A crítica literária vingativa e o seu maior alvo no Brasil: Machado de Assis — 2. A vingança de Múcio Teixeira

Sérgio Barcellos Ximenes
55 min readJun 21, 2020

--

Lista de artigos | Livros na Amazon

Academia.edu | Medium | OneDrive | Scribd | Twitter

______________________

Outros artigos sobre Machado de Assis

A cobrança post-mortem de um professor negro a Machado de Assis pela falta de protagonismo na causa abolicionista

A crítica literária vingativa e o seu maior alvo no Brasil: Machado de Assis — 1. A vingança de Sílvio Romero

Machado de Assis e o Negro: um artigo de 1940, ainda atual

Música Inglesa (1888): uma série inédita de artigos de Machado de Assis em jornal escravocrata?

O Mestre (amargurado): um artigo de 1906 sobre Machado de Assis

Dom Casmurro: A crítica literária e a “traição” de Capitu: 1. José Veríssimo: o primeiro a suspeitar da história de Bentinho (1900) | 2. Francisco de Paula Azzi: a primeira defesa categórica da fidelidade de Capitu (1939)

Memórias Póstumas de Brás Cubas: 1. A segunda e desconhecida publicação do romance (1880) | 2. Uma crítica inédita (1881) | 3. Você conhece o romance Memórias Fóstumas de Brás Cubas? | 4. A recepção crítica ao romance (1880–1882)

______________________

Resumo

Tema da série: as vinganças de Sílvio Romero e Múcio Teixeira contra Machado de Assis, motivadas por avaliações negativas de suas obras feitas pelo romancista na condição de crítico literário.

O crítico literário Machado de Assis: função exercida entre 8 de outubro de 1865 (Ideal do Crítico, no Diário do Rio de Janeiro) e outubro de 1879 (A Nova Geração, na Revista Brasileira).

A crítica de Machado a Múcio Teixeira: publicada na Revista Brasileira, artigo A Nova Geração; aconselhava Múcio a esquecer os quatro livros de poesia publicados e a começar de novo, abandonando a frieza e corrigindo os defeitos de seus poemas.

A vingança de Múcio Teixeira: especificação mais de 300 erros e impropriedades supostamente cometidos por Machado nos poemas de suas Poesias Completas, incluindo repetições, erros gramaticais e violações da arte poética; além da desqualificação do seu alvo como romancista e tradutor.

Texto inédito on-line (neste artigo): a série de cinco folhetins em que Múcio Teixeira tenta depreciar Machado de Assis como poeta, romancista e tradutor.

________________________

A crítica de Machado a Múcio Teixeira

O escritor e crítico literário Múcio Teixeira (1857, RS — 1926, RJ) foi o segundo e mais importante inimigo que Machado de Assis conseguiu para si mesmo, ao publicar o ensaio A Nova Geração, texto de despedida da crítica literária.

O ensaio saiu na Revista Brasileira em dezembro de 1879; a vingança de Múcio viria 22 anos depois, em 1901. Uma vingança fria, longa e caprichada. E a mais detalhista já conhecida contra um importante escritor brasileiro.

No caso de Sílvio Romero, Machado enunciou a pior e mais arriscada sentença possível para um crítico literário: “Você não é e jamais será um poeta”.

No caso de Múcio Teixeira, a crítica de Machado, embora menos radical, ainda assim afirmava que o autor deveria esquecer a produção passada e recomeçar, após ter publicado quatro livros de poesia, como se fosse um iniciante. A mensagem: “Você ainda não é um poeta”.

Abaixo, os trechos importantes da crítica de Machado a Múcio.

“A qualidade é boa, mas o uso deve ser discreto; e eu creio que o Sr. Múcio Teixeira não resiste a si mesmo. Há movimento em suas estrofes, mas há também demasias; o poeta não é correto; falta-lhe limpidez e propriedade. Quanto a comoção verdadeira domina o poeta, tais defeitos desaparecem, ou diminuem; mas é rara a comoção nos versos do Sr. Múcio Teixeira.”

Revista Brasileira (Rio de Janeiro, RJ), dezembro de 1879, número 2, página 410 — http://memoria.bn.br/DocReader/139955/2835

Repare no trecho “o poeta não é correto”, na palavra “defeitos” e na sugestão de frieza nos poemas. Esses pontos formariam o núcleo da crítica destrutiva de Múcio a Machado, 22 anos depois. Aquilo de que Múcio fora acusado por Machado, ele veria em seu acusador.

O veredicto final de Machado veio após a reprodução de duas estrofes finais de um soneto, na quais considerava existir sinceridade, embora, mesmo assim, denominasse os versos como “um pouco vulgares”.

O texto do veredicto: “Se algum conselho lhe pode insinuar a crítica, é que dê costas ao passado”.

Revista Brasileira (Rio de Janeiro, RJ), dezembro de 1879, número 2, página 410 — http://memoria.bn.br/DocReader/139955/2836

A vingança de Múcio Teixeira

Sílvio Romero e Múcio Teixeira eram tipos psicológicos opostos: um generalista e o outro detalhista. Ambos, em excesso.

Sílvio ofereceu poucos exemplos para fundamentar suas numerosas críticas genéricas, sempre cuidadosamente redigidas para gerar citações “matadoras” destinadas a humilhar o seu alvo literário, na esperança de vê-las se disseminarem até que caísse do pedestal o ex-crítico descrente de seu valor como poeta.

Entretanto, por causa de seu estilo de argumentação, a vingança literária não teve poder de convencimento.

Já Múcio estudou a obra de Machado página a página, visando dela extrair centenas de exemplos de erros e impropriedades, e confiando que eles proveriam a sustentação de seu juízo pejorativo sobre Machado. Não produziu tantas citações “matadoras” quanto Sílvio, mas fundamentou melhor o seu ponto de vista porque nenhuma afirmação crítica vinha desacompanhada daquilo que ele acreditava serem provas de deficiências literárias de Machado.

Para quem pretende convencer, o estilo de argumentação de Múcio era o mais apropriado. A baixa repercussão da série de folhetins, seu único ataque de respeito, além das críticas recebidas de apreciadores de Machado, deve ter frustrado bastante o vingativo escritor.

Sílvio Romero atacou tanto a poesia (o ponto fraco) quanto a ficção (o ponto forte) de Machado. Já Múcio privilegiou o alvo fácil, onde pôde ostentar todo o seu conhecimento de versificação e arte poética.

Apesar da motivação subjetiva da série de cinco folhetins, ela passou a assumir valor objetivo para os leitores do passado e do presente devido à exposição detalhada dos efeitos sonoros das vogais e consoantes em textos poéticos, além de outros aspectos da arte de composição de versos nos quais Múcio baseou sua crítica à poesia de Machado.

Para conhecer as bases do conhecimento compartilhado por Múcio, consulte as obras a seguir (de alto valor para os poetas amadores e profissionais):

Tratado de Metrificação Portuguesa (1858), obra de Antônio Feliciano de Castilho.

https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=82164

Tratado de Versificação (1905), obra de Olavo Bilac e Guimarães Passos, que reproduz trechos do Tratado de Castilho.

https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4711

O texto da crítica de Múcio é reproduzido em parte (apenas 6 páginas, da 721 à 726) no livro Machado de Assis: a poesia completa, organização e fixação por Rutzkaya Queiroz dos Reis (EdUSP e Nankin, São Paulo, 2009 — veja o índice no destino do link a seguir).

https://www.edusp.com.br/wp-content/uploads/2018/02/9788531412134.pdf

Aqui ele é reproduzido por completo porque nenhuma página da Web ou obra literária oferece esse material, e também porque no site do MEC destinado a Machado de Assis sequer aparece menção a Múcio Teixeira na seção de Críticas.

A propósito da crítica ao tradutor Machado de Assis

Na primeira edição de Poesias Completas houve um erro tipográfico no título da tradução de um canto de Dante: onde deveria estar Inferno, apareceu Purgatório. Múcio aproveitou a oportunidade para desqualificar Machado como tradutor, afirmando que ele nem teria lido o original em italiano, e sim traduzido o canto de uma tradução para outro idioma, herdando assim o erro no título.

Conforme explica Izabbella Maddaleno em sua tese de pós-graduação em Letras intitulada Apropriação machadiana de A divina comédia de Dante (2019), Machado revelou amplo conhecimento da obra do poeta florentino, utilizando citações daquela obra em vários textos:

http://repositorio.ufjf.br:8080/jspui/bitstream/ufjf/10312/1/izabellamaddaleno.pdf

A página 66 do livro Dantesca Luso-Brasileira: subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de Dante Alighieri, de Giacinto Manuppella (1966) traz a história da publicação da tradução do Canto XXV. Apenas no volume das Poesias Completas se deu o erro tipográfico.

https://books.google.com.br/books?id=wp658NM432sC&dq="canto+xxv"+"dante"+"machado+de+assis"+purgatório&hl=pt-PT&source=gbs_navlinks_s

A tradução saiu originalmente em O Globo (25/12/1874, exemplar indisponível) e depois no periódico A Instrução Pública (em 28/2/1875). Abaixo, a imagem dessa segunda publicação, constando o título correto O canto XXV do “Inferno”.

A Instrução Pública (Rio de Janeiro, RJ), 28/2/1875, número 1, página 1, primeira coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/233048/1322

Outro erro tipográfico do livro, este de natureza humorística, pode ser apreciado neste vídeo do pesquisador Felipe Rissato, especialista na obra de Machado: https://youtu.be/PyzCMWzMOmc

Algumas citações extraídas da crítica de Múcio

. Por mais esforços que empregue, nunca jamais hei conseguido reler os seus versos, que são monótonos, a provocar bocejos.

. Há em todos os seus versos muito torneio mecânico, só não há poesia neles: é que os seus versos não saem da alma, nem do coração; saem-lhe sorrateiramente das paredes cranianas.

. Há no Sr. Machado de Assis um bom prosador a amparar um medíocre poeta.

. […] o prosador não é tão bom como me parecia, e o poeta é inferior a qualquer dos nossos poetas medíocres.

. Pode-se dizer dos versos de Machado de Assis o que o mestre da Noite do Castelo [ópera de Carlos Gomes] disse de Filinto [Elísio, pseudônimo de Francisco Manuel do Nascimento, poeta português]: desagradam e martirizam a qualquer ouvido, mesmo sem ser dos melindrosos.

. […] decrépito versejador.

. A sua maneira de poetar é fria e monótona; até nos assuntos mais ligeiros usa de processos pedantescos, como que pretendendo impor a aspereza de uma cadência forçada aos suaves encantos musicais da metrificação que mais se coaduna com a índole do nosso idioma.

. Conserve-se na secretaria [de Agricultura], mas não volte ao Parnaso.

. “E foi subindo, foi subindo acima…” [verso de Machado.]

Quereria, porventura, que subisse para baixo?

. Todo poeta, ou escritor de raça, deve ser do seu tempo e de seu país; além disso, tem de resolver um problema social ou humano. Machado de Assis nada disso fez até hoje. Contenta-se em resolver problemas no jogo de xadrez.

. Quais são os conhecimentos teóricos e práticos do Sr. Machado de Assis? Se ele nem sabe escrever com a precisa correção gramatical a própria língua em que pela primeira vez pediu pão com manteiga!…

. Os erros do Sr. Machado do Assis coincidem com os meus primeiros fios de cabelos brancos: quanto mais os arranco, em maior número surgem aos meus olhos.

. Assistiu indiferente e silencioso ao espetáculo da escravidão na sua pátria, vendo os representantes da sua raça atados ao potro das maiores torturas, e não teve uma súplica, nem um protesto, a lágrima da alegria, a maldição da ode ou o florete da sátira para os algozes dos seus semelhantes.

______________________

MEIA DÚZIA DE LIVROS

I

20 de maio de 1901

[…]

Surgem. pois, simultaneamente para mim os dois últimos livros de versos de Alberto de Oliveira e de Machado de Assis; ao lado deles estão também os dois últimos volumes de crítica literária de José Veríssimo, que desta vez não dá pelo nome, naturalmente para que melhor se leia no alto do frontispício de suas obras que… é (não diz o quê) de uma Academia [a Academia Brasileira de Letras] ― que exige artigo especial…

O Sr. Machado de Assis faz a pedantesca exibição desse problemático título. Alberto de Oliveira dispensa tais frivolidades que só embalsamam os nulos. A edição definitiva de suas poesias veio prejudicar, sob qualquer ponto de vista, a edição das Poesias Completas do Sr. Assis.

Alberto tem apenas 43 anos de idade (nasceu a 28 de abril de 1858); Machado do Assis é maior de 60 anos (nasceu a 21 de junho de 1839). Alberto, em 24 anos de soberbo poetar, produziu um primoroso livro de 398 páginas; o Sr. Machado, em mais de 40 anos de teimosas lucubrações literárias, apenas conseguiu colecionar 376 páginas (os dois livros são do mesmo formato). [Observação: nem todas as poesias de Machado compostas até então foram publicadas nesse volume.]

Alberto é inquestionavelmente superior a Machado, não só no esmero das estrofes e na originalidade dos assuntos, como principalmente pelo brilhantismo das rimas, o fogo da inspiração e, mais que tudo, pela fecundidade, que os impotentes censuram, à semelhança do que fez com as uvas a raposa da fábula; a grande e poderosa fecundidade, que é incontestavelmente o apanágio dos fortes e dos eleitos.

Cumpre-me dizer, bem alto, que tenho por Alberto verdadeiro entusiasmo; é um poeta cujos cantares me vão pela alma adentro, deitando-a povoada de sonhos e ilusões; os seus versos entornam-se-me pelos ouvidos, em uma deliciosa surdina que perdura como o rumor oceânico na concha espiral dos caramujos. Já do Sr. Assis não posso dizer (quanto aos versos) coisa que lhe seja em abono. Por mais esforços que empregue, nunca jamais hei conseguido reler os seus versos, que são monótonos, a provocar bocejos.

[…]

O Sr. Machado de Assis, de quem tanto se tem escrito, dentro e fora do pequeno grupo de seus amigos da última hora, vai naturalmente franzir a sobrancelha e carregar o cenho, estranhando que eu me atreva a interromper o prolongado hosana que neste momento lhe entoa a confraria do elogio mútuo, que chegou a arvorá-lo em chefe de nossa literatura (deles)!…

Há no Sr. Machado de Assis um bom prosador a amparar um medíocre poeta. Aquele, na nossa calamitosa atualidade, não vê viva alma que se lhe aproxime; este, porém, perde-se no meio tumultuoso de uma fantástica legião de cavaleiros, adornados de vistosas plumagens, encaracoladas e sacudidas pelo vento das montanhas, todos cavalgando briosos corcéis que curveteiam ao tinir de esporas de ouro, cruzando-se em todas as direções, cada qual mais ágil e mais destro que o já cansado e sempre pacato e tímido companheiro de juventude de Casimiro de Abreu e Caetano Filgueiras, Luiz Delfino e Teixeira de Melo.

O Sr. Joaquim Maria Machado do Assis tem atravessado cautelosamente e a passo miúdo mais de quatro decênios de gerações e novas gerações de poetas (que surgem aos centos, ficando apenas dois ou três de cada ciclo): e nunca foi primus inter pares [primeiro entre os iguais]; resta-lhe a satisfação de ser apenas admitido inter divos [entre os deuses], devido às cartas de recomendação do defunto Brás Cubas e do bacharel Dom Casmurro.

No decênio da sua estreia, Casimiro de Abreu atirou-o de pernas para o ar. As Crisálidas do Sr. Joaquim Maria ficaram torradas ao vivo lume do sol das Primaveras… Pouco depois de Manuel Antônio de Almeida retirá-lo dos caixotins tipográficos para a sala da redação do Correio Mercantil, quando novos horizontes se lhe abriam às retardadas aspirações, Fagundes Varela o atirou de novo ao mais triste obscurantismo.

Publica as suas Falenas precisamente quando Castro Alves atira à publicidade as gloriosas Espumas Flutuantes; vem mais tarde com o livrinho das Americanas, mas encontra pela frente Gonçalves Crespo com as Miniaturas: o crioulo fluminense dissipou as últimas fumaças do mestiço carioca! E só se lembra de apresentar as suas tardias Ocidentais na ocasião em que todas as nações do Ocidente estão voltadas para o Oriente… Parece até desorientação!

O seu último livro chegou tarde e em má hora. Publicou as Americanas em 1875, e só agora, depois de 26 anos de silêncio, apresenta as Ocidentais, única parte ainda não colecionada da sua pequena bagagem literária em verso.

Nestes 26 anos, produziu apenas 23 ligeiras peças metrificadas (16 sonetos, 1 sextilha etc.), além de três traduções (O Corvo, de Edgar Poe; To be or not to be, de Shakespeare, e Os animais iscados da peste, de La Fontaine).

Há em todos os seus versos muito torneio mecânico, só não há poesia neles: é que os seus versos não saem da alma, nem do coração; saem-lhe sorrateiramente das paredes cranianas. Diz o Sr. Assis (na Advertência) que suprimiu algumas páginas, que “as restantes bastam para notar a diferença de idade e de composição”. ― Ficou, porém, incompleta a obra eliminadora: não devia reimprimir a Estela, de páginas 12 e 13, onde tão arbitrariamente se acham intercaladas rimas breves e agudas.

Na Manhã de Inverno há uns “morros tristes como sinceras sepulturas”, que não revelam sinceridade de inspiração; vem logo em seguida a 3.ª estrofe, onde a repetição do advérbio através, além de estar escrito com s (quando seria mais correto com z [segundo a ortografia da época]), não recomenda o seu vocabulário. Na penúltima quadra, levantando o pano de boca do teatro da sua fantasia, para que apareça o esplêndido cenário da natureza, diz:

“Tudo ali preparou co’os sábios olhos

A suprema ciência do empresário.”

A aludida empresa não parece ser das mais especulativas; quanto ao empresário… se não é Deus, creio que também nisto será o Sr. Cristiano de Souza [ator e empresário teatral português], nem a Sra. Pepa Ruiz [atriz espanhola que atuou no Brasil]. Deixarei de lado tais ninharias, pois os seguintes erros de metrificação, de arte poética e até (anguis in herba [a serpente oculta na erva]) um erro de gramática! no chefe de uma literatura… como isto deve entusiasmar os discípulos do defunto Cruz e Souza [poeta simbolista, crítico de Machado]!…*

De 1880 para cá, os nossos poetas deixaram de cultivar o verso solto, que em profusão abunda no último livro do Sr. Machado. Ele sempre usou e abusou deste verso; que é incontestavelmente mais fácil de se fazer que o rimado. Não é, porém, tão fácil como quer o Sr. Assis. Esse verso, desde que não obedece à rigorosa disciplina das rimas, é subordinado a outras exigências da arte poética, não podendo terminar em palavra aguda, nem esdrúxula, além de não poder emparelhar assonantes. São tantos os erros do Sr. Machado de Assis no verso solto que, não dispondo aqui do preciso espaço para a completa demonstração, recorro ao seguinte recurso sintético:

Como se vê, li o livro do Sr. Machado de Assis com a precisa atenção. Só nas palavras assonantadas, aqui ficam 149 erros, que um poeta de certa importância evitaria perpetrar.

Não são estes, infelizmente, os seus mais graves pecados; no próprio verso solto, que, como já ficou dito, não admite palavras esdrúxulas no final, estão errados mais estes versos do Sr. Machado de Assis:

. O último, da Marquesa de Miramar;

. O 9.º da página 71;

. O 4.º da página 78;

. O 6.º da 90;

. O 6.º da 91;

. O 22.º da 181;

. O último da 183;

. O 24.º da 215;

. O 1.º da 221;

. O último da 240;

. O 25.º da 248;

. O 6.º da 311;

. O 14.º da 348;

. Os 7.º, 8.º, 18º da 349;

. O 14.º da 340; e

. O 12.º da página 356!…

Comete o mesmo versejador as maiores arbitrariedades nas estrofes rimadas. Na sua tradução de O Corvo, de [Edgar Allan] Poe, que passa por uma das suas melhores produções, há os seguintes versos, de uma só estrofe, cujos assonantes e consoantes, predominando nas vogais e-a, fazem lembrar os tais estribilhos dos nefelibatas [escritores que desrespeitam as regras do seu gênero literário]:

Ave, ou demônio que negrejas!

Profeta, ou o [que] quer que sejas!

Cessa, ai, cessa! Clamei, levantando-me, cessa!

Regressa ao temporal, regressa!

A sexta quadra dos versos intitulados Perguntas sem resposta, predominando em todos os finais dos versos as vogais i-a, se não fosse referente a assunto elegíaco poderia servir de modelo de onomatopeia de gato que mia, pinto que pia ou pipa que pinga:

E foi subindo, foi subindo acima,

No azul do céu da tarde que morria

A ver se achava uma sonora rima

Pálida Maria.

Além desta pálida Maria, que é repetida em todas as estrofes, há uma outra pálida musa do Sr. Assis, a Pálida Elvira, que com toda a sua palidez figura em 97 oitavas. Isto explica-se. O ilustre escritor, além de velho e achacado. fui sempre um contemplativo, um platônico, preferindo as “virgens pálidas, cloróticas”, as belezas de missais, como dizia o sensual poeta do Jardim das Hespérides [Cassiano Ricardo] à exuberância dos contornos, às carnações opulentas, “à saúde, à matéria, à vida enfim!”.

O nosso romancista nasceu para a pacatez burocrática; subiu, devagarinho, até oficial de secretaria; foi mais tarde oficial da Rosa, a flor simbólica do amor e da fidelidade à monarquia; passou, na República, a oficial de gabinete dos ministros da agricultura. Consta que está em vésperas de ser secretário particular de um alto personagem que tem secretários pessoais. Conserve-se na secretaria, mas não volte ao Parnaso.

De outra maneira, não se explica a sua imperturbabilidade diante dos grandes acontecimentos políticos, sociais e humanos. Todo poeta, ou escritor de raça, deve ser do seu tempo e de seu país; além disso, tem de resolver um problema social ou humano. Machado de Assis nada disso fez até hoje. Contenta-se em resolver problemas no jogo de xadrez. Não obedece à ação do meio, do momento, nem da raça.

Assistiu indiferente e silencioso ao espetáculo da escravidão na sua pátria, vendo os representantes da sua raça atados ao potro das maiores torturas, e não teve uma súplica, nem um protesto, a lágrima da alegria, a maldição da ode ou o florete da sátira para os algozes dos seus semelhantes.

Basta. Já preenchi o espaço de que disponho. Terminarei manifestando o espanto que me causou o erro gramatical do pseudochefe de uma literatura.

Uma só das horas tuas

Valem um mês

Das almas já ressequidas.

Um só destes erros valem… ou deviam valerem muitos bolos de palmatórias nos seus longínquos tempos de escola, quando eu ainda não era nascido, e o Sr. Machado de Assis já cantava as pálidas Marias e pálidas Elviras ― contemporâneas da Marília de Dirceu.

[* Múcio refere-se ao poema atribuído a Cruz e Souza e “dedicado” a Machado de Assis:

Machado de Assis, assaz

Machado de assaz, Assis:

Oh! zebra escrita com giz,

Pega na pena faz “zás”,

Sai-lhe o [Quincas] Borba por um triz,

Plagiário do Gil Blás,

Que de Le Sage por trás

Banalidades nos diz.

Pavio que arde sem gás,

Carranca de chafariz,

Machado de Assis assaz,

Machado de assaz Assis.

___

Nesse poema, Cruz e Souza acusou Machado de Assis de utilizar como modelo de Quincas Borba o personagem amoral e picaresco de As Aventuras de Gil Blás, romance de Alain-René Lesage (1715–1735).

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 20/5/1901, número 140, página 1, na seção de folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/030015_02/9674 ]

______________

MEIA DÚZIA DE LIVROS

II

Rio, 17 de maio de 1901.

Parecia terminada a minha análise sobre o livro de versos do Sr. Machado do Assis; volto, porém, à carga, devido à curiosidade de uma senhora e ao fanatismo de um dos idólatras do decrépito versejador. O idólatra é o Sr. José Veríssimo; a curiosa senhora (que me escreveu de Petrópolis umas deliciosas e vibrantes linhas cheias de espírito e de piedade), subscrevendo ostensivamente o seu aromatizado velino [papel branco], exige da minha discrição o mais completo silêncio sobro o seu nome: e ce que femme veut, Dieu le veut! [O que a mulher quer, Deus o quer.]

A ilustre senhora considera exagerada a minha exigência quanto à elaboração do verso solto; dá-me razão em tudo o mais, porém tira a conclusão de que fui mais feroz que o próprio Sílvio Romero — que na sua própria frase (dela) “nega pão e água à faminta e sedenta musa do Sr. Joaquim Maria”.

Para que a s. ex. se convença da minha imparcialidade em matéria de crítica literária, recorro aos manes [almas dos mortos] do glorioso Visconde de Castilho, que com indiscutível competência, se manifestou tão exigente como eu ao escrever o seu interessante Tratado de Metrificação. ― Tem a palavra o Sr. Visconde:

“Examinando tudo o que sobre versificação se escrevera em nossa língua, convenci-me de que a matéria estava apenas encetada, e por homens que só viam a arte da parte de fora; muito empirismo, alguma coisa de forma, nada de sentimento poético, nada absolutamente de filosofia.

“Aqui se lhe depararam trabalhos minuciosos de análise que ninguém antes havia feito, que me conste, nem talvez tentado, e cujos resultados práticos devem ser muitos e importantes. Entre esses trabalhos alguns há que podiam e mereciam maior desenvolvimento; alguns poderão ser melhorados por mais hábeis mãos, e provavelmente para o futuro o hão de ser; é fácil acrescentar, e o progresso é de todas as coisas.”

Daqui até lá entendo que os professores de poética, seguindo as regras que dou com as elucidações que lhes junto, e ajuntando eles mesmos a umas e outras o que a sua própria notícia lhes aconselhar, deitarão das suas escolas alunos muito mais aproveitados; esse o único fim que me induziu a estas obscuras e inglórias lucubrações.

Se bem soubera alguém, como eu sei, a abundância de dissabores e a pouquidade de gostos verdadeiros que o poetar, e em geral o tratar letras me têm acarretado, por muito santa alma e honrada língua que ela fosse, temo que me haveria por uma espécie de sectário do diabo, que, por estar penando sem remédio, procura atrair para o seu inferno os espíritos ainda não perdidos.

Eu, porém, em boa e leal verdade não prego a ninguém para que seja poeta ou literato… decerto não; o que faço, e o que procuro fazer, é dar a mão aos imberbes, às senhoritas e ainda a algum pecadorão calejado, que já tem pacto com o demônio da poesia, e uma vez que já nasceram precitos [condenados] para as rimas e regrinhas desiguais, induzi-los e acostumá-los a atanazarem, o menos que possam, o ouvido, o bom gosto e o bom senso ao seu próximo, que nem lhe faz mal, nem tem culpa do seu fadário.

O Visconde entra na emaranhada floresta da versificação; corta a ramaria espinhada das árvores de madeira de lei, para que irrompam viçosos rebentos; perfuma muitas vezes o próprio machado, como, na lenda oriental, o cheiroso tronco de sândalo golpeado; corta pela raiz os velhos robles [carvalhos] carunchosos e as bananeiras que já deram cacho; abre picadas; refrigera-se na água fria e transparente dos murmurantes regatos, deita-se finalmente à sombra do pavilhão da folhagem opulenta e sonha sub tegmine fagi [á sombra de uma faia, palavras do poeta romano Virgílio].

Eu fiz coisa idêntica, por entre abismo e despenhadeiros; colecionei no meu herbário os esqueletos do plantas exóticas na flora indígene; classifiquei-as conforme as minhas noções de botânica sentimental; e quando adormecia à sesta, no caramanchão artístico da fantasia, fui despertado pelos pios fúnebres da ave funesta que pousou no cume do nosso Parnaso, ao ranger áspero das rimas agudas do dr. Machado de Assis, achando-me emaranhado no cipoal dos seus infinitos versos soltos, que se desenroscam como serpentes, mordendo a sensibilidade, chicoteando-se uns aos outros com a própria cauda, escorrendo a baba venenosa dos galhos por onde se arrastaram, aonde podem pousar, correndo o risco de morrer de peçonha, incautas aves que sabem voar e cantar.

Já ficou dito, no folhetim anterior, o que se entende por palavras agudas, palavras graves e palavras esdrúxulas. O visconde explica isto assim: — Se a palavra última de um verso qualquer é aguda, agudo se nomeia o verso; se grave, grave : se esdrúxula, esdrúxulo; ao que resulta que os versos de duas sílabas podem deitar até três a quatro; os de três até quatro e cinco; os de quatro até cinco e seis (assim por diante), até chegar aos de doze, enfim, que deitam até treze e quatorze. (Os hexâmetros, se eles fossem possíveis, deitariam até dezessete).”

Em grande maioria, os versos portugueses são graves; daqui vem que “em todas as onze medidas, os versos graves são os mais fáceis e óbvios, e os mais constantemente seguidos”, etc. Os versos agudos, pelo seu modo seco e estalado de acabar, sem elasticidade, sem vibração, se assim o podemos dizer, têm o que quer que seja de ingrato ao ouvido, etc. As palavras de duas sílabas breves depois de uma longa excedem em música aos termos só graves, como os graves excedem aos agudos; e é isto que faz com que, sem embargo de serem os termos esdrúxulos, ou dactílicos, ainda menos frequentes em nossa língua que os agudos, nem por isso se estranham quando ocorrem naturalmente.

Ideias há, talvez, com as quais a sua toada tem uma secreta afinidade; v.g. — a ideia de extensão ou grandeza; considerai os superlativos, todos dactílicos, máximo, ótimo, grandíssimo, boníssimo, altíssimo, profundíssimo, amplíssimo, etc.; não é verdade que o mesmo tom material destes adjetivos assim tem alguma coisa de representativo? Mas não é só com a ideia de grandeza que os esdrúxulos fraternizam, é com a dos sons aprazíveis: música, cítara, harmônica, melódica, cântico; é com as suavidades, amenidades e enlevo: cântico, tácito, balsâmico, odorífero, flórido, simpático, extático, lágrimas, delícias, êxtase, angélico, zéfiro, etc.; e com as de movimento e força: trêmulo, rápido, indômito, quadrúpede, etc.; é, finalmente até, com as opostas às suaves: hórrido, lúgubre, túmulo, etc.

Acertar um verso não é tudo; versos há que, tendo o número preciso de sílabas, com as devidas pausas destoam ou desagradam, assim como entre os bem feitos, uns nos contentam mais, outros menos. Por vários modos pode um verso pecar em dureza: duro será quando muitas palavras de difícil ou desagradável pronunciação se incluírem nele; ou quando a uma palavra finda em consoante seguir outra começada por consoante sua inimiga: ao r o r; ao r o s; o r ao 1, etc.

Pode-se dizer dos versos de Machado de Assis o que o mestre da Noite do Castelo disse de Filinto: desagradam e martirizam a qualquer ouvido, mesmo sem ser dos melindrosos. — Exemplifiquemos: verso frouxo (o que citei, de Alberto de Oliveira, na estrofe em que deixou de fazer a sinérese):

Do que ao lado dessa branca imagem.

Exemplo de verso duro:

Mar chão, sol bom, do mar, a nau serviam.

Verso monófono é aquele em que as vogais não vêm sortidas com variedade; isto é, para que um verso tenha todas es cores do íris, se me é permitida a poética imagem que autoriza a comparação dos sons com as letras, citarei estes, de Bocage, em que figuram todas as vogais, artisticamente intercaladas:

I

Nise formosa como as graças puras

II

Rugindo estoura o mar em brutas serras.

Monófonos são os seguintes, da já citada tradução do Corvo, que o Sr. José Veríssimo embasbacado repete de joelhos e com as mãos em cruz, na beatífica atitude do sacristão que nem se lembra, no seu êxtase, de que pode, ao sacudir paternalmente o turíbulo ardente da lisonja, esborrachar com ele as ventas do seu ídolo:

Ave ou demônio que negrejas!

Profeta, ou que que sejas!

Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa,

Regressa ao temporal, regressa!

Parecem feitos propositalmente para que os recitem os gagos, que ficarão perfeitamente no seu papel, com tanto e… ee

Se eu fosse tão exigente como diz a ilustre senhora, longe de fazer o quadro sinótico que apresentei, dos erros do Sr. Machado de Assis (mais de 150!), além dos que em seguida passo a enumerar: limitaria o meu rigor a estranhar que um chefe de literatura use de tão arbitrária ortografia, arbitrária e tola como se vai ver.

Tola, porque prefere a maneira pedantesca de escrever com — u — o que a naturalidade exige que seja escrita com — i — , de conformidade com a maneira comum de se falar no Brasil. Ele enche a boca e comprime os beiços para pronunciar — cousa, noute, louro… até louro! — quando seria mais fácil dizer, como todos nós dizemos: — noite, coisa e loiro, mesmo porque o tipo loiro que ele descreve com u pode assim ser confundido com o ramo de louro (com u) que os tendeiros portugueses penduram à porta das suas mercearias.

Arbitrária é a ortografia adotada pelo Sr. Machado de Assis, que escreve sôfrego e afoito com f duplo, tradição com dois cc, etc., etc., etc.

Vejamos, porém, se o seu vocabulário é rico… Qual! É paupérrimo, tio pobrezinho, que em 32 composições repete 17 vezes a palavra trêmulo; outras tantas a tal pálida, da sua singular simpatia; 20 vezes a palavra último (não entrando em conta o adjetivo derradeiro, sinônimo de que também abusa); 29 vezes a palavra ilusão; derrama nestas 32 peças 31 lágrimas, desfolhando-lhes em cima 93 flores (além das muitas outras que são designadas pelos seus respectivos nomes, e que não meto aqui em conta), mas flores murchas e sem perfume, como se vai ver nos seus versos seguintes:

Arre! É muita flor!… Pois ainda há muitas outras… que mostrarei no folhetim seguinte.

(*) [Observação sobre “52. As flores tresloucadas (página 57).]

Há em seguida um galhos pensativos. (Vide a página 97).

Tenha paciência, Sr. José Veríssimo, deixe-me acabar com o Sr. Machado de Assis, que chegará a sua vez.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 27/5/1901, número 147, página 1, na seção de folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/030015_02/9698

_________________________

MEIA DÚZIA DE LIVROS

III

Rio, 3 de junho de 1901.

No folhetim anterior, além dos 149 erros de Machado de Assis no verso solto, da inconveniência dos esdrúxulos no final dos mesmos, da mistura de rimas e assonantes, e do gravíssimo erro gramatical (no soneto da página 343), ficou demonstrado que plagiou Casimiro de Abreu e que abusou, em 26 peças, da repetição do substantivo flor, que nelas se acha encartado, e 98 vezes!…

Hiperbólico ramalhete esse, a que poderemos ainda reunir mais estas 48 flores que desfolhou nas 18 composições restantes do seu Parnaso de flores — murchas pelo inverno da decrepitude.

Eu tenho sido censurado por tratar com demasiada benevolência os que ensaiam seus primeiros passos na carreira das letras; assiste-me o direito de ser severo com os que já se consideram mestres. Toda a minha generosidade com aqueles será compensada com a porção da imparcialidade na análise desses e de suas obras. Obedeço à lei fatal das compensações.

Temos visto, até aqui, 93 vezes repetido o substantivo flor (apenas em 26 peças, poéticas): pois bem, em mais 18 poesias é 48 vezes repetida a mesma palavra, como passo a demonstrar:

[Nota de rodapé relativa ao número “47. Vasco, a flor dos vadios da cidade (página 351)”: Este ilustre presidente da academia brasileira (sem acadêmicos) vai ser aclamado o cantor da flor da gente… da Cidade Nova!]

Como se vê, aqui temos mais 48 flores, que somadas às anteriores 98 nos oferecem um total bruto de 146, não metendo em conta as de espécie classificada, como rosas, lírios (com y), saudades, cravos etc… que não me dei ao trabalho de colher, já espinhado com a dura tarefa de tamanha poda. No resumido vocabulário deste pseudochefe de uma literatura, toda a munição de guerra contida no arsenal da inspiração está limitada a frases corriqueiras e prosaicas, além de chapas [lugares-comuns] estafadíssimas, como estas:

. A mão do tempo (página 3, 1.º verso);

. O seio amigo (página 3, 4.º verso);

. A íntima paz (página 3, verso 10);

. A fria realidade (página 6, verso 4);

. A minh’alma de poeta (página 6, último verso);

. Uma pobre criatura (página 8, verso 1);

. A sede de amores (página 9, verso 23);

. Os braços de Deus (página 11, verso 5);

. A noite arrasta o manto (página 12, verso 2);

. A virgem da manhã (página 13, verso 23);

. A voz fatídica (página 15, verso 5);

. O sol dos livres, e o doirado Oriente (página 16, versos 4 e 6);

. O anjo pálido da morte (página 23, verso 23);

. O perfume que expira / nem a nota que suspira / nas brandas cordas da lira (páginas 26, versos 1, 3 e 5);

. A manhã da vida (página 33, verso 5);

. Repito aos ecos os vãos lamentos (página 35, verso 6);

. Pálidas sombras (página 71, verso 28);

. A pesada mortalha (página 244, verso 8);

. A sã virtude (página 244, verso 14);

. A espécie humana (página 245, verso 2);

. O pó comum (página 245, verso 16);

. A pátria livre (página 245, verso 17); etc.

Pode ser citado, entre os modelos de versos cacofônicos, este do Sr. Machado de Assis em que o poeta nos diz que, se não comeu moela de galinha ou de perdiz, comeu a sua musa… infeliz! — Ouçamo-lo:

. Da amarga vida, breve flor como ela

Fica-se em dúvida se o Sr. Machado de Assis come a flor da vida, ou come ela… (não admira que diga como ela em ver de come-a, quem já disse que uma só hora valem um mês)… Esta moela, com um l só, não pode ser o bucho das aves que as nutrem de grãos; já que tem dois ll, é naturalmente aquela substância esponjosa, formada do tecido celular, assim denominada em botânica, e que nos vegetais dicotiledôneos preenche o canal medular…

Não é mais feliz, quando se dá ao luxo de querer exprimir as suas ideias por meio da redundância das palavras, caindo as mais das vezes em tolices pleonásticas, como esta:

. Calado fica; a quietação quieta

Ou. quando diz:

. E foi subindo, foi subindo acima

Quereria, porventura, que subisse para baixo? Ah! é o caso daquele outro, que só entrava para dentro e saía para fora. Isto, porém, num chefe de literatura?! No ídolo dos srs. José Verissimo & Cia.?…Não, ô chefe! Ó divino mestre (deles)! Tu, desta vez, ou cais para baixo, do Parnaso, ou entras para dentro, da tua secretaria, que é mais rendosa e menos arriscada.

Comete o Sr. Machado de Assis muitos outros erros graves, que fácil me seria enumerar, se não me assaltasse o temor do ficar este trabalho demasiado prolixo.

Citei o substantivo flor, 156 vezes repetido, e isso apenas em 44 poesias. Além desta palavra, que é a sua predileta, está fora de dúvida, outras há que também são exploradas pelo Sr. Machado de Assis com a mais teimosa impertinência. São elas: ilusão, pálido, lágrimas, último e trêmulo.

Em 11 poesias repete 93 vezes o adjetivo trêmulo; em outras 14 poesias repete 33 vezes o substantivo ilusão; em 16 poesias repete 38 vezes o adjetivo último; em 19 poesias repete 51 vezes o adjetivo pálido; em 24 poesias repete 146 vezes o substantivo lágrima, e em 44 poesias 146 vezes o substantivo flor!…

Já que fui obrigado a transcrever algumas regras do Tratado de Metrificação, de Castilho, dele extrairei ainda as seguintes observações sobre cada letra do alfabeto, resumindo-as quanto possível ao espaço aqui disponível:

A — O a é de todas as letras a mais franca e de mais fácil pronúncia. É a expressão natural da admiração, da alegria, do alvoroço e da ternura. Não é entre nós o a a suave marca do nome da mulher, de quantos objetos lhe pertencem, de quantas quantidades se lhe referem?

E — A vogal e pode-se haver por uma degeneração do a; um sem-número de palavras derivadas o provariam, se, para nos convencermos, não bastara comparar os movimentos da boca para a formação de um e outro desses sons. Com menor explosão, com menor volume e ressonância que o a, o e parece incapaz de valor algum onomatopeico ou representativo, a não ser para expressar languidez, tibieza (é esta a vogal predominante nos versos de Machado de Assis), quietação e ainda os gozos serenos que participam destas qualidades; o e é de todas as vogais a menos distinta e a menos musical.

I — Se a primeira escala dos sons é aberta com o a, o i, em que a mesma escala termina, parece convirá com as ideias de pequenez e de tristeza. Não poderá ser que a terminação da primeira pessoa do singular dos pretéritos recebesse o i, que tanto no latim como em português a caracteriza, por ser esta letra mais conforma à mágoa e ao sentimento que naturalmente acompanhar a ideia do que já lá vai? — Amavi, amei; vidi, vi; vixi, vivi; audivi, ouvi etc. [equivalências entre latim e português.]

O — O O é na segunda escala das vogais o que o a é na primeira: som franco, rasgado, enérgico, e como que uma explosão da alma. O chamar, o exclamar, por ele se exprimem. Parece ter um ao sei quê de varonil e de ativo, de forte e imperioso. Nas boas descrições de tempestades, da natureza ou do ânimo; de batalhas, etc., quando escritas por poetas esmerados, observar-se-á como o o predomina, e com que efeito.

U — Do som do o se passa tão naturalmente para o do u, que em todas as palavras terminadas por o breve este assume o valor de u, como Santo Antônio, que se lê como se se escrevesse Santu Antôniu. O artigo masculino é proferido como u, tanto no singular como no plural, e no meio dos vocábulos, tão idêntico ao valor do u é o do o, que faz duvidar [gera dúvidas] na ortografia.

Fica logo claro que, falando aqui do valor, e não da figura das letras, tudo o que do u dissermos, ao o que tiver valor de u se deverá igualmente aplicar. Parece convir à desanimação, à tristeza profunda, aos assuntos lutuosos.

Recapitulação sobre a índole das vogais: — o A é brilhante e arrojado: o E tênue e incerto; o I sutil e triste; o O animoso e forte; o U carrancudo e turvo. (Se ousássemos não temer o ridículo, compararíamos o tom do a à harpa: o do e ao machete; o do i ao pífaro; o do o à trompa; e do u à zabumba.).

Das consoantes em geral: — O B e o P, articulações sobremodo semelhantes, e formadas ambas pela separação repentina da extremidade dos lábios, poderão, por tal ou qual estalido que as acompanha, frisar mui bem com os objetos em que pouco ou muito houver um soído [som] repentino, breve e destacado: em estilo familiar, pinga e pingar alguém dirá que não sejam onomatopeicos. (No mesmo estilo se representa com muita propriedade pela sílaba o estrondo de uma bofetada, e por um pum um tiro.)

O soído [som] representado por C e S é tão fácil e natural que, segundo observa [Júlio César] Escalígero [escritor francês de origem italiana], não depende de indústria [esforço]; basta só lançarmos um pouco mais fortemente a expiração para ele se ouvir; é talvez isto, sobretudo, o que torna o seu uso frequentíssimo. Têm a natureza animal e a inanimada sons que arremedam com muita propriedade o S, tais como: o silvo da serpente, o ciciar da cigarra, o assobiar do vento pela enxárcia [os cabos de sustentação dos mastros de um navio] e o ruído macio da ressaca, quando o mar arregaça brandamente as fraldas de cima das areias declives [inclinadas] de suas praias. (O emprego de palavras com S ou C ajudará material mas eficazmente a representação da ideia.)

Preferindo-se D e o T qual do mesmo modo, que é ferindo subitamente com a ponta da língua os dentes superiores, idêntico fica sendo o efeito artístico na composição dos vocábulos; efeito muito análogo ao do B e P, só com a diferença que, sendo a pancada da língua nos dentes no D e T mais forte que o estalido com que os lábios se despegam no B e no P, também a sua representação fica sendo, por isso mesmo, mais enérgica. (Exemplos: martelar, bater, triz, tambor, truz.)

O soído [som] do F e do V tão semelhantemente se forma nos lábios, que não passa de duas variedades de uma mesma espécie: O V é o F mais áspero, o F e o V mais suave. Quanto à representação, ambos têm a mesma, só com a diferença de mais ou menos caracterizada. Encontra-se na natureza alguma coisa destes sons: repare no vento que silva pela frincha de uma porta, ou pela espessura de um arvoredo; percebereis o [que] quer que seja, ora de F, ora do V. O resfolgar de um fole; o zoar de um pião; o zunido de uma pedra pelos ares; o zumbir de insetos; o voo das aves valentes e velozes; o murmúrio da proa, que fende as águas; o rugir do fogo, o bufar do gato e das cobras, etc. (Exemplos: forja, foguete, faísca, voga, verruma.)

O G (com valor de gue) e o C (aspecto como o k e o q) não têm em realidade mais que duas articulações. Os sons de ambos têm entre si a mesma semelhança de formação e a mesma afinidade que se nota entre o C (brando) e o S. Um e outro se dão asperamente e com dificuldade, retesando e curvando a língua para o paladar, e arrojando com força a expiração, de onde resulta convirem ambas estas articulações à expressão dos objetos difíceis, resistentes, escabrosos, como esgalhar, erguer, frigir, tronco, furacão, etc.

O G, o J, o X, o Ch, o S e o Z (no fim da palavras) têm realmente mais de duas articulações, e mui semelhantes, que por isso se reúnem, a saber: o G e o Ch, pois que o J se identifica com o G, assim como o X se identifica com o Ch; e com o S final, como em cases; e com Z final, que tem igual soído [som], v. g.[por exemplo]: capaz, que articulamos como se escrevera capax. Dos muitos e variados valores que o X tem em nossa língua, só consideramos aqui o primário e natural, porque nos casos em que soa como Z (v. g.: extemporâneo), já se lhe dá de aplicar o que dissemos do J e do S.

‘Tanto o Ch como o J são, até certo ponto, uma artificial reprodução de alguns sons da natureza e nomeadamente do ruído das folhas e das águas. (Dizia a célebre poetisa francesa Mme. Amable Tasty, que a regalava e lhe refrigerava a alma ouvir falar o português, posto não entendesse, porquanto aquela frequência e quase combinação dos sons do X, resultante dos SS nos plurais, lhe fazia ao ouvido o efeito de uma cascata perene.) Exemplos: cascata, cheia, chafariz. jorro, repuxo.

Ao L, que é articulação de sua natureza mui branda, ainda não descobrimos a índole representativa, a não ser a espécie de estalido que a ponta da língua faz para o proferir, expedido do céu da boca; o que o torna apto para significar a ação de quebrar ou partir, como nas palavras estalar, martelar, aplaudir, descolar, aluir. Quanto ao Lh, fácil é perceber-lhe um não sei quê no som, que muito bem conforma com a ideia ou coisa esmiuçada, ou dividida em miúdos, como: ramalhar, escolher, vidrilho, ferrolho, embrulho.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 3/6/1901, número 154, página 1, na seção de folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/030015_02/9722

______________________

MEIA DÚZIA DE LIVROS

IV

Rio, 10 de junho de 1901.

Das duas propriedades características da letra M, a primeira é do afeto. Ao revés de todas as outras letras. esta carece, ainda que assim não seja, proferir-se tomando a pessoa que fala o ar a si, em vez de o expedir, e unindo os lábios, como para beijar. Por m começa, talvez em todas os línguas, o nome de mãe, que predomina em amor. A palavra amo, para os franceses é o próprio nome da letra m, sem mais nada [emme = “m” — aime = “amo”]. (Exemplos de expressões de ternura em que figura o m: meu, minha, marido, mulher, amigo, amante, amada, meiguice, menina, mimosa.)

O N colocado em fim de sílaba é como o m: dá à vogal uma certa ressonância, ou eco; um nasal, que fez com que os romanos a apelidassem littera tiniens, letra que retine), com o que ganham os vocábulos um acréscimo notável de eufonia. Perdem o seu efeito, sem o n, as palavras: monte, esplêndido, vingança, estrondo. Seguido, perde o eco, mas essa perda é porventura ressarcida pela secreta virtude que o h tem para exprimir os sons de líquido, ou miudez. (Vinho é preferível ao vino dos espanhóis e italianos, mas o pequeño, em castelhano, é preferível a pequeno, em português.) (Nota 1: O ñ em língua castelhana corresponde ao nosso nh.)

Não há letra cujo valor imitativo seja tão incontestável e tão universalmente reconhecido como o do R. Quer fortíssimo, como na palavra rama, quer forte, como em arma, é formado por um tremor na ponta da língua, revirada para cima. Exemplos: trovão, raio, artilharia, granada, tiro, retinir, ribombar, trole, tremor, tronco, frêmito, trote, rugido, arranco, quadrúpede, relinche, corrente etc.

*

Cita o Visconde os seguintes versas de Virgílio:

Qua data porta, ruunt; et terras turbine perfiant.

Incubuere mari, totumque a sedibus imis

Una Eurusque Notusque ruunt, creberque procellis

Africus, et vastos valvunt ad litora fluctus.

Insequitur clamorque virum, stridorque rudentum.

*

E estes, de Bocage:

*

Ruem por terra as emperradas portas

Das Eólias, horríssonas masmorras,

Que de um fero encontrão rugindo arromba,

A caterva dos Euros.

Cabe-me a ventura de poder citar a mais bela de todas as onomatopeias da língua portuguesa, feita por um brasileiro (que nunca foi chefe de literatura, nem presidente de Academias), aquele pobre e obscuro boêmio que se chamava Fagundes Varela, e que para os partes de Machado de Assis naturalmente não passa de um poeta de água doce, que é como eles classificam Casimiro de Abreu, Castro Alves, Álvares de Azevedo, não citando Luís Delfino, Castro Rebelo, Juvenal Galeno, Generino dos Santos, Fontoura Xavier, eu, Múcio Teixeira, e todos esses outros poetas que não pertencem à tal Academia… deles, não dos que acabo de citar.

Digam-me se há em qualquer idioma onomatopeia mais vibrante e nítida que esta, do inspirado cantor de Cantos e Fantasias, das Vozes da América e do Evangelho nas Selvas:

… relincham cavalos,

Retumbam, ribombam, bombarda e metralha!

* * *

Voltemos, porém, à vaca fria, isto é, à musa do Sr. Machado de Assis. Está demonstrado que o ilustre ancião jamais se preocupou com a teoria dos valores imitativos das letras, que, por ser teoria, nada tem que ver com o sistema adotado pelos homens práticos

Seria perder tempo, o tentar meter-lhe na cabeça a ideia de que, pelas translações, existe a possibilidade de se estender a vibração dos sons a objetos que nenhum som fazem, a coisas incorpóreas até, a atributos do espírito.

Vejamos pela última vez o seu livro em questão — o livro que é toda a sua bagagem poética. Demonstrarei, peça por peça, a inconveniência das repetições. (Peço ao leitor que não esqueça isto: eu tomei ao acaso apenas seis palavras, último, pálido, lágrima, trêmulo, ilusão e flor.) Veja agora o leitor se realmente não é detestável o efeito de tal pobreza de vocabulário [observação: Múcio reproduziu versos esparsos de cada poema, visando mostrar somente as repetições dessas palavras]:

I

Murchem a flor das ilusões da vida,

E muda o agudo espinho em flor cheirosa,

Que vales tu, desilusão dos homens?

A última ilusão cair, bem como.

Folha amarela e seca.

Em vez de algumas ilusões que teve,

A paz, o último bem, último e puro!

(Musa consolatriz, página 3.)

II

Eras pálida. E os cabelos

Entre lágrimas luziam…

Frios, trêmulos, trocavam

Lábios trêmulos e frios.

(Visão, página 5.)

III

Nem uma flor de esperança

Até a ilusão primeira,

Nas mãos trêmulas e frias

Colheste todas as flores.

Então, desflorada a alma

De tanta ilusão perdida

Uma lágrima buscares,

Juntar a última injúria.

(Quinze Anos, página ? [ilegível]).

IV

E verte o último pranto (Nota 2: Quando não vem lágrima, vem pranto).

As pálidas estrelas…

Não vês que a vaga inquieta

Abre-te o úmido seio? (Nota 3: Nesta poesia, além das repetições de todas as outras, há este erro de gramática, que se reproduz em algumas outras, como se viu, se vê e se verá.)

Em lágrimas a pares.

(Estela, página 12.)

V

Teu coração estremeceu, teus lábios

Trêmulos de ansiedade e de esperança.

Muito hás vertido em lágrimas e sangue.

(Polônia, página 16).

VI

É que, como obra de um dia,

Passou-me essa fantasia (Nota 4: Eu não disse que o tal erro de gramática se reproduzia? Aqui está outro.)

(Erro, página 20.)

VII

À beira do teu último jazigo

Sorria-lhe toucada dessas flores,

Mas eis que o anjo pálido da morte…

Mas quando assim a flor da mocidade

O que é fruto e o que é flor. O homem cego

Onde doce ilusão fechado havias

Em teu último asilo, e se eu não pude

Ia espargir também algumas flores,

Possas tu ler as pálidas estrofes…

(Elegia, página 22.)

VIII

A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,

Surgiu, abrindo em flor, uma nova região.

Perder outras ilusões,

Derramar as mesmas lágrimas

E tremer do mesmo enleio,

Colheria esta flor pura?

Na ilusão de que deliras,

Amemos! diz a flor à brisa peregrina,

Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor.

E soltei entre lágrimas um canto.

Doidas correndo à flor de água revolta.

E esperei aguardando o último sono

E destas ilusões doces e vivas

Só me restarem pálidas lembranças.

E procura naquele último asilo!…

Tu que, como a ilusão, entre névoas deslizas,

Que a folhagem desperta e torna alegre a flor,

O último suspiro e a última paixão.

Minha ilusão fez-me talvez criança;

Lá, como quando volta a primavera em flor,

A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;

Do amor que não perdeu co’a última esperança

Gota de mel divino, era divina a flor.

É que eu pus neste amor este último transporte

Beijando a folha e a flor.

(Versos a Corina, página 30.).

IX

A última harmonia

Não quebra os raios pálidos e frios.

Vês? , ao fundo o vale árido e seco

Abre-se, como um leito mortuário; (Nota 5: Não é só depois de que e quando, que o pronome deve preceder o verbo: a lei gramatical predomina depois de todos os advérbios; e , como aqui está empregado, não é substantivo musical, é claramente o advérbio de lugar, onde se abre o vale.)

Das flores da manhã — e ao monte agreste

A última harmonia.

(Última folha, página 50.)

X

Tristes coma sinceras sepulturas,

Puras capelas, lágrimas mais puras

Erma de flores, curva a planta o colo.

Nem enche as folhas trêmulas a neve.

(Manhã de Inverno, página 59.)

XI

A tua vida conta: sangue e lágrimas.

Na gôndola discreta, amenas flores.

Cobrem flores a estrada, estéreis flores,

Ornam o campo as mesmas flores belas…

A ilusão da esperança,

O derradeiro bem: ― algumas lágrimas! (Nota 6: Quando não vem último, não falta sinônimo que o represente, para demonstrar a riqueza do vocabulário. Há uns trinta e tantos, que não me dei ao trabalho de analisar.)

(La Marchesa de Miramar, página 61.)

XII

Cobrem plantas sem flor crestados muros;

Lágrima cai; não murcha a flor do rosto;

Duas pálidas sombras…

(Ruínas, página 70.)

XIII

A flor ajeita o cálix: cedo espera

Vem, minha flor querida;

Do limoeiro em flor colhi contente…

(Noivado, página 74.)

XIV

Nos meus joelhos trêmulos descansa,

Empalideço, tremo;

Lágrimas verto que a minh’alma assombram!

Tu, carinhosa e trêmula,

Se eu tremo, é porque nessas… etc.

(A Elvira, página 77.)

XV

Curvou a pálida fronte,

Vinha trêmula e sentida.

Umas lágrimas de cera

Uma lágrima sequer.

(Lágrimas de Cera, página 79.)

XVI

Existe uma flor que encerra

Busca esta flor virginal

A flor o cálix inclina;

Esta flor é o coração.

(O verme, página 84.)

XVII

Que as árvores em flor, mais altas, cobrem,

As pontiagudas rochas entre flores:

Lançaste às ondas trêmulas

A Imperatriz, qual flor radiante e pura,

E ao sopé da montanha abrindo as flores.

As flores tresloucadas,

Os galhos pensativos, (Nota 7: Pensavam naturalmente nas seis palavras de inspiração do presidente da academia denominada Flor da gente que forma o Povo da Lira.)

As zombeteiras flores.

Deita as folhas à terra, onde não há florir.

(Lira Chinesa, página 89.)

XVIII

Lesbos, a flor do Egeu,

Dentro em pouco era Mirto a flor de toda a escola.

Vês tudo azul e em flor; eu já me não iludo.

Correm de bolsa em bolsa e não de flor em flor.

Obter a casta flor dos célicos prazeres.

Viver sem ilusões no bem como no mal;

Tu não tens coração. — Tenho, mas não me iludo.

Põe o mar entre nós… dissipa-se a ilusão.

Compensará, mas quando? A mocidade em flor

As ilusões, velhice é perdê-las assim;

Não hás de envelhecer: as ilusões contigo

Flores são que respeita Éolo brando e amigo.

Bater teu coração, tremer teu lábio puro,

Pouco me importa a flor; importa-me o perfume.

Quero, quero-te a ti. Pois quê! Já quer a flor

Quem desdenhando a flor, só lhe pede o perfume?

Mais duas ilusões! Que importa? Inda são poucas. (Nota 8: Poucas… não, tenha paciência: eu nunca vi tantas ilusões em tão poucos versos.)

(Uma Ode de Anacreonte, página 103.).

XX [erro de numeração no folhetim: do XVIII ao XX]

Vir morrer-te uma lágrima no seio,

A meiga virgem, pálida e calada,

Com dadivosa mão, palmas e flores

Neste vale de lágrimas eternas,

De amor sonhava a pálida donzela.

O ser pálida a moça; é mau costume,

Com lágrimas de amor os versos santos

Disse uma noite à pálida sobrinha:

Vive de orvalho ou pétalas de flores;

Leu e estendendo já o trêmulo braço

Enche com frescas lágrimas as flores.

E casa a flor à flor! Palavra amiga

Ilusões de poeta malogrado! (Nota 9: Belo verso! Belo… e verdadeiro, por ser de quem é. A César o que é de Cesar. E a sua musa não pode ser suspeitada, deixemo-nos de ilusões e malogros.)

E o tremendo duelo é sempre um erro. (Nota 10: Está de acordo com a bancada de São Paulo, sentindo naturalmente poder desagradar o almirante Melo.)

Contra esse mal tremendo que devora.

A encher-lhe a vida de perpétuas flores. (Nota 11: Sem alusão às flores do mesmo nome — perpétuas.)

A flor abrindo, o pássaro cantando.

Exala afetos como aroma as flores.

Amor que mal agita a flor do seio,

Lágrima santa, lágrimas de gosto,

Como uma flor que abrisse no deserto,

Como a vida da pálida donzela,

Surge das águas pálidas e divina,

Dissipada a ilusão, o pensamento,

A existência entre flores esquecida,

Troca a ilusão que a seduzia dantes

Se alguma tinha, eram murchas flores

Ó ilusão fantástica e perdida (Nota 12: Perdeu-a o próprio Sr. Machado de Assis, que tanto abusou da pobre ilusão…)

A glória pede as ilusões viçosas,

Estro em flor, coração eletrizado (Nota 13: Pede precisamente o que o chefe não lhe pode dar, nem os seus comandados.)

Que a tua mente as ilusões esqueça! (Nota 14: Este verso, sim senhor, encheu-me as medidas. Não resisto à tentação de o repetir:

Que a tua mente as ilusões esqueça!

Mas… não esqueça só as ilusões: esqueça também as lágrimas, as pálidas, os trêmulos, os últimos e as flores. Sim? Sou amigo?… Esqueça… que eu talvez lhe escreva.)

Quando em meio de pálidas lembranças

Reviveriam ilusões viçosas,

Sente abrir-se-lhe n’alma a flor murchada

Das ilusões que um dia concebera,

Que às folhas serve as lágrimas noturnas;

Iguais flores nas plantas renascidas…

Aquela flor que às auras matutinas

Teve-se aquele… Lágrimas sentidas

Geme, soluça, em lágrimas beijando

Este infante entre lágrimas nascido,

À flor das águas viu um corpo aflito…

Nestas estrofes pálidas e mansas.

(Pálida Elvira, página 13.)

Interrompo a minha análise para dar publicidade à seguinte Carta à guisa de crítica literária dirigida por meu intermédio aos moços estudiosos, à classe acadêmica e aos literatos, pelo jovem e ilustrado dr. Francisco Mendonça, digno sobrinho de meu ilustre colega Salvador de Mendonça:

“… Sr. Múcio Teixeira. — Sobremodo satisfeitos com a crítica feita pelo poeta com relação a outro poeta, crítica até então não respondida, resolvemos escrever-lhe a presente carta, na qual analisamos, de acordo com as regras de gramática portuguesa por nós aprendidas dos mestres, o discurso do notável e eminente Superior da Confraria Literária, cujo título oficial foi assim transformado: Academia Brasileira de Letras.

“Faz-se primeiro que, a exemplo do procedimento nobre, altivo da mocidade portuguesa, nossa coirmã, brasileira, seguindo-lhe as pegadas, dê combate às teocracias literárias e não permita que se expeçam diplomas do literatos consumados e de chefes de escolas (estilos), daqueles que sacrificam a cada passo as belezas da língua que nos orgulhamos de falar e escrever, esse idioma notável no qual brilharam Camões, frei Luís de Souza, o padre Antônio Vieira e outros, sem arrendarmos melindres alheios, ou, para falar dos vivos, a linguagem em que tem revelado a farta messe de conhecimento da filologia, um Rui Barbosa.

“Pedimos vênia para criticar, na medida das nossas apoucadas noções de gramática da língua portuguesa, o idioma em que cantou o imortal Camões, a peça oratória e literária produzida pelo eminente superior primus inter pares, arcades ambo [superior e mais digno entre seus pares, ambos árcades] (ele e Camões), por ocasião da solenidade da inauguração do busto de Gonçalves Dias, o mavioso cantor das nossas belezas naturais.

“Somos os primeiros a proclamar as vantagens que da Academia Brasileira de Letras se inferem como benefício à nossa literatura; mas, por outro lado, afirmamos, sem receio de errar, que a literatura brasileira não consiste pura e simplesmente em discursos de ocasião, pouco cuidados, quer quanto à forma que revestem, quer quanto à essência que trescalam, nem tão pouco em livros onde, a par da linda forma literária, abundam os erros gramaticais; nem ainda em peças literárias nas quais sobra a forma e falta a essência, o fundo, a alma de tudo quanto se puder escrever. Demais, alguém pode falar ou escrever correto sem que tenha alisado os bancos de uma escola, por mais primária que possa ser, e mais tarde se haja entregue aos estudos preparatórios, cujo principal, para nós nacionais ao menos, é o português (língua), e não se admite que faça escola ou estilo aquele que desconhece a língua em que fala ou escreve.

“Já Buffon o disse: ‘o estilo é o homem’; e, assim sendo, somos forçados a confessar que a escola a que se filiou o já tão emérito e notável presidente da Academia Brasileira de Letras, o Sr. Machado de Assis, peca, porque fere de morte as mais comezinhas regras de sintaxe, tais como as de concordância, princípios imutáveis e eternos em toda a língua.

“Sabemos ser o erro próprio do homem — errare humanum [errar é humano]; mas, também, devemos dizer que o magister, a summa capita [o mestre, em resumo], deve conhecer e não pode ignorar as regras elementares de um idioma em que terçou armas, e sempre com galhardia e maestria, com tamanho brilho, um talento privilegiado, pois que, dentre os [Visconde de] Taunay, os [Carlos de] Laet, foi o Sr. Machado de Assis proclamado o mais ilustre pelos colegas de confraria, pelos confrades.

“Res, non verba {Fatos, e não palavras], passemos ao que foi publicado e até hoje passou sem emenda, em completo parce sepultis [perdão aos mortos]. Transcreveremos para terminar, algumas blasfêmias contra a gramática, em nome da qual protestamos por novo julgamento e sentença.

“Começa o 3.º parágrafo do discurso aludido com a seguinte frase, constituindo erro palmar: ‘dizem que os cariocas somos pouco… etc.’, o que constitui flagrante ironia do mestre ou então desconhecimento perfeito da seguinte regra de sintaxe: — o verbo concorda com o sujeito em número e pessoa. O correto, data vênia, seria “disse que os cariocas são”, ou ainda “dizem que nós cariocas somos”; mas, como foi publicado, sem reclamação aliás, é perfeitamente errado. [Observação: trata-se de um caso de silepse ou concordância ideológica, aceita na gramática mesmo naquela época.]

“Continuemos com as citações: Agora já não se trata de regra da gramática, porém sim de impropriedade de termo. Diz o mestre acadêmico, à linha 19, que ‘talvez este busto emende o costume;…’ Francamente, o verbo adequado é — corrigir, porque emendar também traz em si a ideia de acrescentar, e quem corrige pode não acrescentar e, sim, diminuir.

“À linha 22, final da 3.ª frase do § 3.º, ainda fala o Sr. Machado do Assis em surtos do espírito, o que nos parece ser devido à pobreza de termos de uma língua, aliás rica; seria mais próprio o dizer-se voos, tanto mais que anteriormente nos fala o mestre em asas, que servem, parece-nos, para voar.

“É muito comum a frase seguinte: o navio X está surto no porto tal, o que dá a ideia de estar quieto ou parado.

“Mais grave erro encontramos no § 5.º, princípio. Transcrevendo a frase, denotaremos qual o erro na colocação dos complementos e qual a impropriedade de terminá-la. Diz o Superior mestre: este busto consolará do trabalho acerbo e ingrato, o que não é lá grande classicismo. Dever-se-ia dizer: Este busto consolará o trabalho acerbo e ingrato — com?… o quê?…

“Falta o complemento de modo.

“(Vide a Gazeta de segunda-feira, 3 de junho de 1901 e Jornal do Commercio, da mesma data.) — Rio, 7 de junho de 1901 — Francisco de Mendonça.”

No folhetim da próxima segunda-feira, acabando com o sr. Machado de Aseis, direi duas palavras ao belo poeta do Cavaleiro do Luar, e começarei a conversar com o Sr. José Veríssimo, a quem tenho muito que dizer.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 10/6/1901, número 161, páginas 1 e 2, na seção de folhetim.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_02/9741

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_02/9742

__________________________

MEIA DÚZIA DE LIVROS

V

17 de junho de 1901

Andam por aí os discípulos do Sr. Machado de Assis a repetir, desde manhã cedo até alta noite (de noite, principalmente) que o seu ilustre chefe é impecável, que “nunca apareceu no Brasil, nem aparece atualmente entre nós quem soubesse ou saiba manejar a pena com tal pureza de estilo, beleza de forma e originalidade de concepção”.

O povo, porém, tem o preciso bom senso para perceber logo à primeira vista quando a gralha se ostenta empavesada com as plumas do pavão; ri-se da engrossadora vozeria: desconhece competência em tais juízes; lembra-se perfeitamente da fábula do pardal que quis cantar de rouxinol… e mais uma vez consagra a sentença de que a crítica não mata o que tem de viver, assim como o elogio não dá vida ao que está condenado à morte.

Há no Sr. Machado de Assis um bom prosador a amparar um medíocre poeta, disse eu no primeiro folhetim da presente série. Fui rigorosamente justo até aquele momento em que só havia lido, além de todos os seus versos, três dos seus romances: o Brás Cubas, o Quincas Borba e o Dom Casmurro. Fui forçado, nestes últimos dias, a relê-los, folheando pela primeira vez o resto de toda a sua obra literária; e a conclusão que acabo de tirar é esta: o prosador não é tão bom como me parecia, e o poeta é inferior a qualquer dos nossos poetas medíocres.

Além dos muitos erros de gramática (já citados nos folhetins anteriores), dos repetidos erros de metrificação e da lamentável pobreza do seu estafadíssimo vocabulário, incorre também em galicismos, como no verso 14 da página 20, onde também fere uma regra de gramática, no complemento da oração, logo no verso imediato.

A sua maneira de poetar é fria e monótona; até nos assuntos mais ligeiros usa de processos pedantescos, como que pretendendo impor a aspereza de uma cadência forçada aos suaves encantos musicais da metrificação que mais se coaduna com a índole do nosso idioma.

Exemplo:

Eu conheço a mais bela flor;

És tu, rosa da mocidade,

Nascida, aberta para o amor.

Eu conheço a mais bela flor.

Tem do céu a serena cor,

E o perfume da virgindade.

Eu conheço a mais bela flor,

És tu, rosa da mocidade.

*

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

Teme acaso indiscreta mão;

Vive às vezes na solidão.

Poupa a raiva do furacão

Suas folhas de azul celeste.

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

*

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno;

Que a flor morta já nada val [vale].

Colhe-se antes que venha o mal.

Quando a terra é mais jovial

Todo o bem nos parece eterno.

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno.

O triolet, com este número de sílabas, só é admirável na língua francesa, onde hoje é pouco explorado. Muito mais gracioso ficaria, uma vez que mereceu as honras de ser transplantado das margens do Senna para as da nossa baía de Guanabara, se, em vez de 8 ou 9 sílabas tivesse apenas 7 sílabas, podendo-se ler assim mais ou menos (corrijo-lhe os versos ao correr da pena, pois tenho mais que fazer); — vejamos (Nota 1: outro erro grave do Sr. Machado de Assis: Mistura na Flor da Mocidade dois versos de nove sílabas com os demais, que são todos de oito):

Conheço a mais bela flor,

É a rosa da mocidade,

Nascida para o amor.

Conheço a mais bela flor.

Tem do céu serena cor,

Perfume de virgindade;

Conheço a mais bela flor,

É a rosa da mocidade.

*

Vegeta na solidão,

Qual filha da brisa agreste;

Receia indiscreta mão;

Vegeta na solidão.

Poupa-lhe o rijo tufão

As folhas de azul celeste;

Vegeta na solidão,

Qual filha da brisa agreste.

*

É colhida antes do mal,

É colhida antes do inverno;

Que morta já nada val [vale];

É colhida antes do mal.

Quando a terra é jovial

Todo o bem parece eterno.

É colhida antes do mal,

É colhida antes do inverno.

*

Mas… o que eu não posso fazer é andar a corrigir versos de um chefe de literatura. Seus discípulos que lhe vão dando as últimas tintas a ver se a coisa sai-nos carregada, ou… o que é mais provável ― se a emenda ainda sai pior do que o soneto.

Interrompi a demonstração, peça por peça, das repetições das seis palavras da sua predileção: último, pálido, lágrima, trêmulo, ilusão e flor. Citei apenas as dezenove primeiras peças do livro em questão; vejamos agora todas as restantes:

XX

Conduz nos braços trêmulos a moca,

Tem no espaçoso rosto a flor da vida, (Nota 2: Não disponho aqui do preciso espaço para analisar este espaçoso rosto.)

Angustioso e triste aos lábios trêmulos,

As faces banha de serenas lágrimas.

Daquelas gentes pálidas de Europa

O rosto inda de lágrimas molhado

Tem sagrado leito o último sono!

Lágrimas lhe espremeu dos olhos negros

Da minha vida a flor!…

Ou tinge a flor do mar, nunca a meu lado

De lacrimoso cajueiro as flores.

Antes que o último sol a melindrosa

Que às vezes tantas lágrimas nos custam.

Os lábios riso à flor, escasso e dúbio,

— Potira é como aquela flor que chora

Lágrimas de alvo leite…

Até que volte uma estação de flores,

A cor dará co’as flores de outros dias,

Doce ilusão que rápido se escoa.

Potira é como aquela flor que chora

Lágrimas de alvo leite…

Do almo, doce licor que extrai das flores,

Pousa na relva os trêmulos joelhos,

Não de lágrimas era aquele sítio

Ou só de doces lágrimas choradas

Flores que lhe ficaram de outro estio,

Flores que a desventura lhe há negado,

De não murchadas e cheirosas flores,

Volve a cabeça… trêmulo, calado,

E eterno a cinge de virentes flores,

E abre ao pé da rosal a flor da murta. (Nota 3: Nesta composição o Sr. Machado de Assis escreve sôfrego com dois ff (página 181, verso 26) e afoito com dois ff (página 182, verso 6).)

(Potira, página 130.)

XXI

Em que a flor que há de ser flor

E uma lágrima, a primeira.

Tenras flores, que outro tempo,

Tanta lágrima chorada (!)

Uma lágrima — era a última! (Nota 4: Qual última! Além de não ser a última, ainda vamos vê-la com muitas lágrimas.).

Que lhe restava chorar.

(Niâni, página 105.)

XXII

Estéreis nem as últimas ruínas…

E vê nascer e vê morrer as flores.

Não era a flor aberta

Como a rosa dos campos

E levemente pálida. Mais bela

Ias tu, alma em flor aberta apenas.

Vaso é digno de ti, lírio dos vales (Nota 5: O chefe de literatura também escreve lírio com y; assim: lyrio. ― ignora, naturalmente, que… nec semper lilia florent [nem sempre florescem os lírios].)

No próprio templo augusto. Último e forte

É a flor de trigo o mel de que se nutre.

Entra a pálida moça. Da parede

Uma lágrima

As lágrimas dos olhos desatemos.

Casta flor que aborrece os mimos do horto,

Nem da secreta lágrima na face

A sós consigo entre o seu Cristo e as flores.

O atrevido Duclerc, a flor dos nobres,

Trêmula foge à alcova e se encaminha

Último e derradeiro

Quando à pobre ruína a flor lhe pedem

Pálido sol… Não protesteis! Roubá-la,

Arrancá-la aos seus últimos instantes

A si, na palidez do rosto o velho

E a moça o riso lhe converte em lágrimas.

Mísera és tu, pálida flor, e sofre

De espinheiro e de flores enlaçadas.

De tanta glória há lágrimas, soluços.

Quem as vê essas lágrimas choradas?

A agradecer com lágrimas e vozes

Qual se pálida a vira…

O rosto esconde, mas tremor contínuo

Os lacrimosos olhos levantando

“Estas palavras últimas lhe cabem:

“Ir-se-me o último: ― Vamos: é já tempo!”

Trava do austero pai; flores disséreis

O eleito povo, flor suave e bela!

Trêmula a voz do peito lhe saía

De mal contidas e teimosas lágrimas

Da amarga vida, breve flor como ela.

(A Cristã Nova, página 214.)

XXIII

De repente, uma luz pálida e triste…

Com lágrimas alguns, todos com sangue,

A rir talvez das lágrimas choradas;

“Olhai”, repete o pálido Içaíba,

Senti rolar a lágrima primeira.

A pálida figura de Içaíba

Gloriosa e rica, uma chorada lágrima

Salva ao menos as últimas relíquias.

Assim falava o pálido Içaíba.

(A Visão de Jaciúca, página 217.)

XXIV

Do nosso sol achar o último leito,

Lágrimas certas que terá na campa.

Vinha comtudo o pálido poeta,

As suas forças últimas despende,

É o arranco final, quando o já frouxo

Olhar contempla as lágrimas do afeto,

Uma sombra de pálida saudade.

Não viste as nossas lágrimas; comtudo

A noite amiga derramou nas flores

Inda depois das últimas ruínas (Nota 6: É a segunda vez que o Sr. Machado de Assis nos fala de últimas ruínas. Serão mesmo as últimas?)

Uma sentida lágrima arrancada.

(A Gonçalves Dias, página 161.)

XXV

A branca flor do embiriçu descerra

E das límpidas lágrimas que chora

Então a luz nascente a flor modesta

Entrega o seio às ilusões viçosas

Tudo faz esquecer tua asa amiga

Ama-te a flor que desabrocha à hora

Em que o último olhar o sol lhe estende

(A Flor do Embiruçu, página ? [ilegível])

XXVI

Coisas passageiras flores o adornava.

Vive na tarde pálida de outono.

Guardar comsigo as ilusões primeiras

Uma história de lágrimas não pode.

E de afagos te cobre! Flor do mato.

Mais viçosa do que essas outras flores.

Duas únicas lágrimas o rio

A aurora as flores derramou e a noite.

De seu jovem senhor lágrima pura

Toda se esvai num pálido sorriso,

Uma flor desbrochada em seus quinze anos,

O seu trêmulo pé não tolhe a marcha;

Gelado o sangue e trêmulo recua

E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros.

(Sabina, página 267.)

XXVII

Uma história de lágrima chorada

Sobre as últimas ramas da floresta

A flor do ipê a viu brotar magoada,

Ainda em flor, a tua formosura.

Lágrimas de materno, amado seio;

Viu somente morrer a flor das vidas,

Ele, bebendo as lágrimas que chora

(Última Jornada, página 272.)

XXVIII

Vicejam flores

Nhandu, que é a flor da terra, inquieta voa…

(Os Orizes, página 243.)

XXIX

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.

(Uma criatura, página 293.)

XXX

A sua última agonia:

Calado fica: a quietação quieta;

Só lhe ficou na amarga a última cantiga.

(O Corvo, página 299.)

XXXI

Eu sou a vida, eu sou flor.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,

Dissecar a ilusão.

(A Mosca Azul, página 314.)

XXXII

Hão de os anos volver, mas como as flores,

Não consumiu o engenho, a flor, o encanto…

(Alencar, página 320.)

XXXIII

E a viva flor da ardente juventude…

Eram as notas como alheias flores.

(José de Anchieta, página 327.)

XXXIV

Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,

E até os últimos rafeiros.

(Os Animais Iscados da Peste, página 331.)

XXXV

Na flor dos anos, merencória e triste;

No pomposo jardim das lácias flores,

Célio, a flor dos vadios, nobre moço.

O poeta estremece. Brando e frio

O molho mais da moda, os versos últimos,

À sentença da sorte empalidece.

A namorada moça lacrimosa

Lágrimas de ternura…

(Clódia, página 344).

XXXVI

Vasco, a flor dos vadios da cidade (Nota 7: Na peça anterior, a flor dos vadios era Célio; nesta, a flor dos vadios é o Vasco.)

A flor do esquivo coração pedia;

Pálida e comovida lhe aparece

Dizem o último adeus, só lhe importava

Para matar as ilusões no peito.

(Velho Fragmento, página 358)

Os erros do Sr. Machado do Assis coincidem com os meus primeiros fios de cabelos brancos: quanto mais os arranco, em maior número surgem aos meus olhos. Já que não pinto estes, não pintarei mais com aqueles… Antes, porém, de lançar a última pá de cal sobre a cova comunal das suas últimas e pálidas

Ilusões de poeta malogrado,

cumpre-me observar que o ilustre chefe do Sr. José Veríssimo, abusando da sua literatura de catálogos, chega ao cúmulo de traduzir obras que se conhece de oitiva. É o caso de repetir com o espanhol: — Se eu visse, não acreditava; pero, cómo es usted quién lo ha visto, no puedo dudar… [mas, como foi você que o viu, não posso duvidar…].

O Sr. Machado de Assis leu naturalmente algures a tradução de um dos belos episódios da Divina Comédia do imortal Dante Alighieri. Traduzindo o fragmento já traduzido, não indagou de mais nada. “Isto não pode ser do Inferno, nem do Paraíso (disse com os seus botões), há de ser fatalmente do Purgatório!” E sem a devida consideração ao público (que felizmente o lê tão pouco, que ainda está à venda a primeira e única edição do seu primeiro volume) (8), mandou imprimir na coleção das suas Ocidentais o canto XXV do Inferno, com a falsa designação de canto do Purgatório.

(Nota 8: No Catálogo publicado no fim desta famosa edição de suas Poesias Completas, estão anunciadas à venda as edições únicas de todos os seus três livros de versos: Crisálidas, de 1864, à página 8, linha 31; Falenas, de 1870, à página 10, linha 9; e Americanas, de 1876, à página 7, linha 30.)

Ora aí está uma coisa que ele não é capaz de fazer: traduzir de preferência uma das mais atrevidas páginas do cantor das maldições supremas, precisamente aquela em que o gênio soberano do poeta pinta os órgãos da geração, explicando pela boca de Estácio, à maneira dos Escolásticos, o ato da fecundação humana.

Ele sentir-se-ia à vontade sempre que o original permitisse ao tradutor a opinião aristotélica, quanto à alma vegetativa, como elemento vital idêntico ao que equilibra as plantas; poderia bater palmas de contentamento na análise dos fenômenos da alma sensitiva e da alma inteligente; cairia até de joelhos quando Deus infunde ao feto o fogo sagrado. Mas quando o poeta trata da substância espermática, como a parte mais pura do sangue, que parte do coração, percorrendo todo o sistema arterial para produzir os seres num divino espasmo de gozo… Eu quisera ouvi-lo, sem gaguejar, repetir as demonstrações dantescas da virtude ativa do sangue masculino, e a da passividade da mãe!

Dante empresta à ação ativa do pai, na empresa da formação orgânica do embrião, a potência que forma as energias psíquicas, isto é, os sentidos da vista, do ouvido, etc.

O poeta chega a dizer que antes de tais manifestações vitais já o feto se move e sente, como a esponja marinha, ou os zoófitos, que participam simultaneamente das condições dos vegetais e dos animais.

Refere-se ao filósofo Averróis [filósofo muçulmano], o comentador [da obra] de Aristóteles, que no seu tratado De Anima [Sobre a Alma] afirmou que o intelecto possível, como faculdade do entendimento, era coisa diversa da alma. Segundo os escolásticos, o intelecto possível ou passível era a faculdade receptora das espécies inteligíveis, ao passo que o intelecto agente as recebia dos objetos materiais para transmiti-las ao outro e fazer-se compreender. Escoto [filósofo escocês] diz: “Nullus intellectus intelligit, nisi intellectus possibilis, quia agens non intelligit”.

Averróis, combatido por Tomás [de Aquino] e Escoto, afirmou erroneamente que existia uma inteligência universal única para todos os homens, não informante, mas assistente. Alude naturalmente a isto aquele terceto em que o poeta diz: “este ponto é tal, que um mais sábio que tu incorreu com a sua doutrina no erro de separar da alma o entendimento possível” etc.

Era opinião dos antigos, até Galileu, que o vinho era composto do sumo da parreira e do calor ou da luz de sol; Dante vale-se desta ideia material para explicar como se infunde o espírito ao corpo humano. Cícero [Catão o Velho, ou sobre a Velhice, 44 a.C.] diz, falando da uva, “Quae et succo terrae et calore solis augescens… maturata dulcescit”.

Seguem-se passagens menos dignas de nota; cita o princípio do hino que a igreja consagra nas matinas do sábado, Summo Deus Clementia, e que é cantado no purgatório pelas almas que se purificam da luxúria, porque nele se pede a Deus a pureza; e bradam, diz o poeta: “Depois da última estrofe daquele hino, gritaram em voz alta: — Virum non cognosco [Não conheço nenhum homem]; e em seguida repetiram-no em voz baixa. Terminado o hino, gritaram então: — Diana correu no bosque e expulsou Hélice dali, porque ela tinha saboreado o veneno de Vênus”.

Proferiram em voz alta as palavras ditas por Maria ao Arcanjo São Gabriel.

O poeta faz que as almas citem exemplos contrários aos vícios de que se purificam; elas enumeram os exemplos em alta voz, porque com isso as almas se acusam a si mesmas; mas o hino é cantado em voz baixa, como uma oração que elevam a Deus. E Diana, a caçadora virginal, sabendo que uma de suas ninfas fora seduzida por Júpiter, que lhe dera nos seus braços os maiores prazeres da carne, desterrou-a de seus bosques, convertendo-a em ursa. O seu divino amante arrebatou-a ao céu, onde eternamente se ostenta em uma das duas constelações boreais, a Ursa Maior.

Eis em síntese o Canto XXV do Purgatório. Quem se der ao trabalho de ler o que o Sr. Machado do Assis fez imprimir no seu livro de versos, de páginas 334 a 340, com o falso título de Dante, Purgatório, canto XXV, se convencerá de que ele nem sabe o título do poema que finge ter traduzido, quando a sua versão, inquestionavelmente vertida de outra tradução, é precisamente a do canto XXV… do Inferno.

[Observação: trata-se de um erro tipográfico, como revelado na apresentação deste artigo.]

Traduzir o Dante não é tarefa que esteja simplesmente ao alcance da vontade de quem quer que seja; é só para quem pode em largos ombros de atleta sustentar, de pé, a pesada armadura de aço do maior cavaleiro das cruzadas do ideal. É mister muito talento, muita erudição, muita altivez de caráter e muita grandeza de alma para poder interpretar fielmente a energia daquele espírito firme, a energia daquela vontade soberana, todos os dons daquela memória feliz, daquela consciência transparente e daquela sinceridade heroica.

Lendo-se A Divina Comédia percebe-se a avidez com que o Dante, o sublime poeta de Beatriz se entregou ao estudo das sete artes, e sobretudo da astronomia, a geometria e a música. — Quais são os conhecimentos teóricos e práticos do Sr. Machado de Assis? Se ele nem sabe escrever com a precisa correção gramatical a própria língua em que pela primeira vez pediu pão com manteiga!…

— Uf!… estou livre dos seus abomináveis versos. Vamos aos de Gustavo de Santiago… e à prosa do já quase esquecido Sr. José Veríssimo. — Até segunda-feira.

MÚCIO TEIXEIRA.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 17/6/1901, número 168, página 1, na seção de folhetim.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_02/9767

--

--

Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.