A crítica literária vingativa e o seu maior alvo no Brasil: Machado de Assis — 1. A vingança de Sílvio Romero

Sérgio Barcellos Ximenes
20 min readJun 10, 2020

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Outros artigos sobre Machado de Assis

A cobrança post-mortem de um professor negro a Machado de Assis pela falta de protagonismo na causa abolicionista

A crítica literária vingativa e o seu maior alvo no Brasil: Machado de Assis — 2. A vingança de Múcio Teixeira

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Música Inglesa (1888): uma série inédita de artigos de Machado de Assis em jornal escravocrata?

O Mestre (amargurado): um artigo de 1906 sobre Machado de Assis

Dom Casmurro: A crítica literária e a “traição” de Capitu: 1. José Veríssimo: o primeiro a suspeitar da história de Bentinho (1900) | 2. Francisco de Paula Azzi: a primeira defesa categórica da fidelidade de Capitu (1939)

Memórias Póstumas de Brás Cubas: 1. A segunda e desconhecida publicação do romance (1880) | 2. Uma crítica inédita (1881) | 3. Você conhece o romance Memórias Fóstumas de Brás Cubas? | 4. A recepção crítica ao romance (1880–1882)

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Tema: as vinganças de Sílvio Romero e Múcio Teixeira contra Machado de Assis, motivadas por avaliações negativas de suas obras feitas pelo romancista na condição de crítico literário.

O crítico literário Machado de Assis: função exercida entre 8 de outubro de 1865 (Ideal do crítico, no Diário do Rio de Janeiro) e outubro de 1879 (A nova geração, na Revista Brasileira).

A crítica de Machado a Sílvio Romero: possível represália motivada por duas críticas de Sílvio Romero, em 1870 e 1873 (esta, repetida em 1878); publicada em seu artigo de despedida da crítica literária, A Nova Geração (Revista Brasileira, 1879), no qual aconselhava Sílvio a abandonar a poesia.

A vingança de Sílvio Romero:

1. Primeiros ataques contundentes em 1882, no livro O Naturalismo na Literatura;

2. Um livro inteiro, de 347 páginas (Machado de Assis ― Estudo comparativo de literatura brasileira, 1897), dedicado à crítica da literatura de Machado, tanto na poesia quanto na prosa, e composto de dezenas de frases depreciativas e desrespeitosas, com a intenção explícita de humilhar publicamente o autor, incluindo uma ameaça de revelação dos bastidores da vida pessoal de Machado; um caso único na história da literatura brasileira;

3. O ataque final, no artigo Poesias Completas do livro Outros Estudos de Literatura Contemporânea (1906), escrito no mesmo tom e a mesma virulência do livro Machado de Assis.

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A doce vingança literária…

Vingança literária é apenas uma das várias categorias de conflitos que revelam a infindável briga de egos entre os profissionais da literatura, notadamente entre escritores e críticos.

Meu livro Toma, Toma e Toma! Ultimate Literary Fighting, uma coletânea de críticas virulentas e ataques pessoais entre os literatos, compila citações referentes a mais de 400 alvos, brasileiros e internacionais.

Embora muitas delas sejam notáveis pela sagacidade das ideias e impetuosidade dos autores, talvez a mais criativa das vinganças literárias seja também a mais elegante de todas. A citação abaixo expõe a vitória suprema de um Nobel de Literatura sobre seu crítico “predileto”, origem que prova a natureza indelével das feridas no ego de um escritor: nem mesmo a conquista do maior prêmio da carreira apaga da memória a humilhação de uma longínqua crítica pública.

Minha própria posição [secundária] foi tornada irremediável quando um poeta, a quem eu havia confrontado e sobrepujado em um debate público, logo depois de retornar de Estocolmo [onde recebeu o Nobel] olhou-me e disse uma única e debochada palavra: “Sorry [Sinto muito]. George Steiner.

Quem contou essa história, muitos anos depois do encontro, foi o próprio alvo da humilhação, origem que prova a natureza indelével das feridas no ego de um crítico.

Machado de Assis e a relação com leitores, escritores e público

A unanimidade atual sobre a obra literária de Machado de Assis, em especial sobre a produção da segunda fase (os romances realistas Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba), pode sugerir que em seu tempo de vida o escritor era aclamado por seus pares, críticos e público. Fosse assim, não haveria material para escrever um livro como este:

https://www.estantevirtual.com.br/livros/josue-montello/os-inimigos-de-machado-de-assis/676623361

Boa parte dos capítulos refere-se ao tempo de vida de Machado.

Entre os críticos da época, vários mantiveram o tom de respeito ao escritor, mesmo ao apontarem defeitos reputados como graves em sua obra. Alguns exemplos, abaixo, tanto em vida quanto logo após a morte do Bruxo do Cosme Velho.

Alfredo de Carvalho (1870–1916)

“Na vasta galeria de tipos de seus romances não há uma só figura verdadeiramente viva, naturalmente humana; nem sequer Capitu, a deliciosa Capitu do Dom Casmurro, reveste a feminilidade perfeita de uma mulher real; há um quê de incompleto, de indeciso na psicologia do todos os seus personagens, tão semelhantes uns aos outros, tão parecidos que chegam a despertar a suspeita de um mesmo original retocado, mais ou menos felizmente, em numerosas cópias sucessivas.

“E, assim como não foi um criador — ficando muito aquém de Alencar — careceu de fantasia representativa para poder fixar, em descrições pitorescas e coloridas, os cenários de seus dramas; não há paisagens nos seus livros nem aspectos de natureza, nem quadros de história e da vida humana, de costumes, enfim. Esta ausência de elementos decorativos, criando o ambiente indispensável à movimentação dos personagens, concorreu também em grande parte para desbotar-lhes os retratos.”

Jornal do Recife (Recife, PE),4/10/1908, número 225, página 1, sexta coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/705110/52247

Urbano Duarte (1855–1902)

Memórias Póstumas de Brás Cubas

“As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um livro de filosofia mundana, sob forma de romance. Para o romance falta-lhe o entrecho, e o leitor vulgar pouco pasto achará para sua imaginação e curiosidade banais.

[…]

“Em suma, a nossa impressão final é a seguinte: ― A obra do Sr. Machado de Assis é deficiente, senão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o verdadeiro problema que se propôs a resolver e só filosofou sobre caracteres de uma vulgaridade perfeita; é deficiente na forma, porque não há nitidez, não há desenho, nem bosquejos, não há colorido, mas pinceladas em excesso.”

Gazetinha (Rio de Janeiro, RJ), 2/2/1881, número 33, página 2, segunda e quarta colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/706850/250

Pedro do Couto

“A psicologia, Machado de Assis a tem, qual uma solteirona bisbilhoteira que está a par do que vai pela casa alheia.

“Nenhum traço forte sobre as paixões humanas, individuais ou coletivas, e só e só, pequenas referências aos achaques, aos tiques, aos costumes de seus personagens. E isto é a psicologia que se requer de um mestre? Aliás, só a podem ter o que dispõem de cultura científica, e esta Machado não tinha.

[…]

“Quanto aos fenômenos morais e sociais que em todas as celebrações atuam, e especialmente nas mais desenvolvidas, Machado de Assis não mostra, em nenhum livro, deles ter sequer conhecido a existência. Dir-se-ia que longe deles, isento de sua influência, o escritor se achava.

“Ora, quando é sabido como a literatura, as artes refletem o estado de civilização, quando é sabido que pelas obras deste se pode até certo ponto reconstituir um período social, não se deve admitir que um escritor da nomeada de Machado de Assis não deixe entrever em sua vasta obra nenhum sinal do momento em que ele viveu.

“Os fatos sociais são postos à margem, nem indiretamente mesmo eles se fazem sentir.

[…]

“De seus romances não há tipos que fiquem, como os deixou Era de Queirós; não há costumes de um povo, porque estes não o descreveu o escritor; não há paisagens a admirar porque estas não as pintou ele. Só e só, boa linguagem.”

Almanaque Garnier para o Ano de 1910, páginas 380 e 381, João Ribeiro, Rio de Janeiro (RJ).

http://memoria.bn.br/DocReader/348449/5011

Houve outros. Mas somente dois críticos literários extrapolaram todos os limites aceitáveis ainda no tempo de vida de Machado, ambos por motivo idêntico: o inconformismo e a raiva de terem sido alvos do autor, na função de crítico literário, quando ainda estavam no início de suas carreiras como escritores.

O crítico literário Machado de Assis

Machado exerceu a função de crítico literário entre 8 de outubro de 1865 (Ideal do crítico, no Diário do Rio de Janeiro) e outubro de 1879 (A nova geração, na Revista Brasileira).

Nos dois casos de rivalidade imortal, o autor cometeu, no primeiro, o erro supremo de um crítico, ao sugerir ou afirmar explicitamente ao colega criticado: “Você não serve para isso”.

Não há desqualificação maior, ainda mais quando dirigida a um novato, cuja ânsia de aprovação só se equivale à sua arrogância quanto ao valor da futura contribuição ao campo onde acaba de entrar ― especialmente no caso dos escritores, seres humanos conhecidos pelo equilíbrio psicológico e pela serenidade emocional.

No segundo caso, a crítica de Machado, embora menos radical, ainda assim afirmava que o autor deveria esquecer a produção passada e recomeçar, após ter publicado quatro livros de poesia, como se fosse um iniciante.

Que escritor não considera essa sugestão uma humilhação pública?

Os colegas criticados e futuros vingadores: Silvio Romero e Múcio Teixeira.

Como as vinganças foram caprichadas, extensas nas críticas e ricas nos insultos, este post tratará de Sílvio Romero, e o segundo de Múcio Teixeira.

A crítica de Machado a Sílvio Romero

A primeira iniciativa partiu de Sílvio Romero, então escrevendo como “Silvio Ramos”. Em maio de 1870, no jornal recifense A Crença, Sílvio criticou o novo livro de poemas de Machado de Assis no artigo A Poesia das “Falenas”, por seu “lirismo subjetivista” e “humorismo pretensioso”.

Três anos depois repetiu essas qualificações em artigo do jornal recifense O Movimento. O primeiro texto não se encontra disponível on-line, mas o segundo, intitulado A poesia de hoje, uma crítica veemente ao romantismo (“decaída escola”), foi reproduzido em Cantos do Fim do Século, a estreia de Sílvio Romero na poesia, em 1878.

Cantos do Fim do Século, página 242, Sílvio Romero, Rio de Janeiro (RJ) — https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/25975

Machado de Assis, na época, se inseria na escola duramente criticada por Romero.

Veio o revide, em alto estilo, no ano seguinte (1879).

Machado de Assis, despedindo-se da função de crítico, escreveu o ensaio A Nova Geração na Revista Brasileira (Rio). Nele, depois de criticar a tese do ensaio de Sílvio Romero e de afirmar que aos artigos do crítico faltava estilo, sentenciou a respeito do livro de estreia do seu próprio crítico (negrito acrescentado):

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Os Cantos do fim do século podem ser também documento de aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e para tudo dizer numa só palavra, o Sr. Romero não possui a forma poética. Creio que o leitor não será tão inadvertido que suponha referir-me a uma certa terminologia convencional; também não aludo especialmente à metrificação. Falo da forma poética, em seu genuíno sentido. Um homem pode ter as mais elevadas ideias, as comoções mais fortes, e realçá-las todas por uma imaginação viva; dará com isso uma excelente página de prosa, se souber escrevê-la; um trecho de grande ou maviosa poesia, se for poeta. O que é indispensável é que possua a forma em que se exprimir. Que o Sr. Romero tenha algumas ideias de poeta não lho negará a crítica; mas logo que a expressão não traduz as ideias, tanto importa não as ter absolutamente. Estou que muitas decepções literárias originam-se nesse contraste da concepção e da forma; o espírito que formulou a ideia, a seu modo, supõe havê-la transmitido nitidamente ao papel, e daí um equívoco. No livro do Sr. Romero achamos essa luta entre o pensamento que busca romper do cérebro, e a forma que não lhe acode ou só lhe acode reversa e obscura: o que dá a impressão de um estrangeiro que apenas balbucia a língua nacional.

Revista Brasileira (Rio de Janeiro, RJ), dezembro de 1879, número 2, página 401.

http://memoria.bn.br/DocReader/139955/2835

Ao consumar essa vingança literária, Machado certamente não pensou nas consequências de ter sugerido ao novato que abandonasse a poesia. E elas vieram.

A vingança de Sílvio Romero

Não foi pouca.

Muito provavelmente, aquelas palavras impressas na Revista Brasileira atormentaram um bom número de noites de Machado, quando repousava a cabeça do travesseiro. Isso porque o escritor, com elas, criou o seu maior inimigo literário. De raras críticas em artigos pouco lidos, Romero evoluiu para uma obsessão que o levaria a dedicar um livro inteiro à depreciação da obra do Bruxo do Cosme Velho, dezoito anos depois.

Primeiro houve um aperitivo, em 1882, no livro O Naturalismo na Literatura:

. […] os mais nítidos representantes da romanticidade caduca, da vaporosidade martelante no Brasil, os srs. Machado de Assis e Luiz Delfino […]. Ora, Machado & Delfino, dois sobriquets [epítetos] da cauda romântica, dois infelizes desclassificados, erguidos agora em realistas… é demais! (página 24).

. A passagem de Émíle Zola para o sr. Machado de Assis é um destes saltos mortais da inteligência provocados pela lei dos contrastes. Depois de um talento, de um estilista, de um crítico sincero, de um romancista de força, de um homem, avistar um meticuloso, um lamuriento, um burilador de frases banais, um homenzinho sem crenças… é uma irrisão [um escárnio]! (página 37).

. Esse pequeno representante do pensamento retórico e velho no Brasil é hoje o mais pernicioso enganador, que vai pervertendo a mocidade. Essa sereia matreira deve ser abandonada (página 37).

. […] o sr. Machado de Assis é um desses tipos de transição, criaturas infelizes, pouco ajudadas pela natureza, entes problemáticos, que não representam, que não podem representar um papel mais ou menos saliente no desenvolvimento intelectual de um povo (página 38).

. O sr. Machado simboliza hoje o nosso romantismo velho, caquético, opilado, sem ideias, sem vistas… lantejoulado de pequeninas frases, ensebadas fitas para efeito. Ele não tem um romance, não tem um volume de poesias que fizesse época, que assinalasse uma tendência. É um tipo morto antes de tempo na orientação nacional (página 39).

. Sem convicções políticas, literárias ou filosóficas, não é, nunca foi um lutador. Esse auxiliar de todos os ministérios, esse rábula de todas as ideias, é, quando muito, o conselheiro da comodidade letrada (página 40).

. O autor de Brás Cubas, bolorenta pamonha literária […] (página 40).

. Continue a burilar frases inúteis, a produzir suas bombinhas da China, mas tenha o cuidado de conter-se na vacuidade embaumée [embalsamada] pelos elogios de seus comparsas inconsiderados (página 40).

O Naturalismo em Literatura, Sílvio Romero, São Paulo, 1882 — https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4748

Agora ponha-se na posição de um autor lendo essa série (inicial) de ataques impiedosos, e imagine as experiências de Machado durante um momento delicado da carreira, no qual precisou ser amparado psicologicamente por um amigo devido à receptividade insatisfatória a Memórias Póstumas de Brás Cubas, um ano antes (1881), conforme nos conta em tuíte a tradutora Flora Thomson-DeVeaux.

Após informar sobre a recepção fria ou mesmo hostil da crítica ao romance, Flora conta que Machado se ressentiu tanto dessa reação que o cunhado teve de reanimá-lo: “A justiça será feita, mais cedo ou mais tarde, você pode estar certo”.

https://twitter.com/ruivanorio/status/1268168617830559747

O pior estava por vir.

O prato principal demorou a chegar, mas veio recheado. No livro Machado de Assis ― Estudo comparativo de literatura brasileira (1897), Sílvio Romero desenvolveu sua visão pejorativa das obras de Machado e, para humilhá-lo, comparou seus textos com os do sergipano Tobias Barreto (1839–1889), afirmando ser este o verdadeiro escritor brasileiro digno da admiração dos literatos.

Em prosa, falada ou escrita, asseguro, no estilo fluente, imaginoso, poético, e no gracioso e humorístico, Machado de Assis não é superior a Tobias Barreto, é-lhe quase sempre inferior (página 95 do livro).

Machado de Assis ― Estudo comparativo de literatura brasileira, Sílvio Romero, 1897 — https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4476

Logo no prefácio, Sílvio Romero reconhece a motivação para a obra e a escolha do alvo único em suas críticas.

Uma vez, ele, num artigo que ficou célebre [A Nova Geração, 1879] e lhe abriu os braços da nova geração do tempo, escreveu que pelos anos de 1862 a 70 tinha sido inaugurado um movimento literário no Recife, cujo mérito eu tinha o sestro de exagerar demasiado. Foi isso em 1879 ou 80, e nas páginas da Revista Brasileira de então.

Não retruquei, e o faço agora (páginas 25 e 26).

Vamos ao conteúdo da vingança do crítico literário.

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1. Sílvio Romero e a poesia de Machado.

. Antes de mais nada é preciso adiantar desde logo que Machado de Assis não é um poeta (página 20).

. A índole do talento de Machado de Assis é inteiramente alheia à verdadeira poesia.

Nem lírico e nem épico poderá jamais ele ser (página 20).

. O estilo é nele rebuscado, cheio dos amaneirados do velho classicismo em decadência (página 22).

. […] Machado de Assis é um doce poeta de salão, pacato e meigo, se quiserem; porém mudo ou completamente gago para servir de companheiro a qualquer coração dolorido, a qualquer alma sedenta de emoção e verdade (páginas 35 e 36).

. Natureza sem turbulências, sem audácias, sem grandes lutas íntimas, sem preocupações sociais, eivado de um indiferentismo [uma indiferença] incurável, que seria olímpico se não fora algum tanto mórbido, sua poesia é um misto sui generis das principais correntes do tempo (página 78).

. Este poeta não faz sentir, nem convida a pensar; nas cordas do seu alaúde ou de sua lira não soam fortes e profundas as alegrias ou as mágoas da humanidade (página 37).

. Seus livros de versos são quase desconhecidos, mui poucos os leem, não se vendem, não correm (página 37).

. Na poesia nacional seu posto é de terceira ou quarta ordem (página 30).

. Como poeta o autor de Brás Cubas tem publicado três livros: Crisálidas em 1864, Falenas em 1869 e Americanas em 1875. São obras pálidas, frias, incolores (página 20).

. […] de todos os livros do autor fluminense o pior, o mais pálido, o mais insignificativo, o menos brasileiro, é justamente, exatamente aquele em que escolheu de preferência assuntos nacionais — as suas Americanas! Livro incolor a mais não ser.

É que o poeta fez ali obra de erudito, sem paixão, sem alma (página 19).

. [Sobre um trecho de Potira] Completamente chato, inteiramente nulo, como fundo e como forma. A linguagem é gramaticalmente correta, mas o estilo é detestável. Se tivéssemos sido, eu ou Tobias Barreto, que houvéssemos escrito aquilo, nós, a quem a parvoíce nacional conferiu uma espécie de privilégio para levarmos pancada, que sovas não nos desancariam a propósito de tais versos! (página 25).

. Os versos que deixei acima citados são do poemeto Potira, cuja data ignoro, mas aparece incluído nas Americanas em 1875. Pois bem, neste ano não haveria no Recife um poeta, por insignificante, que escrevesse versos daqueles, tão prosaicos, tão chatos, tão imprestáveis (página 26).

. As Americanas já mostrei que são um verdadeiro desastre, quase de princípio a fim. Nas Crisálidas e Falenas abundam também as páginas imprestáveis (página 41).

. [Sobre um trecho de Americanas] Que linguagem, que feia prosa metrificada!

[…]

Ideias triviais com a roupagem surrada de velhas figuras, de metáforas de quarta mão.

Não há vida, força, movimento, colorido, graciosidade, nem desenho e feição espontânea e natural.

Sente-se que esse não é o domínio do autor; ali está deslocado (página 23).

. Posso desde já afirmar: o autor das Crisálidas não é um notável poeta, não é mesmo um poeta, posto tenha escrito muitos versos (página 29).

. [O poema Flor da Mocidade] É banal e malfeito, pouco pensado, pouco sentido e pior executado; é um triolet [poema repetitivo de 8 versos] de colegial, insignificante, nulo (página 41).

2. Sílvio Romero e a ficção de Machado de Assis.

. Papéis Avulsos, Várias Histórias, Brás Cubas, Quincas Borba… são amostras desse humorismo pacato, desse pessimismo livresco e intencional, que atacou o espírito público, antes que ele tomasse gosto e jeito para passar adiante (página 127).

. [Sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas] Tirem do livro aquela patacoada dos pequenos capítulos com títulos estapafúrdios e aquelas reticências pretensiosas, que aparecem amiúde, e diabos me levem, se ali há o humor digno deste nome (página 139).

. Seu tipo mais complicado, e que poderia iludir, é o lúcido e jeitoso Brás Cubas, que não passa de uma espécie de Primo Basílio, cuja Luiza é uma Virgília muito reles, cujo Paraíso é uma casinha na Gamboa, cujas entrevistas [conversas] com a amante adúltera não têm graça, nem poesia, nem aquela frágua [aquele ardor] de realismo que se nos deparam nas páginas do romance português, evidentemente imitado sem necessidade pelo autor brasileiro.

A carcaça dos dois livros é a mesma; o arranjo externo apenas é que difere. O fundo é idêntico; o mesmo adultério pulha, o mesmo marido doutoral e fraco, o mesmo namorado, apenas com a liberdade de ser ele próprio que narra as suas aventuras em memórias póstumas, as mesmas passadas, menos o vigor da verdade pegada em flagrante, a mesma Virgília igual a Luiza, o mesmo Paraíso, apenas sito nas proximidades do Saco do Alferes… (página 139).

. O estilo de Machado de Assis não se distingue pelo colorido, pela força imaginativa da representação sensível, pela movimentação, pela abundância, ou pela variedade do vocabulário. Suas qualidades mais eminentes são a correção gramatical, a propriedade dos termos, a singeleza da forma (páginas 81 e 82).

. O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloquente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. “Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada”, disse-me uma vez não sei que desabusado num momento de expansão, sem reparar talvez que me dava, destarte [desta maneira], uma verdadeira e admirável notação crítica.

Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce tanto suas ideias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão de um perpetuo tartamudear (páginas 82–83). [Observação: Machado de Assis era gago.]

. Com um punhado de ideias pouco extensas, com um vocabulário que não é dos mais ricos, com uma imaginação sem altos voos, faz muitas e repetidas voltas em torno dos fatos e das noções que eles lhe deixam na inteligência, orientada por um imperturbável bom senso, que lhe supre a observação, que não é muito variada, nem muito rigorosa (página 86).

. São os iniciados num certo pessimismo de pacotilha [um grupo de românticos idosos], que andam aí a exibir-se em galerias e memórias póstumas, em diários de sacristães, em palestras entre santos e outras baboseiras doutorais e insulsas.

Neste singular grupo o fecundo Machado de Assis é chefe de fila (página 127).

. Enquanto a péssima escola [a escola de Recife, à qual pertenciam Sílvio Romero e Tobias Barreto], que iniciou a crítica livre no Brasil desbravava o terreno, estudando fatos e pregando ideias, como estas citadas, o autor de Brás Cubas entregava-se ao humorismo de almanaque, ao pessimismo de fancaria, que traz iludidos uns poucos de ingênuos que acham aquilo maravilhoso (página 130).

. O tão apregoado cultivo do humor no autor do Iaiá Garcia não é natural e espontâneo; é antes um resultado de uma aposta que o escritor pegou consigo mesmo; é um capricho, uma afetação, uma coisa feita segundo certas receitas e manipulações; é, para tudo dizer numa palavra, uma imitação, aliás pouco hábil, de vários autores ingleses (página 131).

. O humor de Machado de Assis é um pacato diretor de secretária de Estado, e o horrível de seus livros é uma espécie de burguês prazenteiro, condecorado com a comenda da rosa…

Nem interessam e nem metem medo.

Podem figurar nas páginas das folhinhas e almanaques entre as pilhérias contra as sogras (página 133).

. Lançando mão do artificio de encaixar a brincadeira em malas de defuntos, acredita que está a fazer humor. É por isso que quase todos os seus contos ou romances são ultimamente umas histórias de papeis velhos, de memórias póstumas, de diários de suicidas, de sacristães que deixaram narrativas, de velhos peraltas que escreveram recordações, etc, etc. (página 136).

3. Sobre o autor.

Tendo começado os seus primeiros ensaios literários aos vinte anos, em 1859, até aos trinta nada produziu que tivesse sério valor. Suas obras até 1869 são de ordem tão inferior, que ele mesmo hoje as oculta em sua quase totalidade.

É o caso de Desencantos, fantasia dramática, de 1861, d’O Caminho da porta e d’0 Protocolo, de 1863, d’Os Deuses de casaca, de 1865, e das próprias Crisálidas, do ano anterior (página 8).

. Machado de Assis não tem o talento de descrever; o pendor narrativo predomina de muito em sua índole de artista (página 50).

. […] a prova mais evidente da negatividade de sua obra, é que não teve continuadores, não teve nem poderá ter discípulos; porque ele nada inventou, não produziu uma só ideia, que fosse um centro em torno do qual gravitassem as almas (página XIV da introdução).

. É inútil buscar nele uma psicologia profunda ou vastos assuntos, não é nem um romancista de nossa escola realista ou idealista, nem até um verdadeiro romancista, e menos ainda o que costumamos chamar um artista (página 134).

*

Não ficou por isso. Houve até ameaça de revelar ao público os bastidores da vida de Machado:

Quem nos garante não ter o nosso Machado de Assis o seu quinhão entre aqueles que é de bom estilo elogiar para inglês ver? Neste particular sei de coisas que não podem aparecer num estudo de crítica sem o desfigurar numa espécie de bisbilhotice.

Só em algumas memórias póstumas, como as de Brás Cubas, poderiam caber. (página 6).

E vamos parando aqui, de cansaço pelo excesso de maledicência, na página 140 de um livro com 347 páginas de texto.

Sílvio Romero era uma espécie clássica de inimigo: insaciável. Nove anos depois, em 1906, aproveitou nova obra de sua autoria, Outros Estudos de Literatura Contemporânea, para aprofundar a depreciação do valor da obra de Machado.

Outros Estudos de Literatura Contemporânea, Sílvio Romero, 1906 — https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4490

O pretexto: o lançamento da obra Poesias Completas de Machado de Assis. Pode-se imaginar o autor salivando ao escrever estas primeiras linhas, em artigo homônimo de apenas seis páginas:

. Destarte [Desta maneira] mais facilmente e, por assim dizer, em flagrante se tem a prova da pouca variedade de suas tintas, da pequena riqueza de seu vocabulário, da pouca nitidez de sua paisagem, dos parcos limites de sua imaginativa, do pouco ardor de sua emotividade, dos poucos recursos de seu estro em suma (página 8).

. […] ele não progrediu: é sempre o mesmo tom, a mesma falha de emoção, os mesmos processos, os mesmos tiques, tudo realçado pela mesma e geral correção da forma (página 9).

. Por isso, as melhores peças da coleção são traduzidas: O Corvo, de Edgar Poe, apesar dos seus quarenta e sete quês; O Canto XVV do Purgatório, de Dante, a despeito de quarenta e seis idens [outros usos do quê]; Os animais iscados de peste, de La Fontaine, malgrado, dezoito idens; To be or not to be, de Shakespeare, não obstante sete idens.

Falo nisto, entre parênteses, por ser o poeta proclamado um dos mais corretos, senão o mais correto do Brasil, e não seria muito exigir dele um uso mais moderado daquela partícula.

Em Machado de Assis nota-se verdadeiro desperdício no caso. Há em seus romances pequenos, capítulos de dez a doze linhas com seis a oito quês.

Igual defeito nota-se nas poesias, Nas Ocidentais, por exemplo, Mundo Exterior, em catorze versos, tem oito; A Mosca Azul, em dezesseis quadras, dezoito; os vinte e quatro versos dedicados a Victor Hugo (pág. 325) onze; Perguntas sem resposta, em dezessete quadras, dezesseis, e assim por diante (página 9).

. Romancista, teve outros mestres, outros guias [em relação à formação poética], formou-se num período de mais alento, assumiu uma envergadura mais possante, sem desmentir, contudo, a característica fundamental do espírito, da individualidade do homem: a ausência da força, a falta de paixão, compensadas pela finura da análise, pelo aprumo da forma, pela delicadeza dos tons (página 12).

*

A propósito, Sílvio Romero abandonou de fato a poesia logo após a rejeição da crítica literária ao seu segundo livro, Últimos Arpejos, em 1883 ― quatro anos somente após o artigo fatídico (e profético) de Machado de Assis.

Talvez essa desistência tenha acirrado um pouquinho o seu ânimo contra o escritor.

E apesar do extraordinário esforço e tempo empregados para depreciar o valor de Machado de Assis, a repercussão dos ataques do crítico foi mínima. O texto a seguir, de Arthur Azevedo, exemplifica esse efeito.

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Sílvio Romero, o reputado crítico brasileiro, publicou um livro de trezentas e tantas páginas com este título: Machado de Assis, e este subtítulo: Estudo comparativo de literatura brasileira.

Sem desconhecer que Machado de Assis é um dos chefes da nossa intelectualidade, o autor da História da literatura brasileira pretende apeá-lo da eminência onde o colocou a “admiração incondicional” do que ele chama o nosso “beatério literário”.

Trabalho baldado [inútil]. Façam as comparações que quiserem: o glorioso autor das Memórias Póstumas do [sic] Brás Cubas é, por enquanto, o primeiro homem de letras que o Brasil tem produzido.

E folgo de expender essa opinião sincera e formal no periódico tantas vezes honrado pela sua pena ilustre, nas mesmas colunas onde pela primeira vez apareceram alguns de seus incomparáveis contos, e essa obra-prima Quincas Borba, que é a continuação e o complemento das Memórias póstumas.

Sílvio Romero é um grande talento, não há dúvida, mas não me parece que se saia bem dessa tarefa de iconoclasta.

Elói o Herói [Arthur Azevedo].

A Estação (Rio de Janeiro, RJ), 17/12/1897, número 23, página 4, segunda coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/709824/1881

No segundo e último artigo da série conheceremos a inacreditável série de folhetins de Múcio Teixeira, que vasculhou toda a obra de Machado à procura de erros (e encontrou: centenas deles), motivado pelo desejo de vingança contra o conselho do então crítico literário de recomeçar a carreira poética, após quatro livros publicados.

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.