OMBUDSMAN: Por que fazemos o que fazemos?

Uma análise sobre como conectar a diversidade e regeneração da vida com a produção jornalística

Rodrigo Westphalen
Redação Beta
9 min readJun 30, 2022

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A vida pode nos ensinar muito sobre como prosperar em relações complexas (Foto: freestockcenter/Freepik.com)

Quando assumi o compromisso de fazer a “autocrítica” da Beta Redação ainda não entendia completamente o que isso significava, nem o quão livre ou restrito era o gênero discursivo empregado pelos ombudsmen. Também não tinha ideia, ainda, do que chamaria atenção ao olhar criticamente os textos publicados pela Beta Geral. Seriam erros, omissões, tendenciosidades, estereótipos, ou seriam questões de linguagem, com problemas de concordância, coesão e coerência?

A verdade é animadora. Os principais problemas foram de outra ordem, mais complexa: de design, da responsividade das imagens em dispositivos móveis, do melhor uso de recursos visuais na constituição da matéria, de pequenas brechas que geravam curiosidade e careceriam de maior detalhe. Também foram do uso prolixo de termos técnicos e médicos, da estrutura narrativa ou da amplitude do objeto de investigação da reportagem… Todos, diria eu, constituem problemas avançados.

As críticas — subsidiadas pelo interessantíssimo e disposto Conselho de Leitores, proposto na atividade acadêmica para dar origem a publicação da primeira, segunda e terceira colunas de ombudsman — partem, assim, de um grau alto de exigência, na procura ideal do que se consideraria excelência.

Por que — e como — estamos fazendo o que fazemos?

Vamos tentar construir esta resposta. Primeiramente, importa situar que o princípio ético de transparência, implicado na tática de publicização tanto do que surpreende quanto do que deixa a desejar nos produtos comunicacionais de um veículo de imprensa é ainda pouco compreendido e disseminado. Além disso, em qualquer canto que se tente instituir a prática do ombudsman, parecerá, pelo menos de início, no choque com a cultura da “redação caixa-preta”, apenas uma forma de intimidação dos repórteres. Um pouco… também acaba sendo. Mas considere esta uma pressão que pode — e deve — ser conduzida de forma regenerativa e coletivista.

Quando penso em algo regenerativo, refiro-me ao que melhor desconstrói e reconstrói. Algo que mimetize a vida no seu processo de gerar a si mesma de outra forma, em busca de continuar seu processo de diversificação, recombinação e codependência dinâmica. O que não se regenera, se diversifica e se adapta, desaparece — e nada, por fim, é estático ou uniforme.

Ensinam os agrônomos e agroecologistas que a monocultura degrada o solo. Por isso creio que esse ensinamento serve de metáfora para as formas de lidar nas relações humanas e nas relações que estabelecemos com nossa próprias ações, habilidades e profissão. A diversidade estabiliza e aumenta a resiliência de um sistema, enquanto o tensionamento e a regeneração o mantém vivo e em contínua adaptação.

Então, muito do benefício dessa autocrítica proporcionada no espaço do ombudsman está em ter uma míriade de perspectivas contribuindo regenerativamente com um produto nunca finalizado: a formação humana e social das pessoas envolvidas na relação de comunicação estabelecida pelo veículo. Esse é o foco, afinal. Pessoas precisam estar no centro. É em função de sobrevivermos melhor e sermos melhores uns com os outros que exercitamos o diálogo e a coletividade do nosso trabalho.

Mas interessa também colocar nesta equação que nosso cérebro é limitado por viéses, cegueiras parciais, autoenganos e mecanismos de defesa diversos que tornam a autoanálise um processo difícil, que costumamos evadir ou atropelar — evitando fazê-lo por nos supormos bem resolvidos, ou evitando fazê-lo por nos supormos péssimos e incorrigíveis. Ambos, provavelmente, estão errados, e apenas degradam o ambiente onde poderia florescer nosso aprimoramento técnico, ético, sensível e empático. É só em inúmeros esforços de distanciamento, cientes das próprias tendências e incoerências, e em constante diálogo com sujeitos diversos é que podemos nos colocar em processo de melhoria constante.

Tal processo, aliás, é ainda mais central hoje para o mercado de trabalho. Numa perspectiva industrial, aponta para o aumento do lucro pela reprodutividade; já numa perspectiva pós-industrial, da informação e do trabalho criativo, a produtividade se mede não em termos de quantidade, mas em qualidade incremental. E a definição de qualidade, ao menos nos limites deste texto, significa a capacidade de desempenhar uma função específica no sistema social que beneficia de forma eficiente todos os sujeitos envolvidos — ainda que faça emergir alguns desconfortos.

Nas empresas de tecnologia de software existem metodologias chamadas “ágeis” que tem como característica encurtar os ciclos de avaliação interna e externa da equipe que desenvolve projetos, adaptando o trabalho e o produto de forma incremental. Essa é a lógica do “beta contínuo”, que junto com a centralidade no usuário desponta com a web 2.0, como destaca o acadêmico Tim O’Reilly. E até pelo nome de nosso veículo — a Beta Redação — é preciso recordar disso para constantemente pensar nossas relações de trabalho no jornalismo.

De certa forma, é nessa mesma direção que o ombudsman fica encarregado de fazer uma autocrítica constituída de múltiplas perspectivas, em um diálogo aberto com os apontamentos de leitores e leitoras. Um trabalho que, se não conduzido com propósito de regeneração — e se não interpretado com essa perspectiva — pode soar intrusivo, pedante e coercitivo.

Ou seja, se repórteres, editores e professores não estiverem dispostos a construir de modo negociado e colaborativo, ocorrerão constrangimentos silenciosos, não-evidentes. Exemplo disso são as desautorizações que uma editora da Beta Geral relatou, no qual uma pessoa repórter não aceitou qualquer sugestão por achar que ela, como colega universitária, não teria mais competência ou autoridade para intervir na sua produção.

E o que podemos fazer melhor?

É interessante trazer, na última coluna, como uma retrospectiva de bastidores, relatos das estudantes que atuaram como editoras na Beta Geral neste semestre, Andressa Morais e Milena Silocchi. A princípio, o principal problema enfrentado por elas foi o não cumprimento por parte dos repórteres aos prazos acordados para que fosse possível analisar os textos de maneira cuidadosa.

Ao mesmo tempo, parece que as editoras desconheciam até onde podiam criar limites, estabelecer critérios e tomar decisões sobre os textos de colegas sob sua edição — ou seja, até que ponto podiam intervir nos produtos em nome de uma construção coletiva e corresponsável. Ou até, simplesmente, se poderiam não aceitar mais os textos após o período para fechamento. Andressa relatou que apenas mais perto do final do semestre começou a ter confiança e adotar uma atitude (ou postura) mais firme, enquanto Milena contou como as melhores reportagens foram construídas com repórteres que mantiveram diálogo constante, procurando solucionar em conjunto os entraves que se apresentavam.

Corresponsabilidade é isso: se alguém se omitir, ainda assim será responsabilizado pelo resultado. E a flexibilidade amistosa das editoras pode, em algum momento, comprometer o resultado coletivo e prejudicar a percepção sobre o trabalho delas, inclusive. Do mesmo modo é corresponsável essa crítica do ombudsman, que não é sobre pessoas, mas sobre relações de trabalho, aprendizagem e comunicação. O essencial é entender que o trabalho de repórter, como todos os outros, é apenas parte de um processo, de algo maior do que ele/ela. É um produto da Beta Geral, da Beta Redação, do curso de Jornalismo e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. É produto coletivo, ainda que assinado pelo devido esforço de alguns indivíduos.

Por tudo isso, é importante que as avaliações feitas pela equipe tenham múltiplas direções. Explicando um pouco como funciona nossa dinâmica de aulas, ao final do primeiro trimestre avaliativo é proposto um feedback colegiado, entre repórteres, ombudsman, editores e professores. Além disso, em todos os instrumentos de pauta, quem edita produz feedbacks sobre as reportagens e as reuniões de pauta. Os professores, Micael Vier Behs e Cybeli Moraes, avaliam a equipe a partir das entregas e da discussão nas atividades e, ao final do semestre, o grupo pode avaliar a atividade acadêmica que muda constantemente a partir de todos estes retornos.

No meio de tudo isso, porém, percebi neste semestre que as editoras não receberam feedbacks mais pontuais por parte dos repórteres sobre seu trabalho, exceto de maneira informal. Uma sugestão levantada por Andressa seria então a possibilidade de ter retornos formais de repórteres como parte de suas avaliações, como parte desse processo de tornar transparentes os altos e baixos das relações de aprendizagem laboratorial e como forma, principalmente, de melhorar o próprio trabalho. Encurtar os ciclos avaliativos e tornar mais transparentes as impressões geradas e os esforços feitos (ou a ausência, quando for o caso).

Do singular ao universal

Agora, partindo para o olhar das reportagens da semana, uma avaliação deste ombudsman segue incólume: os temas pautados são excelentes. Todos são interessantes, diversos, inclusivos e bem apurados. Desde a primeira coluna, esse elogio se mantém. E desde a primeira coluna, um outro apontamento também permanece: os textos escondem suas pedras preciosas sob camadas de dados e informações importantes, porém frias e generalistas.

Eduardo Meditsch, professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em certo momento de 1997 palestrou sobre o jornalismo como forma de conhecimento. Desta ocasião foi publicado um artigo que aponta os saberes produzidos pelo jornalismo como característicos por possuírem centralidade no singular. Ou seja, é a partir do singular que o jornalismo busca tensionar características universais e dar sentido aos acontecimentos.

Ao contrário, porém, muitas de nossas matérias da Beta acabaram enterrando o que têm de singular sob muitas problematizações universalistas. Na matéria sobre o “lixo verde”, de Torriê Aliê, o mais extraordinário são os tais “pilas verdes” — não o maquinário, ainda que seja interessante. O maquinário estende a pauta sobre relações do poder público com a agricultura familiar e o reaproveitamento de resíduos a outros municípios, mas poderia vir em um segundo momento.

A matéria de Necchi e Tedesco apresenta vivências muito interessantes, mas de forma ainda muito distante e, mais uma vez, enterradas na metade final do texto. A reportagem tenta dar conta de um tema amplo como o abuso de drogas na pandemia e acaba usando as fontes de forma secundária, apenas ilustrando os dados. O problema abordado por Arthur Schneider e Gabriel Ferri também poderia ser melhor trabalhado se fosse mais centrado nas pessoas que serão afetadas pela mudança comentada no texto.

Agora, em forma de mais uma pergunta, reitero e reformulo a ideia que dá título a esta coluna: por que não focamos no que podemos contribuir de forma autêntica, em meio ao mar de informação no qual vivemos? É contando histórias de pessoas, para só então buscar dados que contextualizem os quadros mais amplos que conseguiremos problematizar as estruturas sociais que ali se atravessam.

Algumas matérias não contam histórias pessoais — e aí, é essencial fazer um excelente uso do conhecimento das fontes, costurado com dados, como Gabriel Reis fez no texto sobre os carros elétricos, puxando um gancho de solução, ainda que incompleta e apenas provocativa.

Mas a pergunta anterior se direciona às reportagens que trazem histórias e vivências impactantes, mas não dão a estas o devido destaque na hierarquia das informações. A matéria de Vitória Pimentel, de excelente tema e fundamentação, é um exemplo disso. A repórter apresenta histórias locais muito boas, mas o que promete no título e na abertura do texto é grande demais — um panorama sobre ESG no Brasil.

De forma semelhante, Luana Ely Quintana e Clarice Almeida conseguiram uma fonte com uma história emocionante de transformação a partir do diagnóstico de transtorno do espectro autista do filho, mas a soterraram após uma descrição institucional dos serviços de musicoterapia fornecidos por uma instituição. Cada parágrafo do texto é excelente, mas a arquitetura da informação poderia ter priorizado a vivência extremamente pessoal e edificante da personagem e seu filho, expandindo para o quadro mais amplo da arteterapia em um segundo momento.

Responder ao desejo, mostrar ao invés de ilustrar, pré-apurar

Por fim, como últimas contribuições nestas linhas finais de meu trabalho como ombudsman da Beta Geral em 2022/1, registro um destaque sobre o texto de Isaías Rheinheimer, que noticia o reconhecimento de uma instituição de educação ambiental e lazer como patrimônio histórico e cultural de Estância Velha. A notícia aborda rapidamente o trabalho da instituição e acaba por gerar um desejo imensurável de conhecermos detalhes da entidade. Não posso dizer que a notícia é incompleta, mas, definitivamente, ela nos deixa quase que exigindo uma grande reportagem sobre o lugar.

Anoto também mais um destaque, desta vez feito em aula feito pela professora Cybeli Moraes sobre uma relação métrica que serve de insight para levarmos como prática cotidiana: as avaliações das pautas podem ser tão ruins como as das matérias finais, ou podem ser piores que as das matérias finais (ou seja, é possível ter um salto de qualidade entre elas, e isso ocorre com alguma frequência). Mas o inverso não é verdadeiro: em nenhum caso uma pauta excelente levou a uma matéria ruim.

E despeço-me com mais um registro, que torço ser corrigido daqui para frente nas próximas edições da Beta: é notório que ao longo do semestre poucas matérias trazem imagens de acervo pessoal das fontes ou fotografias autorais dos repórteres. Esse é um diferencial importante para reforçar o caráter de singularidade do conteúdo do texto. Além disso, deixo duas análises sobre o uso dos bancos de imagens e de como eles nos tornam reféns de: 1) fazer nossas matérias cuidadosamente apuradas ficarem com cara de postagem de um blog genérico; e 2) a maioria de nossas matérias serem ilustradas por estadunidenses e europeus brancos, não mostrando a diversidade de nossa produção.

Depois desse comentário, rezo para que os cogumelos em destaque nessa publicação sejam do hemisfério sul. 😅

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