Música Inglesa (1888): uma série inédita de artigos de Machado de Assis em jornal escravocrata?
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Outros artigos sobre Machado de Assis
A crítica literária vingativa e o seu maior alvo no Brasil: Machado de Assis — 1. A vingança de Sílvio Romero | 2. A vingança de Múcio Teixeira
Machado de Assis e o Negro: um artigo de 1940, ainda atual
O Mestre (amargurado): um artigo de 1906 sobre Machado de Assis
Dom Casmurro: A crítica literária e a “traição” de Capitu: 1. José Veríssimo: o primeiro a suspeitar da história de Bentinho (1900) | 2. Francisco de Paula Azzi: a primeira defesa categórica da fidelidade de Capitu (1939)
Memórias Póstumas de Brás Cubas: 1. A segunda e desconhecida publicação do romance (1880) | 2. Uma crítica inédita (1881) | 3. Você conhece o romance Memórias Fóstumas de Brás Cubas? | 4. A recepção crítica ao romance (1880–1882)
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Tema: a série de sete artigos intitulados Música Inglesa e publicados no jornal escravocrata Novidades em 1888, todos com a assinatura “M. A.”, uma das mais usadas por Machado de Assis.
Pistas adicionais para a autoria (ainda não estabelecida): o tema musical (caro a Machado); o foco na cultura inglesa (influente na literatura do autor), a colaboração comprovada (embora inédita) do autor com o jornal, no período de publicação da série; o caráter experimental dos textos (outra marca de Machado); e alguns aspectos de conteúdo dos artigos.
A série de artigos:
1. Sinfonia de abertura (22/8/1888);
2. Liberdade de cultos (28/8/1888);
3. Pardal Mallet (31/8/1888);
4. Janota (6/9/1888);
5. O Processo de “La Terre” (11/9/1888);
6. No Silêncio (19/9/1888);
7. Poesias de Olavo Bilac (10/10/1888).
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Um enigma literário para os estudiosos
O mais importante escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis (21/6/1839, Rio — 29/9/1908, Rio) recorreu a no mínimo 20 pseudônimos em sua carreira literária, utilizando-os sempre ao publicar contos, crônicas, artigos e poemas em periódicos do século XIX. Nos livros, assinou com o próprio nome.
Um desses pseudônimos, de largo emprego, era constituído das iniciais de seus últimos sobrenomes (Machado de Assis): “M. A.”.
O pseudônimo “M. A.”
Reproduzo a seguir o trecho relativo ao pseudônimo “M. A.” disponível em página do site oficial do autor, mantido pela Academia Brasileira de Letras. A página, por sua vez, reproduz parágrafos da obra Bibliografia de Machado de Assis, de J. Galante de Souza (MEC, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1955).
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M. A.
Com estas iniciais subscreveu o autor:
. Um trabalho em O Espelho (Rio, 1859);
. Alguns em A Marmota (Rio, 1860);
. Grande parte de sua colaboração no Diário do Rio de Janeiro (os Comentários da Semana, as Conversas Hebdomadárias, os folhetins Ao Acaso, etc.), entre 1861 e 1865;
. Uma poesia em A Primavera (Rio, 1861);
. Um conto no Jornal das Famílias (Rio, 1864);
. Quatro poesias (duas originais e duas traduzidas) na Semana Ilustrada (Rio, 1869);
. Uma poesia em A Luz (Rio, 1872);
. E alguns trabalhos em A Estação (Rio, entre 1882 e 1885).
Quanto à colaboração subscrita por M. A. em A Luz, não padece dúvida que seja de Machado de Assis, porque não só o seu nome figura na relação de colaboradores do periódico, mas também há, no mesmo, colaboração assinada [por ele].
O conto subscrito por M. A. no Jornal das Famílias é Frei Simão, incluído pelo autor em Contos Fluminenses (1870).
Das poesias publicadas na Semana Ilustrada, o autor recolheu duas (Cegonhas e Rodovalhos e Menina e Moça) ao volume Falenas (1870).
O fato de trabalhar ele na redação do Diário do Rio de Janeiro, aduziremos as seguintes provas:
a) Todos os folhetins Ao Acaso estão subscritos por M. A., com exceção de dois únicos: o de 25/7/1864, por M. de A., e o de 3/1/1865, por Machado de Assis. Não seria sensato admitir que [a] crônica semanal (subordinada, aliás, sempre ao mesmo título) tivesse dois redatores: um M. A. ou M. de A., e outro Machado de Assis .
b) Feliciano Teixeira Leitão, na crítica que fez ao volume Crisálidas, diz: “A crítica parcial do Dr. Caetano Filgueiras obrigou-nos a traçar essas considerações, fez merecer-nos menos o livro do autor dos folhetins Ao Acaso do Diário do Rio de Janeiro…” (cf. Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, Rio, junho de 1866, Vol. III, pp. 378–384). É o testemunho de um contemporâneo, cuja crítica está datada de outubro de 1864.
c) No folhetim Ao Acaso, de 1/8/1864, vem inserta uma poesia, Horas Vividas, que é incluída depois, em Crisálidas (1864), pp. 101–103.
d) Joaquim Serra, em carta a Machado de Assis, datada de 16/11/1864, agradece as boas referências que lhe foram feitas pelo destinatário no n.º 293 do Diário do Rio de Janeiro (cf. Revista da Academia Brasileira, n.º 5, de julho de 1911, pp. 59–60). Tais referências encontram-se exatamente no Ao Acaso de 24/10/1864, subscrito por M. A.
e) No folhetim de 3/1/1865, assinado Machado de Assis, há diversas referências aos folhetins anteriores, [de] igual título, entre as quais avulta a seguinte: “Para ligar esta revista à última que eu publiquei antes do intervalo de silêncio, devera [deveria] passar em resenha todos os acontecimentos que se produziram nesse intervalo”.
A “última” (revista) é o folhetim de 29/11/1864, subscrito por M. A.
f) No Ao Acaso de 24/1/1865, diz o autor: “Os leitores que me acompanham desde junho do ano passado…”. Realmente essas crônicas começaram em 5/6/1864, tiveram sempre o mesmo título e foram subscritas por M. A., com exceção da de 3/1/1865, que, como dissemos atrás, foi assinada [com o próprio nome].
A título de curiosidade, vale a pena transcrever o que contou o próprio autor, na crônica de 11/9/1864:
[“Mais algumas linhas e vou escrever as minhas iniciais.”]
“― Que querem dizer estas iniciais? ― perguntava-se em uma casa esta semana.
“Uma senhora, em quem a graça e o espírito realçam as mais belas qualidades do coração ― disse-me um amigo ― respondeu:
“― M. A. quer dizer ― primeiramente, ‘Muito Abelhudo’ ― e depois, ‘Muito Amável’.”
[“O meu amigo acrescentou:
“― Alegra-te e comunica isso aos teus leitores.”]
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Portanto, é inquestionável a utilização do pseudônimo “M. A.” por Machado de Assis, até 1885.
A descoberta da série de artigos intitulados Música Inglesa
Essa descoberta, realizada na madrugada de 12 de abril de 2020, aconteceu inesperadamente, assim como tantas outras durante uma pesquisa histórica.
Ao buscar os termos “A Noiva” e “romance realista” nos exemplares da Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, visando identificar o mês de lançamento desse romance de estreia de Aderbal de Carvalho, incluído na penúltima década da minha Cronologia atualizada da ficção brasileira: 1682–1900, deparei-me com as iniciais “M. A.”, seis linhas abaixo do resultado “noiva”, no final do texto intitulado Música Inglesa.
“De súbito, a porta abriu-se: a noiva ia aparecer…
“E então, com o susto que lhe causara aquele ruído, contraiu o dedo no gatilho e desfechou.
“Morto…”
M. A.
Novidades (RJ), 6/9/1888, número 194, página 2, primeira e segunda colunas — http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1614
Imediatamente, o alarme interno de “descoberta à vista” disparou. Seria possível?
O texto, um conto intitulado Música Inglesa — Janota, saiu em 6 de setembro de 1888 no jornal Novidades. Esse periódico, assim como aqueles em que Machado divulgou seus contos, artigos, crônicas e poemas, era publicado no Rio de Janeiro. E na linha após o final do texto lia-se: “M. A.”. As pistas eram fortes.
Após cerca de uma hora de pesquisa, durante a qual constatei a ausência do título do texto na lista oficial de contos, artigos ou crônicas do autor, assim como a ausência do título do periódico na lista de publicações associadas à obra de Machado, a suspeita havia se transformado em quase certeza.
Até aquele momento havia um só texto.
Ao buscar outras ocorrências da assinatura “M. A.” em dias próximos a 9 de setembro de 1888, descobri que Música Inglesa — Janota não se tratava do título de um conto, e sim o de uma série de sete textos publicados naquele ano, do qual o primeiro descoberto era, pela ordem, o quarto.
A série de artigos Música Inglesa
A série de sete textos é composta de uma apresentação, dois contos, duas críticas literárias, a transcrição de uma entrevista, e um artigo crítico sobre a Igreja Católica brasileira.
Abaixo, os títulos da série Música Inglesa e os links para os sete textos, publicados de 22 de agosto a 10 de outubro de 1888 no jornal Novidades.
1. Sinfonia de abertura, 22/8/1888, número 181, página 2, quarta e quinta colunas.
Mera apresentação da nova coluna. O autor expõe a intenção de usar o espaço para realizar experimentações, sem nenhum assunto definido, de modo “breve e leve”.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1566
2. Liberdade de cultos, 28/8/1888, número 186, página 2, segunda e terceira colunas.
Crítica à Igreja por sua oposição a um projeto de lei que visava garantir o direito de liberdade religiosa a todos os brasileiros, assim como aos imigrantes.
Uma curiosidade: a campanha da Igreja teria sido impulsionada por uma fake news (notícia premeditadamente falsa): o projeto seria destinado a acabar com as religiões no Brasil.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1586
3. Pardal Mallet, 31/8/1888, número 189, página 2, terceira e quarta colunas.
O primeiro dos dois textos de crítica literária. O autor confessa a mudança de avaliação sobre o colega escritor, de péssima para ótima, com base em sua evolução literária.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1598
4. Janota, 6/9/1888, número 194, página 2, primeira e segunda colunas.
O primeiro dos dois contos da série. Inicia em tom festivo, com alusão a música (de um baile que festejava um casamento), torna-se melancólico e progride até o final trágico.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1614
5. O Processo de “La Terre”, 11/9/1888, número 197, página 2, segunda e terceira colunas.
Tradução de uma entrevista concedida pelo escritor francês Émile Zola, centrada no escândalo da descrição explícita de um ato sexual entre animais e de um parto humano, constantes da obra La Terre (A Terra), assim como em suas implicações sociais e artísticas.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1626
6. No Silêncio, 19/9/1888, número 204, página 2, antepenúltima, penúltima e última colunas.
O segundo e último dos dois contos da série, cujos personagens são um mendigo e um cão. Assim como o primeiro conto, desenvolve-se para um final trágico.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1654
7. Poesias de Olavo Bilac, 10/10/1888, número 222, página 1 (última coluna) e 2 (primeira coluna).
O segundo e último texto de crítica literária, altamente elogiosa, centrada nos poemas do livro Panóplias (1888), cujo título não é mencionado pelo autor.
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1713
Outros possíveis autores: Mário de Alencar e Medeiros de Albuquerque
Dois outros escritores cujas iniciais “M. A.” poderiam representar seus nomes publicaram textos literários no jornal Novidades em 1888.
1. Mário de Alencar.
O descarte do nome de Mário de Alencar (30/1/1872, Rio — 8/12/1925, Rio) como autor da série de textos Música Inglesa é fácil e garantido. Filho do romancista José de Alencar, Mário estava com 16 anos à época da publicação da série. Que editor deixaria um jovem inexperiente assumir uma coluna e praticar a crítica literária de grandes autores nacionais e internacionais?
Em 16 de janeiro de 1888, o Novidades publicou um soneto sem título (reproduzido do Diário Mercantil de São Paulo), que marcou a estreia de Mário de Alencar na literatura, informando ser o autor um quintanista do Colégio Imperial Pedro II, então com 15 anos de idade.
Outro soneto de Mário, Minhas Lágrimas, saiu no jornal em 15 de março de 1888 (número 59, página 2, terceira coluna):
http://memoria.bn.br/docreader/830321/1368
O primeiro texto em prosa do jovem escritor sairia no jornal somente em 15 de fevereiro de 1889: um breve conto intitulado A Vingança (número 317, página 2, antepenúltima coluna):
http://memoria.bn.br/docreader/830321/2112
Dois outros indícios confirmam a exclusão de Mário como autor da série Música Inglesa: (1) Os três textos de Mário de Alencar vinham assinados com o nome completo do autor (interessado, obviamente, em divulgar seus primeiros trabalhos com o próprio nome); (2) Nenhuma fonte indica a associação entre o pseudônimo e Mário, o qual se valeu somente dos pseudônimos “Deina” e “John Alone” em sua carreira literária.
2. Medeiros e Albuquerque.
O escritor Medeiros e Albuquerque (4/9/1867, Recife — 9/6/1934, Rio) também publicou três textos no periódico Novidades em 1888. Assim como Mário de Alencar, dois de poesia e um texto de ficção.
Os dois poemas foram o belo soneto Cérebro e Coração (transcrito na coluna do também escritor Aluísio Azevedo intitulada De Palanque)…
… e um poema longo intitulado O Padre Tenório (Lenda pernambucana), em 5 de agosto de 1888 (número 218, página 2, terceira coluna):
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1698
O texto de ficção, Filho Morto, saiu em dois dias na seção Folhetim, em 15 e 18 de setembro de 1888, ambos os episódios na página 2 (números 201 e 203).
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1642
http://memoria.bn.br/DocReader/830321/1650
Dois indícios permitem excluir Medeiros como possível autor da série Música Inglesa: (1) Os três textos de Medeiros e Albuquerque vinham assinados com o nome completo do autor; (2) Nenhuma fonte indica associa o pseudônimo “M. A.” a Medeiros, o qual se valeu dos pseudônimos “Armando Quevedo”, “Atásius Noll”, “J. dos Santos”, “Max” e “Rifiúfio Singapura” em sua carreira literária.
Resta, portanto, o nome de Machado de Assis como o mais provável autor dessa série de textos (probabilidade reforçada pelos indícios expostos a seguir).
Certeza absoluta, essa dependerá da análise dos sete textos por especialistas na obra do autor. Daí o ponto de interrogação presente no título deste artigo.
Outros indícios de autoria de Machado
Além do pseudônimo clássico no final de cada texto da série Música Inglesa, outros indícios reforçam a hipótese da autoria de Machado de Assis.
1. A relação de Machado com o jornal Novidades.
Não encontrei em fonte alguma o registro da relação de Machado de Assis com o jornal carioca Novidades ― uma ausência esperada: o Novidades, lançado no início de 1887 por iniciativa do Partido Conservador, tinha como propósito combater o movimento abolicionista, já próximo da vitória final contra os escravocratas.
Em termos de expectativa, Machado de Assis, negro e abolicionista, seria a última pessoa a se associar a um projeto de tal natureza.
Mas a realidade tem o estranho hábito de ser mais complexa que as nossas expectativas.
Alcindo Guanabara (1865, Rio — 1918, Rio), diretor do Novidades desde a sua fundação, militava na imprensa a favor do abolicionismo, tendo escrito em 1886 vários artigos de destaque a favor da causa no Gazeta da Tarde, jornal abolicionista fundado por José do Patrocínio (1853, Rio — 1905, Rio), um dos maiores expoentes desse movimento.
As mudanças de casa e de posição geraram um conflito público entre os dois jornalistas:
Além de Alcindo Guanabara, quatro importantes colaboradores do Novidades, Moreira Sampaio (1851, Salvador — 1901, Rio), Coelho Neto (1864, Rio — 1934, Rio), Artur Azevedo (1855, São Luís — 1908, Rio) e Olavo Bilac (1865, Rio — 1918, Rio), também faziam parte do movimento abolicionista. Nenhum deles se absteve de servir de atrativo ao público leitor do jornal em troca de remuneração, apesar de seus valores.
“Nessa época” refere-se a fevereiro de 1887. “Ele”, a Alcindo Guanabara.
Vimos acima, ainda, a participação de Medeiros e Albuquerque no jornal. Medeiros era filho de mãe escrava e, embora não tivesse participação destacada no movimento abolicionista, era publicamente favorável à causa.
Registre-se a favor de Machado que a sua contribuição ao jornal conservador e escravocrata iniciou-se depois da vitória do movimento abolicionista, concretizada em 13 de maio de 1888.
Apesar disso, veja este início do editorial diário do Novidades, escrito por Alcindo Guanabara em 5 de outubro de 1888, período em que Machado colaborava com o jornal, provavelmente com a série Música Inglesa e certamente em outra iniciativa (veremos abaixo):
“O abolicionismo, não tendo mais o negro para encapar a sua verdadeira orientação, explodiu denunciando claramente os seus intuitos que não são senão, tanto quanto estiver em suas forças, desorganizar o país atacando insistentemente a propriedade que é a base de toda a sociedade”.
Na prática, a situação pouco difere da atual: escritores e intelectuais da esquerda política colaboram como articulistas para vários jornais assumidamente de direita (que compõem a maioria desses veículos, assim como no século XIX), motivados por interesse financeiro (a necessidade de ganhar a vida) ou estratégico (a ocupação do espaço possível na mídia).
Em troca de um atrativo para os leitores do outro lado do espectro político, esses veículos permitem que temas e teses alheias ao ideário conservador sejam tratados nos artigos de tais colaboradores.
Três dias antes do editorial acima, um óbvio reforço da posição política do jornal Novidades a favor do Partido Conservador e contra a libertação dos escravos, duas notas na primeira página do Novidades informavam sobre a participação de Machado de Assis como jurado em um “torneio de rimas” promovido pelo jornal.
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Torneio de rimas
“Continuam a afluir traduções dos dois belíssimos sonetos de Heredia. Devemos assinalar o nosso reconhecimento aos poetas que não nos têm regateado o fruto do seu talento, honrando-nos com as suas produções, e é de justiça destacar os poetas residentes nas províncias que em maior abundância têm acudido ao nosso convite.
*
“A redação do Novidades convidou para juízes deste pleito os ilustres poetas Machado de Assis, Luiz Murat e Artur Azevedo.
“Apresentando estes três nomes temos a certeza de que damos aos Srs. concorrentes a maior garantia de equidade no julgamento e da idoneidade na apreciação.”
O torneio visava premiar a melhor tradução de dois sonetos em francês de autoria do cubano José María de Heredia (1842–1893)
Em 23 de outubro saiu o resultado do torneio, e o nome de Machado de Assis novamente apareceu na nota.
*
Torneios e Rimas
VEREDICTUM
Depois de demorado o refletido estudo sobre as 14 traduções dos belos sonetos de J. M. Heredia, o júri que o Novidades nomeou para julgá-las, composto dos ilustres escritores Machado de Assis, Luiz Murat e Artur Azevedo, pronunciou o veredictum que em seguida transcrevemos:
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22 de outubro de 1888.
Nenhuma das traduções é perfeita. As melhores por ordem de classificação, tanto de um como de outro soneto, são as que vêm assinadas por
Fingal.
Cisne.
Macário.
(Assinado.) Machado de Assis, Luiz Murat e Artur Azevedo.
Essas imagens provam que Machado de Assis, em outubro de 1888, não considerava incoerente com seus valores trabalhar para um jornal de posições conservadoras e antiabolicionistas, levando a este o seu prestígio já estabelecido como escritor.
2. O ecletismo literário de Machado.
Escritor profissional, apesar de viver do salário obtido com o trabalho como oficial na Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Machado de Assis construiu uma obra literária marcada pela versatilidade. Escreveu contos, novelas, romances, folhetins, artigos de opinião, textos de humor, peças teatrais e crônicas, além de atuar na críticas literária e musical, e ainda traduzir libretos de óperas.
A colaboração de Machado na mídia durou de 1858 a 1904. Os textos breves constituíram a maior parte da obra do escritor: mais de 200 contos e de 600 crônicas.
Essa atitude de experimentação com os gêneros e os assuntos combina bem com a proposta da série de textos Música Inglesa. No primeiro deles, Sinfonia de Abertura (22/8/1888), no qual é introduzida a coluna, o autor expõe a intenção de não estabelecer limites, deixando-se livre para tratar de qualquer assunto, mas sempre de modo “breve e leve”.
Ao anunciar a diretriz, o autor valeu-se da analogia com a aparente balbúrdia organizada de uma orquestra inglesa, descrita em livro do escritor português Ramalho Ortigão, na qual cada músico parece seguir um caminho próprio, sem prejuízo do efeito agradável da execução nos ouvintes.
3. O título da série.
É consenso entre os estudiosos de Machado a paixão do escritor pela literatura inglesa, assim como pelo humor típico daquele povo. Vários estudos acadêmicos exploraram essa influência na obra do escritor. Alguns exemplos:
Machado de Assis e a Literatura Inglesa: um caso mal resolvido da crítica brasileira, Luiz Eduardo Meneses de Oliveira (sem data):
http://lfilipe.tripod.com/ingles/luizeduardo.htm
A Tradição do Humor Inglês em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Maria Valeska Rocha da Silva (2015):
https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/21647/1/MariaValeskaRochaDaSilva_DISSERT.pdf
Influências Literárias Inglesas em Machado de Assis, ciclo de estudos da Academia Brasileira de Letras (2008):
http://www.academia.org.br/eventos/influencias-literarias-ingleses-em-machado-de-assis
A relação de Machado com a música clássica (tema do primeiro texto da série) também é conhecida. O escritor era sócio-bibliotecário do Clube Beethoven, fundado em 1882, no qual se promoviam saraus com expoentes nacionais daquele gênero musical (veja o último nome na imagem).
A própria ABL já promoveu alguns encontros intitulados A Música que Machado ouvia, reunindo músicos de câmara para executarem músicas de Schubert, Paganini, Schumann e Beethoven no Teatro Raimundo Magalhães Jr., no Rio, com transmissão ao vivo no portal da Academia:
http://www.academia.org.br/noticias/musica-que-machado-de-assis-ouvia-inspira-duo
Além disso, o escritor aventurava-se na crítica musical e chegou a traduzir libretos de óperas.
Sugestão de leitura: Machado e a Música, de Leniza Castello Branco (sem data):
http://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n2/download/massis_e_a_musica.pdf
4. O conteúdo dos artigos.
. Como já foi mencionado, o título e o conteúdo do primeiro texto (Sinfonia de Abertura, 22/8/1888), remetem a uma das paixões artísticas de Machado: a Música. Vem dela a analogia aplicada à própria série: Música Inglesa.
A promessa de ser breve e leve combina com o estilo literário de Machado: simples e sintético. Veja, a propósito, a citação abaixo, em carta remetida a Joaquim Nabuco (item relativo ao terceiro texto).
. O segundo texto, Liberdade de cultos (28/8/1888), uma crítica à Igreja Católica brasileira, ousa ao defender uma causa liberal (os direitos de culto a qualquer religião, extensivo aos imigrantes) em jornal assumidamente conservador.
. O terceiro texto (Pardal Mallet, 31/8/1888), o primeiro de crítica literária, trata da obra de Pardal Mallet, escritor com quem Machado de Assis viria a fazer parte do primeiro “sindicato” efetivo de escritores do Brasil, a Sociedade dos Homens de Letras, dois anos depois (1890). O órgão lutou pela melhoria de pagamento dos autores e por seus direitos autorais.
Um trecho da crítica:
“[…] traindo-se pela virtude que reputo capital em um escritor: o desejo de conseguir a originalidade.”
Um trecho de carta de Machado a Joaquim Nabuco em 1906 (negritos acrescentados):
“Pensamentos valem e vivem pela observação exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda; não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer.”
https://correioims.com.br/carta/a-graca-do-dizer/
. O quarto texto (Janota, 6/9/1888), o primeiro dos dois contos, expressa visão determinista da vida e poderia ilustrar uma citação extraída do romance Esaú e Jacó (1904): “Não se luta contra o destino; o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos”.
. O quinto texto (O Processo de “La Terre”, 11/9/1888) é uma tradução de entrevista do escritor francês Émile Zola, a quem Machado defendera em artigo crítico de 1878, acusando o português Eça de Queirós de plagiar o romance La Faute de l’Abbé Mouret (1874) com o seu O Crime do Padre Amaro (1875):
“O próprio O Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l’Abbé Mouret.”
Eça de Queirós: “O Primo Basílio”, O Cruzeiro, 16 e 30/4/1878.
A admiração do autor por Zola se expressa no comentário final, após a tradução da entrevista.
Registre-se o tema central da entrevista: a descrição explícita de um ato sexual entre animais e de um parto humano, temas um tanto inconvenientes em jornais conservadores.
. O sexto texto (No Silêncio, 19/9/1888) é o segundo e último conto da série, também de tom pessimista como o primeiro (Janota). Ceticismo e pessimismo eram duas marcas da visão de mundo de Machado de Assis.
. O sétimo e último texto (Poesias de Olavo Bilac, 10/10/1888), o segundo e último de crítica literária, traz uma avaliação elogiosa da obra do autor de Via Láctea. Na época, Olavo Bilac participou de grupos literários com Machado de Assis, como o Clube Gonçalves Dias e o Grêmio de Letras e Artes. Veja abaixo:
Olavo Bilac também esteve junto de Machado na fundação da Academia Brasileira de Letras (1897), da qual o Bruxo do Cosme Velho foi o primeiro presidente.
. Note-se ainda, além do conhecimento do francês demonstrado pela tradução da entrevista de Émile Zola, o compartilhamento de um costume literário entre o autor de Música Inglesa e Machado de Assis: a inserção frequente de palavras, expressões idiomáticas e frases em francês e em latim, nos textos de sua criação.
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Os sete textos da série Música Inglesa — transcrição integral
1. Sinfonia de abertura (22/8/1888).
Se talvez no [livro] John Bull [subtítulo: Depoimento de uma testemunha acerca de alguns aspectos da vida e da civilização inglesa, 1887], de Ramalho Ortigão [escritor português]…
Tratava-se de música inglesa, e o autor, descrevendo um concerto, dizia que os músicos, com a nobre independência que caracteriza os filhos de Albion [a Inglaterra], tocavam — cada um para seu lado — a parte que lhes competia, sem indagar dos restantes. Impassível, na contemplação de um ideal qualquer, próprio deles, seguia pela música afora, tocando à sua guisa, livremente…
Do compasso — nem notícia!
Cada nota, ascendendo no espaço cheia de gloriosas aspirações, encontrava outras e outras que subiam também. Então, faltando o lugar, acotovelavam-se furiosas, abrindo caminho a socos, com esperança de alcançar o céu.
Os ouvintes — uns ingleses ruivos de suíças cor de fogo e monóculos quadrados; donzelas esguias e chatas, de olhos felinos cor de chá verde, castas e insensuais como heroínas de [Charles] Dickens [romancista inglês, 1812–1870], extasiavam-se de boca aberta…
Guinchando estrídula ou ribombando tempestuosa, a música prosseguia impávida, pretendendo arrulhar amorosas queixas… E, entretanto, da junção das mais disparatadas fantasias subia para os iniciados um encanto suavíssimo, que lhes enrolava a alma em visões gostosas de amor.
Pois bem, há nesta seção qualquer coisa de idêntico a essa música.
Surdo — incapaz, portanto, de perceber o que tocam a meu lado — ; sem partitura diante de mim; míope demais para ver a batuta do regente da orquestra, instalei-me neste cantinho disposto a tocar todos os dias imperturbavelmente um trecho qualquer… É possível que, nestas condições, enquanto os demais figurantes executam, compenetrados, um bom trecho de música clássica, eu meta — escapando a huguenotes [protestantes franceses, rivais dos católicos] torvos, benzendo punhais — uma copla francamente canalha de Offenbach [compositor francês de origem alemã, 1819–1880]… Em compensação, aos coros de regozijo dos meus companheiros poderei juntar compassos lúgubres de marchas fúnebres.
E assim iremos…
Raras vezes é possível que tudo vibre de acordo.
Calculo, porém, que deve haver um certo chiste na mistura do grotesco ao sério, e do trágico ao cômico: féretros que passam ao lado de bailarinas, mostrando sob a etérea brancura das gazes a carnação rija das belas pernas…
E para que a confusão seja maior, aqui não haverá estilos, nem normas de espécie alguma. Comentários a fatos banais, contos, fantasias, iluminuras! Tudo, enfim, pode aparecer. E nem a Prosa é de rigor. O Verso tem bons direitos à representação.
Programa — só haverá um: ser leve e ser breve. Leve: — sem pretensões de erudição estopante e maçuda, nem tiradas prenhes de argumentações difíceis. Breve: — feita em poucas palavras, simples e despretensiosas.
E é tudo.
Estamos bem e devidamente apresentados. Donc ― au revoir! [Portanto, até mais!].
M. A.
2. Liberdade de cultos (28/8/1888).
Apareceu ontem a representação dirigida à Câmara por algumas senhoras brasileiras. A exposição de razões mal arranjada e, sobretudo, mal escrita, nada argumenta de novo. A importância do documento está, ao que parece, no avultado número de assinaturas.
É mister, portanto, que se revele como se obtiveram milhares dessas assinaturas. É mister que se saiba que a grande maioria é de crianças arranjadas em colégios. Só da Escola Normal, com documentos oficiais, se pode provar que há centenas de nomes de moças e meninas que assinaram quase sem saber o que faziam, obedecendo a esta intimativa: “Monsenhor manda para a Sra. assinar”. E como Monsenhor tem de examinar no fim do ano e é professor do estabelecimento, a lista foi crescendo…
Assim se procedeu em muitos colégios.
O que há, porém, de importante a notar é que maior parte dos nomes publicados na lista é de moças de menor idade, que não têm por consequência o direito de representação. Há séries de cinco e seis irmãs de uma só família, onde não há talvez nenhuma que tenha a idade legal para dirigir-se, e todas aparecem com a pretensão de dirigirem os graves negócios do Estado. Há na lista nomes de ex-escravas inteiramente analfabetas. E ninguém sabe quantos se inventaram.
Mas aceitemos tudo.
Em primeiro lugar, a sociedade atual, que afastou o sexo feminino das graves deliberações das leis públicas, a sociedade que lhes tem recusado a educação sólida e completa que se faz precisa para a discussão de importantes matérias, não pode aceitar que essas senhoras, movidas por impulsos do coração e obedecendo a sugestões de confessores, venham em um dado momento estorvar a marcha dos negócios públicos.
Em segundo lugar, além da incapacidade legal para usar do direito de representação do maior número das signatárias, sabem todos que se solicitaram as assinaturas mesmo nas casas nobres dizendo-se: que era contra uma lei que queria acabar com a religião no Brasil.
Apesar, porém, de tudo isto, aceitando como na maioridade crianças de 10 anos; acreditando como da melhor sociedade velhas negras ex-escravas e analfabetas — pergunta-se o que provam as 14.000 assinaturas?
Provam única e simplesmente que há 14.000 senhoras que não querem a lei. É caso para pêsames.
É preciso que o governo, que tem o dever de fazer adiantar a lei, pense em duas coisas. O número, que parece avultado, é insignificantíssimo. Mesmo que as signatárias fossem todas da capital, convinha lembrar que a capital tem mais de 500.000 habitantes. E como a lei não deve exercer seus efeitos só na capital, mas em todo o Império, é bom recordar que este tem, pelo menos, 13.000.000 de habitantes.
Por outra consideração, o governo deve pensar nas representações de fazendeiros que têm pedido indenização e que vêm cheias de nomes de homens conhecidos e respeitáveis. E se ele tem se julgado com o direito de negar-lhes o que solicitam, como irá atender a uma representação feita por crianças e cujas assinaturas ninguém sabe se são reais? É lícito duvidá-lo, pelo menos, porque o meio de provar a autenticidade é o reconhecimento de firmas pelos tabeliães.
Todavia, o que é certo é que a lei está sem andamento. Isto se compreendia sob o governo da Regência que, se algum dia pudesse subir ao trono nesta terra imbecil, transformaria o Brasil em uma sacristia enorme: covil de padres pouco escrupulosos e estrangeiros avarentos que teriam de nos governar.
Mas hoje já não tem razão de ser, se é de fato o Sr. Dr. Pedro II que nos está governando.
Arquive-se a célebre representação com um documento da perfídia clerical que arvora o sorriso ingênuo de moças formosas em rictos de carrascos, perseguindo alheias crenças… Arquive-se para ver-se o que seria o governo da Regente, se ela chegasse a nos governar…
M. A.
3. Pardal Mallet (31/8/1888).
Conhecem-no?
Viram-lhe certamente a gravata vermelha: uma nota rubra gritando estridente, viram-lhe o chapéu de abas imensas, o bigode louro afloretado aos cantos da boca… Viram e foram dizendo: que tipo excêntrico!
É exatamente isto.
Li, há talvez um ano, o primeiro livro dele que me chegava às mãos: Meu Álbum. Era um folheto amarelo e raquítico, de poucas páginas, escrito em uma ortografia impossível. O contexto não tinha a coesão de um trabalho de largo fôlego que permitisse definir um escritor. Série de esbocetos, eivados de um pessimismo feroz, abrindo-se por uma proclamação vermelha — positivamente a mesma cor da gravata — , série de escorços como os que às margens do trabalho, para firmarem a mão, fazem os desenhadores novéis; essa galeria despretensiosa me fez adivinhar no seu autor um espírito ávido de abrir caminho novo na literatura e na vida.
Aquilo traía-se em tudo: vinha desde a maneira de tratar os pequenos assuntos até a ortografia extravagante e fantasista, onde o K avultava, insinuando-se por toda a parte, aproveitando o voltar de uma página ou a mínima distração para trepar-nos aos ouvidos com a viveza símia de um esquilo. E se eu não aplaudi in integrum [inteiramente] aquele importuno K, foi porque lhe achei falta de lógica na aplicação. Mas como ex digito gigans [Pelo dedo se conhece o gigante], estava ali um resquício da personalidade vibrante do artista, traindo-se pela virtude que reputo capital em um escritor: o desejo de conseguir a originalidade. Em um escritor, acabo de escrever, mas quereria dizer em todo o homem.
Sou o partidário seguro de tudo quanto é sedição. Aplaudo mais uma revolta que se extingue abafada pela força do que uma vitória conseguida pelo servilismo, negociada, pelos convencionalismos certos e obscuros.
E que havia esta tendência no autor de Meu Álbum tive ocasião de confirmá-lo sempre mais tarde. No Hóspede [1887], o seu melhor livro, o entrecho do romance é simples, rápido o despretensioso. Há entretanto observação bastante, um estilo seguro, e principalmente a originalidade está revelada no assunto mesmo da obra: uma análise fina, minuciosa, de um estado de alma que seduziria um [Charles] Baudelaire [poeta francês, 1821–1867] naturalista e prosador.
A história gira toda sobre uma tentação sempre aguçada, sempre pronta a realizar-se e afinal frustrada por uma dessas crises de timidez que vêm aos mais afoitos e desses atavismos de virtude que obstam às mais cínicas imposições da Carne, que também tem por si a fortaleza da hereditariedade.
E assim, por um impasse ridículo, em véspera do pecado, salvavam-se puros os que o mínimo incidente teria feito decair.
No correr do livro impressionou-me o uso imoderado do adjetivo — grande. Havia em cada página “grandes alegrias… grandes tristezas… grandes grandes… etc…”.
E assim parecia que no quadro estreito do livro o artista debatia-se com a tensão imoderada dos seus nervos, querendo romper o círculo por demais estreito para a sua individualidade pujante.
Foi depois de ter lido estes dois primeiros livros que conheci Pardal Mallet. Adivinhei-o na rua do Ouvidor, espantando os basbaques, e achei-o coerente com o tipo que eu fantasiara. Ia-lhe bem aquele traje com uma dissonância atrevida, protestando contra os convencionalismos tacanhos e chatos que não entendem que a personalidade vista à roupa, mais do que seja por ela vestida. De fato ― pois que não há coisa tão ridícula como o galã de salões, discutidor de crochês e miçangas, e incapaz de ligar duas ideias por conta própria ―, acha-se uma certa legitimidade em romper com as praxes estabelecidas, que têm a suprema impertinência de serem — praxes! E depois, se há por aí quem seja artista, quem tenha o culto da Forma e da Cor, deve ter o mais solene desprezo pela monotonia insuportável dos vestuários masculinos: mortalhas escuras talhadas em sobrecasacas infames… infamíssimas, atentados contra todas as estéticas imagináveis. E a Cor é uma volúpia. O encarnado tem notas de clarim, fortes, sonoras, metálicas, vibra os hallalis [gritos de caça] triunfantes da carne. O azul canta, canta serena e docemente umas cavatinas [árias breves] que nos embalam falando em lagos espelhados, calmos e serenos, em céus límpidos de maio, que riem sobre nós, em olhares de mulheres louras, louras e nuas nos nossos colos. E depois a seda e o veludo são tecidos de cútis femininas.
Pensa-se ao vê-los em requintes lúbricos de carícias aristocratas, leves e demoradas, correndo epidermes mornas.
Foi depois de conhecer o Mallet que eu li o seu último livro. E, como se diz aqui pura e simplesmente a verdade, digo sem rebuço [disfarce]: achei um livro mau, inferior aos que já conhecia. Foi, portanto, com surpresa que vim a saber que Lar era o primeiro trabalho do moço artista que, depois de havê-lo condenado ao esquecimento, publicando os dois posteriores, em má hora pensou em revogar a sentença. Deu-se com ele o que se dá, não direi só com todo artista, mas com todo pai: queria muito bem àquele primogênito, e teve pena de deixá-lo em casa, enquanto os irmãos mais moços corriam mundo, aclamados e satisfeitos.
A crítica que se exerceu sobre este último produto tomou, porém, uma direção mesquinha. Andou agarrando-se a ninharias e fez um charivari espantoso a propósito do com pelos*. Seria mais útil que cogitassem da razão de ser da locução que obedecia a um princípio de filosofia do estilo, tão justo e tão verdadeiro que nos irmãos [Edmond e Jules] Goncourt [escritores franceses] e em Rene Maizeroy [romancista francês, 1856–1918], buriladores primorosos da Prosa, não será difícil encontrar-se a cada passo: avec par… [com por].
* O trecho citado:
“Pelo anoitecer, no misterioso sensual da escuridão, corpos unidos, imaginações ambas atreladas ao mesmo carro das fantasias, com pelo torso uns suores de cansaço, com pela medula umas lubricidades fortes, com pela voz uns murmúrios de amor, com pelos peitos umas respirações opressas, elas duas longamente se falavam (página 153).”
*
Mas, em suma, o incidente está liquidado. Parce sepultis… [Poupa os mortos].
Icarial está pronto a abrir voo. É, porém, um Ícaro com asas de cera, antes com boa e musculosa envergadura, pronta a fender largamente o espaço, triunfando.
Icarial, o novo livro de Pardal Mallet, tem uma belíssima concepção, ampla e compreensiva, digna de um pulso rijo e original, como é o seu.
Quando ele chegar, hão de render-se à evidência de muito talento do moço artista os poucos que por acaso ainda lhe recusam aplausos. E se não estendo este artigo é para que não pareça maçante isto, que será tudo, menos a mentirosa cortesia de quem solicita elogios. O que se diz nestas colunas dir-se-ia em qualquer parte, com a despreocupação de quem afirma verdades que se podem provar com facilidade.
Depois disto, se impedimos o trânsito por muito tempo, conversando em praça pública, há um meio simples de acabar:
― Digamo-nos adeus…
M. A.
*
Observação: o romance Icarial acabou não sendo lançado por Pardal Mallet.
4. Janota (6/9/1888).
Pouco a pouco no silêncio da noite as últimas notas da música extinguiram-se em cadências lentas.
Do baile, ainda há minutos estuando [fervendo] em espirais febris, restavam apenas, como saudades dispersas, folhas soltas de rosas e camélias, caídas a esmo no chão envernizado.
Colos altivos e despidos, palpitando rapidamente, ofegantes de cansaço; olhares negros e azuis, lúcidos, entrecruzando-se com chispas de amor e de ciúme, de prazer e de escárnio; lábios vermelhos e bem talhados, escrínios de pérolas, descerrando-se em banalidades polidas e motejos de ironia; altos penteados de cabelos negros, castanhos e louros, mordidos pela cintilação fúlgida dos brilhantes; leques, batendo as plumas de cetim, borboleteando sobre os seios nus, falando na mudez da sua eloquente linguagem; rosas, camélias, jasmins, fru-fru macio de sedas e de rendas em uma bariolagem [alternância, no sentido figurado] extrema de cores; o turbilhão de vozes de todos os timbres; a música serpenteando, dengosa, nas espirais das valsas; e sobre tudo isto, crescendo, dominando, envolvendo e alagando tudo, a gama intérmina dos corpos febricitantes, cheia de estremecimentos rápidos de epidermes cetinosas e nuas: — tudo passara, tudo se abismara na mudez gélida da escuridão noturna.
Os noivos tinham-se recolhido aos seus aposentos.
Ela ― era morena, leve, delicada, provocante, com um redondo sinal azul a destacar-se sobre o lábio superior. Olhos negros, de um negro para o qual faltavam comparações e sobravam encantos. Talhe mimoso, esbelto, aristocrata. Moça ― dessas moças que parecem tão frágeis que se teme esmagá-las com um abraço, e são entretanto de uma vibralidade [vitalidade] e energia felinas. Languem [Tornam-se lânguidas] e gemem, soluçam, dobram-se e, súbito, com uma presteza incomparável, enlaçam-se e prendem-nos, enroscando-se como víboras para sugar-nos a força, o vigor, a mocidade…
Ele ― um rapaz nulo. Perfil insignificante de janota blasé, de uma elegância convencional. Figurino nas roupas, nas frases, nas ideias…
Agora, porém, enquanto ela fazia a toalete [arrumava-se] para aparecer-lhe, ele, no rico boudoir, contíguo ao quarto, sentia uma tristeza insólita invadir-lhe o pensamento.
Por quê? ― Não o sabia. Seus olhos, fitos na folhinha pendurada à parede fronteira, tinham no olhar a fixidez dos hipnotizados em catalepsia. Em verdade, não sentia uma só ideia. Era como se lhe houvessem constringido cérebro em um pano preto e ele não pudesse palpitar…
Aos poucos, uma lembrança triste lhe foi aparecendo. Pensou em sua mãe pobre, mulher franzina, que seu pai nunca amara com inteiro afeto e que, um dia, farta de sofrer, matou-se, aconselhando o filho à hora da morte que jamais se casasse. “Porque — dizia a pobrezinha muitas vezes — tu és inconstante como teu pai e serás a desgraça de uma infeliz que se entregue à tua passageira afeição”.
E ele sentia-o bem. Àquela hora, mais do que nunca, evocando a lembrança da triste suicida que lhe dera o ser.
Levantou-se nervoso. Distintamente pôde então ler na folhinha o nome da santa do dia: Santa Clara. Clara: nome que também era o de sua mãe. Por ali, pois, se fizera a associação de ideias, obrigando-o inconscientemente a pensar na desventura daquela esposa que se matara, envenenando-se aos poucos com digitalina. E, meditando na fatalidade com que brotam os pensamentos no nosso cérebro, lembrou que pela hereditariedade talvez ele um dia tivesse de se matar…
Do bolso tirou um pequenino revólver, obra de luxo, mimoso e caro… E, como diante do espelho, com uns estremecimentos singulares, corresse-o sobre a testa, divertindo-se em uma pantomima lúgubre, com a boca contraída em um rictus indizível, misto de sorriso e amargura, houve um rumor na porta do quarto.
Ele não se afastou. O olhar luziu com um brilho estranho e pavoroso, idiotamente alucinado… Devagar, carinhosamente, continuava a afagar a testa com a boca da arma, sempre com o indescritível sorriso sobre os lábios pálidos e frementes…
De súbito, a porta abriu-se: a noiva ia aparecer…
E então, com o susto que lhe causara aquele ruído, contraiu o dedo no gatilho e desfechou.
Morto…
M. A.
5. O Processo de “La Terre” (11/9/1888).
Vem a propósito, agora que nos chegam notícias do processo intentado na lnglaterra contra Émile Zola, traduzir para aqui uma entrevista que por ocasião do aparecimento do livro [o romance A Terra, de 1887] teve com o repórter Philippe Gille o eminente romancista.
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
— Mas enfim — me disse Zola, com alguma impaciência — , o que me censuram de novo é por que pôde A Terra assanhar tantos pudores?
— Vejamos — refleti antes de protestar. — Abro vosso livro nas primeiras páginas e vejo a eterna menina da escola naturalista conduzindo a vaca ao touro [menção à cena em que uma camponesa ajuda uma vaca a cruzar com um touro].
— Que importa se eu a levo a meu modo? Sim, refaço o que já foi feito, mas com as minhas observações pessoais, sem me preocupar com os outros!
— Entendamo-nos; vós sabeis muito bem que não é do ponto de vista literário que se vos pode atacar.
“O leitor (o burguês, como os autores nos chamam quando não somos de suas opiniões) pensa que há certos quadros que não devem ser feitos, ou, quando feitos, devem permanecer voltados para a parede. Acho, em uma palavra, que insistis muito, demasiadamente mesmo, sobre o ato da geração. Ousaríeis ler em voz alta, diante das senhoras, uma página como a que estou citando?
— Certamente que não!
— E então?
— Se um romance deve ser escrito unicamente para a sociedade na qual se vive, se deve conformar-se às suas regras, não ferir nenhuma das conveniências admitidas, estou em erro. Mas se o romance é uma obra de ciência e de arte dirigindo-se à humanidade inteira, acima do momento e do código social, visando a um absoluto de verdade, tenho razão. Como para mim as conveniências não existem, nunca levo em conta o pacto mundano com o público, porque a obra é superior e excede-o.
— É isto razão para contar com tão extrema minuciosidade um ato cuja descrição só pertence a livros de ciência que se conservam fechados nas bibliotecas?
— Mas também aí estão fechados os Contos, de La Fontaine, As Confissões, de Rousseau, Rabelais, Montaigne, Voltaire. Que importam os quadros se aí domino a questão da arte? Quanto ao episódio da vaca e do touro que tanto vos ofusca, eu tomei-o a um baixo-relevo antigo!
— O que por certo não tomastes a qualquer baixo-relevo (que aliás figuraria mal num salão) foram as vossas descrições dos horríveis amores dos camponeses; discípulos repelentes de Malthus. É a precisão no detalhe que levanta contra vós esta tempestade. E depois, francamente, não é um espetáculo triste e aviltante para a natureza humana esse duplo parto da mulher e da vaca, lado a lado?
— Já o declarei muitas vezes que não compreendia, em arte, a vergonha que se liga ao ato da geração. Por isto tomei o partido de falar dele livremente, simplesmente, como do grande ato que faz a vida, e desafio que se ache nos meus livros uma excitação para a libertinagem! É o que se dá no parto que me censurais; creio que há aí um drama tão comovente como o da morte.
“Temos cem mortes célebres em literatura. Prometi tentar três partos: criminoso e clandestino, de Adele em Pot-Buille [1882]; trágico, de Luiza, em [La] Joie de Vivre [1884]; e acabo de dar o de Lise na Terra, entre gargalhadas. Os que me acusaram de macular a maternidade não me compreenderam. Sim, o rústico, se sua mulher e sua vaca estão grávidas ao mesmo tempo, se inquietará talvez mais com a vaca. Ide observar!
“Quanto ao ato da geração, tenho ao contrário procurado levantá-lo, tratando-o de uma maneira simples e bíblica. Quis fazê-lo entrar na literatura como tudo quanto é verdadeiro.”
— Um romance é um livro que pode e que deve cair sem perigo nas mãos de todos.
— Se o achais perigos (o que contesto), ponde-o na vossa biblioteca com os livros que há pouco citei; mas que livros se poderia fazer, que quadros, que estátuas, se nos detivéssemos? Como! Admitis a nudez no Saloon [cabaré] e nos jardins, e não a permitis nos livros?
— Nos jardins há a folha de parreira.
— Não a quero em um livro; só serve para sublinhar o que se quer esconder… e depois onde achais mal em…
— Passemos adiante. Fizestes de mim um acusador público; aceito o papel e continuo. Pois bem, acusam-vos de insistir por demais em pontos que deveriam ser esquivados. Tendes em vosso romance uma casa de prostituição, que não se vê em parte alguma, mas que é feita para espantar as mais desembaraçadas.
— Mas é apenas uma pilhéria, e desenhando essa moça perfeitamente ignorante que quer levantar a casa, quis somente alegrar um pouco esse canto do romance. O fato não é, porém, completamente inventado. Lembro-me que [Gustave] Flaubert [romancista francês, 1821–1880] e [Louis] Bouilhet [poeta francês, 1821–1869] me contavam que tinham visto um bom homem camponês, acompanhado por sua encantadora filha de 16 anos, vir pedir à subprefeitura licença para abrir uma casa de tolerância!
— Mas nem tudo que é verdadeiro é digno de ser visto. Há pessoas que preferem e que é agradável ao que é nojento.
— A questão da arte domina tudo!
— Ah! A propósito — lhe disse eu, rindo — , não sustentareis que no nosso Jesus Christ, que, como está no livro, é tais [?] trés venteux [muito “ventilado”], e passa a vida a p… [peidando], haja uma questão de arte!
Aqui Zola não pôde deixar de sorrir, apesar da gravidade do debate.
— Perdão, eu vos disse que nada inventei. Notai primeiro que essa palavra, que vos incomoda e que representa um ato naturalíssimo, só está escrita uma vez no livro.
— Que importa, se o fato está em toda a parte!
— Não o inventei.
— Creio bem!
— Não há uma só palavra, um só gracejo sobre este assunto que eu não tenha ouvido. Limito-me a relatar. Todos os camponeses acham nisso a sua maior alegria, e nossos velhos autores não fazem cerimônia para falar de tal ato. A antiguidade egípcia, como a romana, tinha altares para as divindades que representavam o que chamais uma inconveniência, e além das obras especiais, existem na França cinquenta sociedades diplomadas de francs peteurs… [francos peidões] O próprio Santo Agostinho…
Aí eu detive Zola e mudei de assunto.
— Confessai ao menos que vossos camponeses são exceções e que acumulastes para representá-los todos os crimes que coleciona a Gazeta dos Tribunais.
* * *
Ainda sobre este ponto Zola não quis ceder.
— Não são monstros, são exatamente assim. Não há seres perfeitos nem nas cidades, nem nos campos, a menos que não os fabriquem, o que eu não posso fazer. Sei que não sou consolador, mas não fiz meu romance para dar consolações a quem quer que seja. Digo apenas a verdade e não trato de satisfazer ou repousar [tranquilizar] o público. Sou pessimista, é verdade, mas a culpa é minha?
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Há resposta de sobra às inépcias com que acusaram o livro do grande escritor. Dizem hoje que ele abjurou. Que importa? A verdade e a razão não podem nunca abjurar. O homem que escreveu Germinal [1885] tem por si, queira ou não, a consagração dos séculos, porque Germinal é apenas “a maior das epopeias que jamais se escreveu em língua alguma!”.
M. A.
6. No Silêncio (19/9/1888).
Veio para aquela soleira da porta logo de manhã muito cedo. Era um domingo. O sol, enroupado em nuvens cinzentas, hesitava. Não havia sopro de brisa: indecisão do ar na indecisão baça do dia nascente.
Veio e sentou-se, roendo uma côdea de pão duro, em que os dentes ao penetrarem rangiam fortemente.
Por volta das dez horas começou a chover. Uma chuva tênue e sutil como a invasão do remorso em consciências gastas, chegando lento a lento, muito de leve, muito devagarzinho.
Enroscou-se na sobrecasaca esburacada e ficou quieto, amadornado [sonolento]. Se passava alguém, estendia o chapéu e rouquejava:
— Urna esmolinha, pelo divino amor de Deus!
E como os transeuntes não fizessem caso, andando muito apressados, ele deixava cair a mão, arrancava ao rosto a máscara do sofrimento e ficava impassível, seguindo as pessoas que passavam pelo outro lado, com uma fixidez aparvalhada e imbecil. Os homens levavam as calças levantadas. As mulheres mostravam a saia branca enlameada; algumas vezes mesmo um pedaço das pernas. Corriam tílburis muito rápidos, o toldo luzente e espelhadiço, as rodas salpicando lama…
E lentamente, demoradamente, silenciosamente a chuva caía como uma pulverização tenuíssima do óleo…
Passou um ébrio. O mendigo, acordando em sobressalto da madorna em que estava, articulou a súplica:
— Uma esmolinha, pelo divino amor de Deus!
Voz arrastada e triste, cheia de desânimo.
— O quê? — perguntou o ébrio. E abaixando-se para ouvir, escorregou e caiu. Logo, porém, muito lampeiro, perfilou-se dizendo umas obscenidades que saíam envolvidas em baforadas de cachaça, e partiu a passo, marcando com a voz muito grossa:
— Um… dois… Um… dois…
Pequeno espaço adiante:
— Alto, frente!
E de novo, inerte e pesado, rolou como um corpo sem vida, para erguer-se ainda e ainda cair.
O mendigo viu-o afastar-se, mirando-o com uma fisionomia inexpressiva e apagada. Depois, com um sorriso dolorosamente inteligente, murmurou em surdina:
— Felizardo!… felizardo!…
Tenham dado quatro horas da tarde. Morria de fome e sede. Ao fundo do chapéu havia uma moeda de vintém, que lhe dera uma negra velha, e um círculo de metal branco que por gracejo aí jogara um moleque.
Na rua, os transeuntes eram raríssimos. Inclinando-se da soleira da porta, ele via os toldos negros dos parachuvas [guarda-chuvas] desfilando, silenciosos. Rua comercial: casas fechadas ao domingo. Em um ou outro sobrado havia janelas abertas. Ninguém se atrevia a assomar ao peitoril. Ficavam para ali escancaradas em um bocejo insuportável de tédio. As goteiras tinham grossos pingos, caindo espaçadamente sobre o granito do lajedo. Lembravam aquele suplício inquisitorial: um padecente, a cabeça apodrecendo ao estilar contínuo e compassado de uma torneira, durante dias, durante meses, durante anos…
Aquele domingo estúpido coava spleen [melancolia] ao longo dos nervos, amolentando-os…
E ele quis levantar-se e não pôde: as articulações desobedeciam… Não teve energia para levar por avante a sua ideia: a vontade morria-lhe de inanição…
Deram 6 horas. Noite escura. Apareceu um profeta, prendendo aos ziguezagues o rosário de luzes. Cada bico de gás tinha em torno um halo pálido e amarelento: era como uma auréola sepulcral em apoteose de espectros tão lívidos, que a própria luz descorasse… O tênue ruído da água — sempre o mesmo ― desaparecia a seus ouvidos pela constância monótona da excitação. Paz completa. Sossego inteiro. Silêncio… Silêncio… Silêncio…
O mendigo adormeceu um sono de inércia e cansaço. De vez em quando, como lufadas de ar quente em caminhos estreitos à hora do meio-dia, subiam-lhe tropéis de visões ao cérebro, na meia alucinação do dormir febril.
Passou um soldado batendo muito com as botas. No sonho, como em um gigantesco microfone, aquele passo era uma marcha… batalhões manobrando em revista aparatosa… generais, o fardamento agaloado e novo, tesos no cavalo — ajudantes correndo à disparada… e pelo campo afora, seara de espigas rútilas de prata… estrebuchar sonoro de bandeiras ao vento…
E como o barulho das botas se perdesse à distância, ouviu-se de novo o murmúrio da água. No sonho ele transfigurou-se no rumorejar das vagas, quebradas pela quilha de um vapor, açoitadas pela hélice… Panda [Inchada pelo vento], a vela branca recortava-se na noite como uma mortalha fantástica de balada alemã, em que os corpos à tona d’água vão boiando mansamente… docemente… O farol na proa sobre o largo dorso do oceano abria em carne viva uma chaga rubra… um marinheiro, do quarto, cantava, rondando, uma toada melancólica, e ao som dela sentia o mendigo que o sono o tomava, deitado no tombadilho, vendo as estrelas muito fúlguras [fulgurantes] através da umidade do ambiente…
E as estrelas eram simplesmente as gotas d’água irisadas pelo reflexo do gás que ele enxergava por entre as pálpebras mal fechadas…
Largo espaço de inconsciência… Silêncio… Silêncio… Silêncio…
Soaram horas em tímpano velho e rachado: voz fanhosa de tédio, no tédio da chuva, no tédio do Tempo, no tédio do Espaço: sons inarticulados de quem se espreguiça, bocejando… Ele começou a contar, mesmo dormindo:
— Uma… duas… três… sete…
Sentiu que errara a conta e calou-se. Eram dez horas, Houve o rumor de uma porta que se fechava ao longe, em outro quarteirão. Um sujeito saiu. O toldo do chapéu de chuva [guarda-chuva], ensopado, luzia ao gás como uma armadura de metal polido… Passos ligeiros, arranhando leve e rapidamente o lajedo: um cão magro, o rabo entre as pernas fininhas, vinha tangido do corredor, trêmulo, tiritando… Parou, farejou o pobre e de um salto, sem cerimônia, trepou-lhe aos joelhos, lambeu-lhe o rosto e enroscou-se quietinho, com arrepios de frio…
O infeliz não teve tempo para assustar-se. Aquela língua tépida, acarinhando-lhe o rosto, na transformação do sonho, era suceder gostoso de beijos de amante. Sentia-a no seu colo, quase nua, mimando-o. Era uma formosa morena de olhos negros e rasgados, muito vivos, uma sertaneja de que ele gostara aos vinte anos e que jamais esquecera.
Chamava-se Leonor, um nome sonoro e bonito que lhe rolara suavemente por entre os lábios de apaixonado centenas e centenas de vezes. Porque estava ela ali, não pôde compreender.
Mas uma vez que assim era, uma vez que dos lábios polposos [carnudos] e vermelhos, dos olhos cheios de treva e carinho, dos seios como mangas rosadas e morenas, eretos e túmidos, das pernas soberbas e majestosas: de toda a sua carne, em suma, subia um aroma excitante de provocações voluptuosas, ele quis abraçá-la, cingi-la estreita e demoradamente…
E começou a apertar o cachorro de encontro ao peito. O animal ganiu no sonho; ele escutava as risadas nervosas da amante, fingindo recusar-se… Apertou mais… mais ainda…
No supremo momento, o instinto de conservação reagiu: o cão, cujo focinho estava junto da goela do miserável, cravou os dentes, desesperada e profundamente… A dor acordou-o. Instintivamente, também as mãos crisparam-se em torno do pescoço do animal, que se debateu um momento e estendendo a língua arquejou de manso e morreu…
Da garganta do mendigo, o sangue jorrou claro e vermelho, vestindo púrpuras de morto sobre os andrajos miseráveis da pobreza. Da carótida rota, a onda vermelha despejava-se, contínua. Foi um minuto: desfaleceu e morreu também.
Ficaram os dois como um grupo fantástico digno de um escultor que se chamasse [E. T. A.] Hoffman [famoso autor alemão de contos fantásticos, 1776–1822] ou [Edgar Allan] Poe [autor estadunidense de contos fantásticos, 1809–1849]: um mendigo morto, segurando entre as mãos crispadas um magro cachorro morto. Aos poucos, o rumor das goteiras extinguiu-se de todo.
Silêncio… Silêncio… Silêncio…
M. A.
7. Poesias de Olavo Bilac (10/10/1888).
Do livro que ora tenho diante de mim, não se diz de uma só vez todo o bem que pensa. Fora um desfilar pomposo de adjetivos em grande gala que, parecendo exagerado, seria inferior ao que merece o belo trabalho de Olavo Bilac.
Não lhe pode bastar a senicidade [senilidade] encomiástica [elogiosa em excesso] de todos os epítetos laudatórios acostumados, como velhas peças, a darem as salvas do estilo todas as mediocridades que passam. É-lhe mister a crítica elevada, a análise criteriosa e profunda devida às grandes perfeições, e para cuja elevação não tem a idoneidade precisa o autor destas linhas.
E tanto mais isto assim é, que se trata de um livro que a muitos outros méritos junta o de representar uma coesão teórica perfeita, sob determinada orientação artística. Na incerteza desta nossa idade, dúbia e agitada, repartida entre centenas de opiniões, o simples fato desta orientação segura e firme é uma alta prova de robustez intelectual, que merece reparo [nota]. Ao contrário do que se avança quando se afirma que as escolas são empecilhos ao artista, veja-se as obras dos grandes poetas de todos os tempos e conhecer-se-á como é bem certo que todos eles obedeceram a uma definida e restrita intuição. Victor Hugo [escritor francês, 1802–1885] e Leconte [de Lisle, poeta francês, 1818–1894] aí estão no nosso tempo para prová-lo. O que é certo é que em Arte só há uma grande razão para a vitória: o talento. Com ele, todas as escolas são possíveis.
Diante, pois, de uma produção artística, o espírito do leitor, como uma câmera fotográfica, deve focalizar-se de maneira a aceitar por verdadeiros os princípios do autor. Daí é que há a [de] julgá-lo e apreciá-lo. Fora tolice pedir a Victor Hugo descrições precisas e minudenciosas, a Leconte declamação romântica e teística, a [Jean] Richepin [poeta argelino de língua francesa, 1849–1926] a verve de [Heinrich] Heine [poeta alemão 1797–1856], a Heine o cientifismo [cientificismo] de Richepin. São modalidades características que é preciso aceitar como premissas. Em alguns autores é difícil achar estas determinantes primeiras. Não é, porém, o que se dá com Olavo Bilac.
O poeta da Via-Láctea é um parnasiano, e parnasiano de uma definida espécie. A sua ambição consiste em exprimir o pensamento por uma forma correta e elegante. A harmonia fica ao segundo plano. A correção domina essencialmente. É-lhe preciso o termo justo, a palavra adequada e precisa, que diga perfeita, mas unicamente, o que há para ser dito. ― Este é o esquema de seu processo. Está bem de ver que em uma determinação desta ordem o que se quer salientar é o princípio capital. Não se exclui a imaginação, a harmonia mesmo, geralmente achada a despeito de todos os obstáculos.
Ora, precisada esta aspiração, dizer que o poeta conseguiu brilhantemente o seu desideratum do princípio ao fim do livro é fazer-lhe um enorme elogio para todos os que avaliam o que custa lidar com o nosso vocabulário e a nossa sintaxe. Não basta declamar que a língua portuguesa é riquíssima e que excede todas as outras. Será. Sucedeu-lhe, entretanto, o que sucederia a um maquinismo engenhoso e complicado que estivesse em abandono durante séculos: — enferrujou-se na longa estagnação literária que sofreu. Hoje move-se aos solavancos, aos impulsos dos puristas espetados no[s] século[s] 15 e 16 e dos neologistas furiosos querendo acelerar a evolução com um legítimo desejo de ganhar tempo... E enquanto não se acalmar esta fermentação primeira, a língua portuguesa será o tormento de todos os artistas e principalmente dos poetas, sujeitos mais do que todos a uma infinidade de imposições tirânicas de ritmo, da rima, de cesuras e outras peias.
Há, é verdade, um vocabulário opulentíssimo no nosso idioma. Há, mas está fora de circulação na sua maior parte. Acontece a grande número de palavras o mesmo que entre nós as moedas de 10 rs. [réis] que todos sabemos que existem, e, todavia, só vemos de longe em longe. E o pior é que o poeta não pode lançar mão desses tesouros ocultos para trazê-los a público. A Poesia é pensamento e música, é a emoção ritmada. Se, pois, em um verso depara-se ao leitor um termo desconhecido, que o força a parar a leitura, perdeu-se a harmonia do metro. É como se estivesse escrito em má caligrafia. E, depois, como obter a emoção obrigando-se o leitor a uma forte concentração intelectual essencialmente analista e que, por isso mesmo, a dissipa? Não se pode responder a estas objeções dizendo que não há que contar com a ignorância, quando a ignorância é geral e a Arte é uma função social perfeita ao meio e ao momento, e que não pode, como a Verdade, dispensar o naufrágio. E em prova examine[m]-se os Sonetos e Poemas de Alberto de Oliveira, um grande, um esmeradíssimo cultor da Poesia. Não se encontram certamente, de quantos falam português, dez pessoas que possam ler aquele livro do princípio ao fim, sem uso do dicionário. E, o que mais é, não há dicionário que contenha todos os termos que lá estão.
Pois bem, a despeito de tudo isto, o livro de Olavo Bilac soube manter sua perfeita orientação, movendo-se entre este ouriçamento de dificuldades. A abertura do livro, a Profissão de Fé (que é um programa real), a Morte de Tapir, o Delenda Cartago são, logo na primeira parte, três esplêndidos poemetos, capazes, por si sós, de firmarem uma reputação de ponta. As descrições são justas e bem feitas. Há versos que à primeira leitura, pela procurada aspereza, parecem errados. Se pedras rolam, rolam as sílabas com um barulho áspero e mau. É soberbamente manejada toda a complicada mecânica do Verso.
Na segunda parte, ao longo dos trinta e cinco sonetos que a compõem, paira a visão de um amor apaixonado e forte, que unge todos os versos de uma estranha e dulcíssima maviosidade. Não há ali ideias altamente originais e extravagantes.
Há um amor, como todos os amores, mas vívido e sincero que nos arrasta pela sua eloquente simplicidade, magnificamente cantada. Parece ao ler aqueles sonetos que nos açoitam nas faces com rosas em pleno viço, orvalhadas e perfúmeas [perfumadas]… Amor! Amor! Amor! E sobre este tema há rendilhados finíssimos, lavores custosos e hábeis: toda uma alma de poeta e uma perícia de cinzelador.
Na terceira parte, onde há talvez mais vida — vida que ao menos não é tão concentrada como a do egoísmo amoroso — , o primor dos versos não é desmentido.
É, em suma, um grande livro que carece ser apreciado por todos os que leem nesta terra. Se dele não citei verso algum, é que desconfio extremamente das citações que muitas vezes têm um efeito contraproducente, baseadas ― como são ― em apreciações estéticas muito subjetivas.
Não haverá, todavia ― pode-se jurá-lo ― quem não encontre muitas joias a seu gosto neste riquíssimo escrínio.
M. A.
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Eis os textos da série Música Inglesa.
O trabalho de pesquisador está feito. Com a palavra, os especialistas na obra de Machado de Assis.