Ponta de Areia, 0

0. Prólogo

Felipe Areas
4 min readOct 19, 2022

Índice:

  1. O Começo
  2. Muitos dias de Viagem desde ontem
  3. A Jornada Até Caraíva
  4. Um ano em Caraíva e o Fim da Viagem a Dois
  5. Solo
  6. Virendo a Maré
  7. Maré Morta
  8. Rally de emoções e momento manutenção
  9. Abandonar e Voltar ao Litoral
  10. Nadando no Mar de Eucaliptos
  11. Segundas São Difíceis
  12. Você Precisa Conhecer meu Amigo Késio
  13. Providência Divina Pró Chuva
  14. Quando Atingirmos a Meta, Vamos Dobrar a Meta
  15. Luxos e Déjà-Vu
  16. Parabéns, Você Ganhou um Abacaxi
  17. Correr Pro Abraço

0. Prólogo

É meia noite de um Julho veranil bem turbulento de 2022. Estou ansioso, mas consigo voltar minha cabeça para coisas que me trazem paz. Lembro das coisas realmente importantes que fiz na vida e aí, minha viagem de Porto Seguro até RJ vem com força. Lembrar me alegra sempre, mas vem junto com uma frustração permanente de não conseguir narrar. Num misto de persistência e teimosia, decido tentar mais uma vez, sem grandes pretensões. Pela primeira vez, consigo gostar um pouco do que conto sobre essa viagem. Vou escrevendo e deletando, deixando de molho e relendo por uns meses. Começo a achar uma linguagem que me interessa e vou apostando nela. Em algum momento, decido que vou publicar.

Juntando os relatos que não gosto (já escritos e não publicados), os metadados das fotos (para horários e datas) e minha -ainda boa- memória, consigo ir montando uma trajetória psicológica de como as coisas aconteceram. No fundo, acho que é isso que me interessa contar. Os quilômetros e rodovias percorridas ou a beleza de alguns lugares que passei, podem facilmente ser acessados pela internet, então, entendo que a palavra precisa dar conta de outras coisas, que não essas.

Acho que não vou conseguir pregar o olho; a vida está um caos; cadê o chão? Relembro que um dia, disse: “tá tudo pago! Esses quarenta dias de viagem já valeram minha vinda ao mundo! Obrigado por tudo, Universo!”. Em que contexto de 2014 eu formulei isso mesmo? Foi ainda na estrada? Foi depois de chegar? Ou foi algum sonho que tive e que já não sei mais diferenciar da realidade? Já não consigo lembrar.

Me vejo em um dia comum de 2022, sem qualquer conexão simbólica com a minha aventura pelo litoral brasileiro. Tento lembrar o que se passou naqueles dias infindáveis onde apenas o inexplicável acontecia. Percebo que ainda lembro de quase tudo, mas releio minhas tentativas passadas de escrever sobre essa aventura e me deparo com o fracasso: caramba, tudo soa chato igual aos livros de viagem de bicicleta.

A “literatura de cicloturismo” está repleta de jargões cafonas, como “tudo faz sentido quando vivo com verdade”; “aquele dia não encontrei ninguém, mas a mim mesmo” e coisas ainda piores. Mas, às vezes, é ainda pior: uma coletânea de causos desconexos; um relato completamente fatual que mais se parece com uma lista de compras ou ainda. Dá pra escrever um diário de viagem sem “complexo de épico”?

Penso nas pequenas derrotas da vida e me lembro que sou exigente demais comigo mesmo “poxa, tudo bem produzir um texto tão chato quanto os demais sobre o assunto. Por que me cobro tanto?”. Repenso. Mas, passo o olho nos escritos sobre essa viagem e não tenho dúvida: -caramba, são textos chatinhos mesmo, ainda bem que nunca publiquei.

Do meio dessa confusão toda, me lembro que li esses dias, um texto incrivelmente divertido de aventura, de uma amiga/conhecida que inventou de ir sozinha pra Sibéria de trem. Essa leitura reacende o desejo de escrever minhas viagens e traz a esperança de ser possível redigir um texto de aventura não-fictícia. Penso: “Caramba, sim, é possível escrever algo gostoso de ler sobre uma coisa bem pessoal!” O problema é, só, que ainda não consegui. Será que escrevo chato porque sou chato? Será que escrevo chato porque não tenho o dom? Consigo interromper essa precoce crise existencial e então, aprendendo com os anos de análise, percebo que há um apego obsessor em mim: inconscientemente, quero controlar a experiência do leitor. Sempre lancei uma enxurrada de nomes e informações, na expectativa de ser o mais preciso e detalhista com o que aconteceu, mas, talvez, seja mais importante aprender a construir uma narrativa lúdica.

Percebo que essa viagem ainda me produz muita coisa, ainda que oito anos depois. Desde lá, esses dias têm sido um lugar pra onde sempre volto de tempos em tempos. Esse prólogo é a parte mais difícil de escrever, por que é impossível dizer que “minha vida nunca mais seria a mesma depois dessa viagem” sem soar absurdamente cafona, mas também parece ser impossível comunicar isso de outro modo. Já reescrevi esse parágrafo umas quinze vezes depois, inclusive, depois de publicado.

Tentei ajuda do ChatGPT, que só serviu pra me mostrar opções piores.

Sou um ruminante e demoro anos pra digerir as emoções. Elas vagam entre os meus quatro estômagos na eterna procura de sentido; seguem do primeiro ao terceiro pra depois retomar ao segundo, numa sequência anárquica de passagens que a qualquer observador externo poderia parecer a definição do Caos. Mas não o são; percebo que não controlo meus processos, mas posso tentar conhecê-los. Crio coragem -embora, talvez, seja muita teimosia tentar mais uma empreitada de escrita sobre Porto Seguro ao Rio.

Durante metade da viagem, tive a companhia de uma fotógrafa profissional e sua câmera. Especialmente por isso, ninguém acredita que fui eu quem tirou essa foto, com a minha câmera coolpix de 3 megapixels apoiada em um montinho de areia, já em um trecho que percorri sozinho.

Ponta de Areia, 1 (próximo capítulo)

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