090972_06/8122

Mário de Lima Barbosa (1886-?) foi escritor e tradutor, e teve na biografia Rui Barbosa na Política e na História: 1849–1914 a sua obra mais conhecida.

Observação

Na transcrição e atualização do texto, eliminei dezenas de travessões inseridos por Mário de Lima Barbosa, que atrapalhavam o fluxo da leitura.

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O Mestre

No largo do Machado… Dez horas, precisamente, de uma manhã dourada e linda… O céu azul arqueia como uma ondulação sobre as nossas cabeças, e o sol ardente banha de luz a esmeraldina e rica folhagem da estação…

Cantam cigarras, a passarada corta os ares, espalhando gorjeios suaves, e do seio da terra como que brota uma “Harmonia Triunfal”, celebrando as pompas do Sol e da Natureza do Estio…

De pé, à beira da calçada está o Mestre; tem uma expressão pensativa, contemplando uma multidão que passa alegre e sorridente, caminho da igreja…

É domingo… Os sinos tilintando enchem o espaço de sons, anunciando a hora da missa…

“ — Tout se trouve dans les reveries enchantées oú nous plonge le bruit de la cloche [natale]: religion, familie, patrie, et le berceau et la tombe, et le passé et l’avenir” [Tudo se encontra nos devaneios encantados, onde nos mergulha o som do sino nativo: religião, família, país, e o berço e a sepultura, e o passado e o futuro.] — , já disse Chateaubriand [romancista francês, em René]…

E Machado de Assis reflete: passa, de quando em quando. a mão pela barba branca, contempla a Natureza, fixa os olhos no céu e fala… Fala das suas amarguras e das suas tristezas, mas com tanta doçura que a gente chega a achar delicioso esse momento em que só lhe ouve a voz…

O mestre sente-se fatigado do trabalho e de luta, cansado de viver!…

Nesse momento em que lhe falo, está de volta do cemitério… É essa uma obrigação dos dias em que não há trabalho na secretaria da Viação: visita ao túmulo da sua única companheira, que fugiu do mundo dos mortais, deixando-o sozinho na Terra, abandonado nesse lar solitário em que não há, ao menos, um filho para consolá-lo…

Machado de Assis, assim, vai atravessando os dias de vida… A fadiga prostra-o, enquanto o trabalho reclama-o…

Velho e cheio de glória, ele, o Mestre, ainda precisa trabalhar para viver… É pobre como, em geral, o são os homens de letras do Brasil… Preside a Academia Brasileira de Letras, mas como ser literato não é bastante para viver, ele recorre ao trabalho, emprestando a glória do seu grande nome e a luz de toda a sua inteligência ao cargo que ocupa numa das seções do Ministério da Viação…

Não há muito tempo que, no Senado Federal, levantava-se uma voz patriótica, lembrando a situação dos nossos mais distintos homens de pensamento, das nossas maiores glórias literárias da atualidade.

Nesse memorável discurso, citava-se Machado do Assis, o Mestre da literatura brasileira, recorrendo ao emprego de chefe de seção de uma Secretaria de Estado; Olavo Bilac e Alberto do Oliveira, os nossos dois maiores poetas, recorrendo, aquele à função de inspetor escolar e este à de professor de Ginásio; Raimundo Correia, o autor das Pombas; José Veríssimo, o extraordinário crítico; Coelho Neto, Graça Aranha, Silva Ramos, Arthur Azevedo, João Ribeiro, Lúcio de Mendonça, Alcindo Guanabara, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Rodrigo Otávio, Guimarães Passos, e tantos outros que se vêm forçados a aceitar empregos para poder viver!…

No Brasil, o homem de letras, infelizmente, não consegue fazer fortuna… Se alguém ganha, é o editor — isso mesmo. Deus sabe como, com que dificuldades os livros arranjam leitores. Assim mesmo, o editor sempre consegue algum lucro, enquanto que o autor produz quase que sem proveito, pois que a soma obtida por qualquer trabalho vendido não espantará, por certo, nenhum Perrin & Co., ou Calmann Levy, Paris…

Bilac, que não cessa de clamar, pedindo instrução para a população deste país, tem já anotado esse prejuízo que resulta para a literatura, da ignorância popular. Alcindo Guanabara, no seu jornal, por ocasiões diferentes, tem feito sentir esse estado de coisas a que chegamos, com esse indiferentismo [essa indiferença] pelas produções do pensamento, abandonando-se por completo as nossas maiores glórias literárias…

Desta forma, Machado de Assis vai atravessando os dias de uma existência amargurada, em que, ao lado das saudades do passado, nessa contínua lembrança a que a idade obriga o pensamento, refletindo recordações de felicidades que não voltam mais, como os sonhos e as ilusões da mocidade, surgem as imposições de um trabalho incompatível com a maneira de pensar de qualquer artista…

Assim vive Machado de Assis, o glorioso poeta, o maior de todos os romancistas brasileiros, o incomparável autor do Dom Casmurro, do [Memórias Póstumas de] Brás Cubas e desse delicioso Esaú e Jacó, que representa o último triunfo da literatura nacional; assim, atravessa o Mestre, quase esquecido desse público ingrato de que Dorat [poeta francês] já dizia [na comédia La Feinte par Amour [A Enganação por Amor]:

“[Et le public] léger, qu’un changement réveille,

Brise en riant l’autel qu’il encensait la veille.”

[“(E o público]) inconstante, despertado por uma mudança,

Desmancha rindo o altar que ele incensou na véspera.”]

Neste país, os poetas, os jornalistas, os homens de letras enfim, nunca conseguirão a fortuna que obtiveram na Europa, especialmente, os Rochefort. os Rostand, os Zola, os d’Annunzio e tantos outros, enquanto não houver público instruído. Do contrário, esse indiferentismo continuará a predominar, com relação aos trabalhos de arte como para com todas as produções do pensamento.

Está, portanto, estabelecida a grande luta, entre o artista que procura fazer vibrar a sua obra provocando as emoções de um público, e esse mesmo “público” que não pode senti-la por falta de compreensão, ou seja mesmo por ignorância…

Essa luta tem sido contínua — como os próprios clamores que de nada têm servido. A falta de instrução popular predomina sempre… O Brasil continua povoado por uma população cuja maioria é formada de analfabetos; as exposições da arte continuam a não produzir recursos para os artistas, enquanto as edições de livros dormem entre o pó das estantes dos livreiros, sem saída…

Quem for no Garnier ou no Alves, ao Briguiet ou Laemmert [livrarias], terá ocasião de observar o negócio que fazem com livros — encontrará as estantes atulhadas…

Os próprios jornais não têm quase leitores; nenhum existe que tenha uma edição aproximada às do New York Herald, do Times ou do Figaro

Tudo isso, por certo, evidencia a situação dos homens de letras nacionais, vivendo quase que inteiramente esquecidos do público, forçados a buscar num “emprego” o necessário ganho para a manutenção da existência — daí resulta a descrença em que vivem, cheios de amarguras e tristezas…

Assim, o Mestre, às dez horas, precisamente, de uma manhã dourada da verão, entre cantos de cigarras e gorjeios de passarinhos, ouvindo o badalar dos sinos da carola que chama os fiéis para a missa domingueira, cheio de tristezas e amarguras, contempla a turba que passa, recordando tempos que já não voltam, em que abundavam as felicidades — ele reflete:

“Il fiore dal passato dá ancora profumo…”

[“A flor do passado ainda exala perfume…”]

Rio de Janeiro. 1906.

Mário de Lima Barbosa.

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.